“A definição do pobre”

Kagawa Toyohiko

Tradução: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

Revisão e cotejo: Luiz Fernando dos Santos Velloso Blois

HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

Texto original: "Hinmin no teigi". In: Hinmin shinri no kenkyû, Tóquio: Keiseisha shoten, 1915, p. 7-14. Disponível em: Arquivo Pessoal. Acesso em: 09/10/2024.

Transcrição do original: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

Material usado para a tanscrição: Kagawa, Toyohiko. "Hinmin no teigi". In: Hinmin shinri no kenkyû, Tóquio: Keiseisha shoten, 1915, p. 7-14.

Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).

Nota: Refletindo traços do pensamento hegemônico do período, este texto possui termos, expressões e ideias racista e preconceituosas que foram mantidas tal qual o original a fim de manter a historicidade do mesmo.

Primeiro capítulo: a definição do pobre

Primeiro subcapítulo: definição de pobre

Pobreza e riqueza pertencem ao campo dos valores, portanto, podem ser definidas de várias maneiras. Seguindo as seguinte diretrizes, é possível estabelecer diversas definições: (1) com base no grau em que uma pessoa pode manter seu corpo; (2) pelo nível de riqueza que permite adquirir uma educação adequada; (3) pela quantia de impostos pagos que confere os direitos à cidadania; (4) pelo grau de riqueza que permite manter uma aparência respeitável; e (5) pelo nível de riqueza que permite uma vida de liberdade (incluindo prazeres). No entanto, esses níveis variam de acordo com a discrepância cultural, o que torna bastante difícil medir o grau de pobreza. No entanto, à medida que avançamos do primeiro ao segundo, terceiro, quarto e quinto nível, o grau de pobreza progride e então, portanto, gostaria de primeiro identificar como “pobreza elementar” aqueles que mal conseguem manter seu corpo como indivíduos, e fazer disso a base para o estudo da pobreza na história da civilização.

Todavia, existe uma grande variação no que se entende por “conseguir manter o corpo” e há uma diferença entre aqueles que sobrevivem comendo milheto e aqueles que não podem viver sem comer pão feito com farinha de trigo. Além disso, nos últimos vinte anos, a humanidade em geral se tornou notavelmente mais exigente com relação à alimentação, o que torna difícil determinar esse padrão. Um exemplo disso é a evolução no consumo de aveia, trigo e batatas na Alemanha.

(Consumo anual per capita)

1879 1884 1889 1894 1895
Aveia 121,0 kg 115,9 kg 112,6 kg 128,5 kg 123,6 kg
Trigo 51,6 kg 56,6 kg 63,4 kg 74,4 kg 74,4 kg
Batata 339,9 kg 399,9 kg 398,2 kg 444,2 kg 492,8 kg

Este quadro mostra como é difícil determinar a disparidade entre ricos e pobres com base nos padrões alimentares da humanidade. Além disso, quando se somam questões como vestuário e moradia, o problema torna-se ainda mais complexo.

Segundo subcapítulo: comparação entre hominídeos, selvagens e pobres

Por isso, acho interessante a investigação através da questão alimentar dos hominídeos. O famoso zoólogo Hartmann estudou as condições de vida dos gorilas de 2°N a 5°S e de 6°E a 16°E, e listou dez alimentos que eles comem. Esses alimentos são: 1. frutos de dendezeiros, 2. ameixa-da-guiné (Parinarium excelsum), 3. mamão papaia, 4. banana-da-terra, 5. planta do grão-do-paraíso (Amomum malaguetta) , 6. Amomum grandiflorum, 7. algo semelhante a nozes, 8. algo semelhante a cerejas, 9. cana-de-açúcar, 10. carniça, além de outros, enquanto onívoro, alimentos como ovos, carne de répteis, pequenos mamíferos e aves. (Ele também menciona que os chimpanzés são vegetarianos. No entanto, não especifica os tipos de alimentos consumidos por eles.) Agora, como os gorilas e chimpanzés não estocam alimento como os humanos, eles podem ser considerados, em certo sentido, pobres. No entanto, podemos realmente chamá-los de pobres em um sentido prático? E qual seria a questão alimentar dos selvagens?

Os “bosquímanos” são considerados um dos mais selvagens entre os nativos da África, vivem de caça e são um povo pobre. Os selvagens da costa da Austrália, das Ilhas de Andamão, das Ilhas Nicobar e os canibais da costa da Venezuela também são pobres e quando não têm o que comer, de forma mais lamentável que os gorilas, devoram qualquer tipo de carne. Os hotentotes, embora sejam um pouco melhores, ainda estão em uma situação onde a pecuária de bois e ovelhas se desenvolveu muito pouco (Kropotkin, Ajuda mútua, São Sebastião: A senhora editora, 2009, p. 80). Além disso, a situação crítica dos esquimós e a pobreza dos papuas são bem conhecidas. Entre os selvagens pobres, há muitos que comem aranhas e até mesmo terra (Sudaneses, Dincas da África, indianos asiáticos, romanis, povos da Oceania, alguns chineses, alguns sul-americanos). E ao saber que a terra comestível no Sudão ou entre os Dincas é vendida por um valor de um centavo para um pedaço de quinze centímetros de comprimento, nove centímetros de largura e quatro centímetros de espessura, não podemos deixar de sentir simpatia pela situação desses selvagens pobres. (É claro que o Rei italiano Emanuel III tem uma preferência por comer crista de galo e miolos, e assim podemos ter alguma simpatia por ele, mas ainda é melhor do que não ter carne para comer).

Se compararmos isso com a grande fome no Império do Japão em 1914, quando se dizia que os habitantes de Hokkaido sobreviveram comendo palha, não há muita diferença. No entanto, em comparação com a vida dos gorilas na floresta, a vida dos macacos pode ser considerada mais civilizada.

Mas por que não podemos chamá-los de pobres? Porque conseguem sobreviver assim. Porque não desejam fazer mais do que isso. Porque coisas luxuosas não combinam com seus paladares. No entanto, o ser-humano civilizado não consegue sobreviver comendo algo que está abaixo de certo nível, mesmo que isso seja considerado um banquete para o selvagem.

Ou seja, a diferença entre os selvagens e os pobres reside, primeiro, na consciência da vida, e segundo, no fato de que, devido à fixação da evolução, uma vida inferior se tornou inadequada para a sobrevivência. A comparação entre os hominídeos e os pobres é semelhante, com a única diferença de que os primatas não enfrentam as dificuldades inerentes à vida (ou melhor, dificuldades na vida enquanto macaco - como a opressão do sistema de propriedade privada, por exemplo).

Terceiro subcapítulo: pobreza econômica e pobreza social

Todavia, não devemos esquecer que, além da pobreza dos selvagens e dos hominídeos, existem dois tipos de pobreza que surgiram na história da humanidade: a pobreza econômica e a pobreza social. No primeiro subcapítulo, determinei cinco tipos de distinção entre ricos e pobres, mas no segundo subcapítulo, examinei a questão somente através do aspecto da “manutenção do corpo” ou seja, um aspecto econômico da pobreza. No entanto, do segundo ao quinto aspecto, é possível descobrir a classe da pobreza social. Isto é, a pobreza social não é determinada pelo primeiro aspecto. No entanto, a consciência de sua miséria não é inferior à do primeiro tipo. O confinamento de quatorze horas nas fábricas, o trabalho ininterrupto durante o dia e a noite, são coisas nunca antes vistas na história da civilização, e mesmo que não haja escassez de pão, a insegurança de subsistência é pior do que a dos selvagens. Ou seja, o primeiro tipo de pobreza é a pobreza imposta pela natureza. Essa é mais fácil de aceitar. Mas o segundo tipo, a pobreza social, é realmente difícil de aceitar. Aqueles que estão em pobreza econômica têm o sol, a natureza em desenvolvimento, tudo à sua disposição. Mas aqueles em pobreza social urbana não têm sol, natureza, gramas ou árvores, e estão mergulhados em um sofrimento indescritível causado por inseguranças artificialmente criadas. E o que eu quero principalmente estudar neste livro é a pobreza social, e não a pobreza econômica.

Quarto subcapítulo: definição econômica da pobreza social

Parece que a cidade de Tóquio considera como pobres aqueles que pagam um aluguel de 3 ienes ou menos e têm uma renda mensal de 20 ienes ou menos. Charles Booth, famoso pesquisador sobre a pobreza, define os pobres em Londres como aqueles com uma renda semanal de 9 a 10,50 ienes. Rowntree acrescenta a isso 3 ienes semanais para gastos com lazer, definindo assim os pobres como aqueles com uma renda igual ou inferior a 13,50 ienes por semana. Em países como Inglaterra, França e Alemanha, os níveis de vida são ligeiramente diferentes, e a definição de pobreza também se difere, contudo neste livro, quero me concentrar principalmente naqueles que estão abaixo dos padrões de Tóquio e Londres.

Quinto subcapítulo: o teor da pobreza social

Sombart disse (embora não tenha usado a expressão pobreza social): “há razões pelas quais os pobres de hoje, especialmente entre os trabalhadores braçais, embora possam ser economicamente mais abastados do que funcionários públicos ou professores, são forçados a ocupar uma posição social inferior. Isso é justamente uma face doentia da sociedade moderna”. No entanto, como esqueci as três ou quatro causas que ele mencionou, tentarei explicar isso de uma nova maneira.

A primeira grande miséria da pobreza social é o isolamento social. Ao deixar os costumes alimentares da aldeia primeva e se jogar na competição pela sobrevivência, chegando às cidades sem educação, sem crédito ou negócios e submetido aos moldes da divisão do trabalho e sentido o gosto amargo da opressão dos monopólios, como em um antigo feudalismo, qualquer um se sentiria socialmente isolado. No Japão de hoje, esse sentimento é particularmente forte. A segunda é a insegurança de vida. O medo, a alta dos preços, as modas, a tirania das máquinas, a superprodução, as crises econômicas e a competição injusta fazem com que os trabalhadores e os pobres vivam em constante instabilidade. A terceira é a restrição da vida. A divisão do trabalho e a falta de conhecimento sobre as regras de vida na sociedade os prendem a uma ocupação específica, impedindo-os de obter uma posição social digna com saúde, hobbies e conhecimento adequados. A quarta é a falta de prazeres na vida. Antigamente, a coleta de excrementos humanos era um trabalho secundário dos agricultores, mas em algumas cidades, tornou-se uma ocupação especializada, como se as pessoas estivessem confinadas em uma fábrica, isoladas do ar e da luz.

Todos esses fatores, por um lado, creio, causam uma crise moral e, por outro, levam diretamente a crises econômicas e à ruína. Nesse sentido, aqueles em pobreza social nos últimos cinquenta anos foram infelizes e sua situação foi mais desesperadora do que a daqueles em pobreza econômica.

Notas