Os humildes da classe baixa e os literatos
Tradução: Felipe Chaves Gonçalves Pinto
Revisão e cotejo: Gustavo Perez Katague
HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto
Texto original: "Karyû no saimin to bunshi". Manuscrito, 1895. Disponível em: Arquivo Pessoal. Acesso em: 08/10/2024.
Transcrição do original: Felipe Chaves Gonçalves Pinto.
Material usado para a tanscrição: Nihon puroretaria bungaku taikei: jokan. Tóquio: San-ichi shobô, 1955.
Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).
A chamada civilização do século XIX é uma civilização que favoreceu os ricos e, embora tenha, sob o nome da liberdade, suplantado a classe aristocrática, tornou a separação entre ricos e pobres ainda mais profunda. O progresso da civilização materialista junto ao desenvolvimento elaborado das máquinas usurpou os empregos dos trabalhadores, enquanto o desenvolvimento cultural, junto a uma onda de ostensividade, pressionou os pobres e os lançou ainda mais na miséria e no sórdido sofrimento. Os ricos estão cada vez mais ricos, enquanto os pobres, cada vez mais pobres; os ricos estão em perpétua felicidade, enquanto os pobres, em perpétuo sofrimento. Nas mansõesXY dos ricos, os cavalos estão sempre bem nutridos, enquanto as ruas estão amontoadas de mendigos. Aqueles que se alimentam de carne têm sempre a barriga saliente e sofrem por não ter como passar o tempo durante os curtos dias de inverno. Enquanto isso, dentro das casas humildes, pessoas com olhos fundos e bochechas caídas reclamam de como os seus trabalhos nas longas noites de outono não fluem como deveria. A civilização atual, além de corromper as classes médias e altas, pressiona os mais pobres para o abismo da miséria. A classe baixa de hoje está faminta, e para não perecer terá que roubar para comer, o que é, primordialmente, um crime. Contudo, nem sempre as pessoas têm a pureza de Hakui e antes de morrerem de fome resguardando o que é o certo, muitos não têm escolha a não ser viver com o peso da culpa. Os crimes da classe baixa são dignos de compaixão e pena quando comparados aos vícios da classe alta, que nascem do excesso de ócio, e, ainda assim, estas pessoas não recebem nenhuma punição. Ainda assim, a galardoada classe alta e a sua corrupção e decadência moral não são criticadas. Ah!, mas será que os olhos das pessoas veem apenas o que é claro e não conseguem enxergar o que está oculto nas sombras? Além disso, a pobreza nem sempre se origina da preguiça, e o crime nem sempre surge de forma voluntária, mas, uma vez que alguém cai no abismo da miséria, é difícil voltar à correnteza da superfície e, uma vez encarceirado, a sociedade nunca se esquece desse estigma, tratando-o com desprezo para sempre. Ah, ah!, descrever os mais miseráveis dos destinos e as vidas mais dignas de compaixão deste mundo, não é essa tarefa dos poetas e literatos? O mundo já se cansou dos romances delicados sobre os amores entre fidalgos geniais e belíssimas damas, já está farto das histórias destes cavalheirescos virtuosos e mulheres heroicas contadas em kodan. Neste momento, quando as pessoas finalmente se inclinam para os problemas da vida e almejam ouvir sobre os mistérios do espírito, por que os escritores não despejam toda a sua empatia sobre esses destinos trágicos, por que não derramam todo o seu sangue fervente, através do pincel sob o seu braço, para retratar essas vidas tão dignas de pena? Por que não pranteiam e lamentam por essas almas desamparadas, representando-os neste mundo, em vigoroso protesto? A razão pela qual a escrita de Hugo retumba como trovões e ondas revoltosas não é porque ele sempre se enfurece em nome dessas almas desamparadas, chorando pela miséria de seus destinos e clamando por humanidade? Recentemente, têm por fim aumentado o número daqueles que falam sobre Hugo, (o que Shiken traduziu há alguns anos foi apenas um fragmento breve das ideias de Hugo). Por exemplo, o escritor Muchô apresentou um resumo de Quatrevingt-treize no jornal Nihon, enquanto Suzuura Ryôjin fez comentários gerais sobre O Corcunda de Notre-Dame. Além disso, ouvi dizer que a grande obra de Hugo, Os Miseráveis, está sendo adaptada para uma peça intitulada Ana muzan no ukiyo pelo dramaturgo Ôchi. Ah, uma vez que, neste mundo, a chegada do outono se dá com a queda de uma única folha, não se deveria entender que a atenção às questões sociais vem gradualmente junto com as ideias que as pessoas fazem sobre as questões da vida? No entanto, deve-se primeiro mover a si mesmo antes de tentar mover os outros; só se as lágrimas fluírem primeiro de nossos próprios olhos que então seremos capazes de fazer os outros chorarem. Aqueles que desejam protestar neste mundo em nome dos pobres e aflitos de hoje devem ter, para começar, em seus olhos, lágrimas e em seu peito, sangue em abundância. Não devemos permitir que escritores frívolos e bajuladores ou literatos de genialidade superficial manchem a pureza desta missão. Ah, mas quem será capaz de fazer isso... quem será capaz de fazer isso?
Manuscrito de setembro de 1895.