Retalhos de impressões
Tradução: Felipe Chaves Gonçalves Pinto
Revisão e Cotejo: Jessica Maki Kimura
HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto
Texto original: "Kansô no danpen". In: Daisan teikoku, no. 39, Tóquio, 1915. Disponível em: Aozorabunko. Acesso em: 14/10/2024.
Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).
Pode haver algumas pessoas que pensem que eu estou sempre falando a mesma coisa, mas eu realmente desejo seguir falando, até que me julguem insuportável e por quanto tempo for necessário, sobre aquilo que considero ser o mais importante, seguir falando mais insistentemente do que uma criança teimosa pedindo algo. Apesar de eu própria também ser assim, acho que todos à nossa volta estão sempre ocupados demais. Nisto, em um piscar de olhos, não apenas esquecem o que os outros dizem, mas até o que eles mesmos disseram para, em seguida, serem absorvidos pelo que vão dizer na sequência. Acho que é quase seguro dizer que são poucas as pessoas que realmente saboreiam e refletem profundamente sobre o que os outros falam. Por isso, sobre os assuntos que considero fundamentais e que quero que sejam aceitos de qualquer maneira, desejo continuar insistindo por quanto tempo for necessário, até o ponto em que berrem comigo por falar tanto.
Quando eu perscruto o caminho que percorri, aquele que me era inevitável, vejo que cometi muitos erros irreparáveis. Passei também por lugares bastante perigosos e difíceis de atravessar. No entanto, ao refletir agora sobre o passado, repleto de diversos acontecimentos, percebo que o que mais me guiou e ensinou foi a luta interna dentro de mim. E, ao mesmo tempo, foi também o que mais me trouxe sofrimento.
Quando terminei minha vida escolar relativamente tranquila, a primeira coisa com que me deparei foi a revolta contra a opressão injusta ao meu redor. Isso veio na forma do casamento, que para quase todas chegava de maneira mais ou menos igual. Eu me revoltei contra isso. No entanto, isso trouxe consequências complicadas, enredadas em sentimentos incômodos. Fui alvo de inúmeras críticas, censuras e insultos. Mas, imersa em um ambiente que me parecia hostil de todas as formas, eu estava cheia de revolta contra tudo isso. Às vezes, quase me deixava abater em minha revolta pela postura sentimental de meus familiares. No entanto, havia uma pessoa que me amava com mais sinceridade e compreensão. Quando consegui superar isso, eu senti como se tivesse finalizado uma nobre tarefa. Achei que havia experimentado sozinha muitos sofrimentos que as outras pessoas desconheciam. Senti como se tivesse feito algo grandioso. No entanto, agora percebo que aquilo não foi nada. Ainda precisava conhecer sofrimentos muito maiores e mais profundos.
Quando eu comecei a me relacionar pela primeira vez com pessoas desconhecidas, finalmente percebi quão miserável era meu verdadeiro eu. Quando me dei conta de que realmente estava sozinha, meu coração se inclinou naturalmente aos meus amigos da minha terra natal, que eu havia abandonado. Não importava o quanto eu desprezasse os costumes ou estivesse repleta de revolta, meu coração covarde não estava disposto a direcionar essa revolta contra os outros da mesma forma que eu fazia facilmente com meus próprios familiares. Mesmo quando o ódio, a revolta e o desprezo pelas pessoas giravam em redemoinho dentro de mim, procurando desesperadamente um escape, eu não estava disposta a investigar a origem desse redemoinho interno.
Eu olhava fixamente para essa estranha contradição dentro de mim. E sabia claramente que, em vez de acalmar aquele redemoinho, o certo era deixá-lo sair. A cada vez, eu tomava a decisão firme de que “será desta vez!”. Contudo, isso nem sempre se manifestava em ação imediata. Eventualmente, meu coração começou a queimar de raiva contra minha própria fraca vontade, incapaz de encontrar a coragem para decididamente cumprir minhas resoluções. No entanto, diante dos costumes que abocanhava até o cerne de cada célula do meu sangue, minha raiva não tinha força para resistir e desmoronava. Comecei a sentir que estava prestes a perder a esperança em mim mesma.
No entanto, eu refleti bastante sobre tudo isso. Sabia muito bem que minha atitude covarde vinha da vaidade de não querer causar uma má impressão nos outros. Apesar disso, não busquei romper com essa situação. Mas eu logo percebi que, por mais que me esforçasse para ser bem vista, isso não surtia nenhum efeito. Fui efetivamente confrontada com o fato de que, além do meu verdadeiro valor, era inútil tentar ser mais apreciada. Minhas reservas e considerações frívolas foram desaparecendo aos poucos. Porém, quando se tratava de interações mais importantes, esses sentimentos ainda vinham à tona, o que me incomodava. Fiquei verdadeiramente surpresa ao perceber como a diferença entre relações familiares e as com outras pessoas estava profundamente enraizada em mim, apesar de ser uma questão aparentemente trivial.
Ao analisar friamente, tanto os parentes quanto as outras pessoas são iguais. Em minha mente, não importa se são meus pais ou outras pessoas, eu os disseco e analiso sem qualquer cerimônia. No entanto, quando isso se reflete na vida real, um estranho amor faz com que meu desprezo pelos familiares diminua, enquanto a crítica sobre outras pessoas permaneça tão rígida quanto antes. Isso me causou grandes sofrimentos que nem posso começar a imaginar. Especialmente porque, em relação aos parentes do meu amado marido, eu era uma estranha. Fui forçada a interagir com eles. Nessa interação eu tive que suportar um sofrimento muitas vezes maior do que quando me voltei contra meus próprios familiares. A princípio, achei tudo isso uma idiotice. Que razão havia para que eu tivesse que passar por tanto sofrimento? Pensei que, em vez de estar aprisionada a esse sofrimento, seria melhor encontrar uma maneira de não precisar ter contato com essas pessoas. No entanto, eu não podia simplesmente ficar ali placidamente observando que, quanto mais me sentia desconfortável com essas pessoas, mais intensamente eu me lembrava do amor que sentia pelos meus próprios familiares. Meu marido me ama como eu o amo, e certamente ele ama os seus parentes da mesma forma que eu amo os meus.
Quando pensei em quantas mulheres já sofreram com essa questão desde tempos antigos, percebi que esse sofrimento não era nem um pouco idiota. Senti um interesse em mim mesma ao refletir sobre como eu poderia lidar com essa dor. Todas elucidaram e atravessaram esse sofrimento. E eu também segui esse caminho como qualquer outra pessoa. Eu não deveria jamais pensar que era algo idiota. Desejei, de alguma forma, atravessar esse caminho sem me enganar.
No entanto, quando cheguei a essa conclusão, esse sofrimento já não era tão intenso. Aos poucos, fui conseguindo estabelecer a distinção entre mim e as outras pessoas. O que as outras pessoas faziam ou diziam já não me incomodava tanto. Passei a fazer o que eu queria fazer. Dizer o que queria dizer. Tornei-me capaz também de permitir que os outros fizessem e dissessem o que quisessem, sem me importar. Tornei-me claramente consciente de que o meu valor não dependia de ser elogiada ou criticada pelos outros.
Por que trouxe à tona uma história tão insignificante sobre minhas experiências? Porque sei que o caminho que agora se abre diante de todas as mulheres jovens é o mesmo que percorri. Sei disso pelas inúmeras cartas de mulheres jovens, muitas vezes desconhecidas, que me escrevem relatando suas situações, além do fato de que uma grande parte dos nossos limitados conhecimentos é preenchida pela elucubrações sobre essas questões. Porém, a maioria dessas mulheres parece incapaz de resistir com firmeza, e mesmo as que conseguem, como já mencionei anteriormente, frequentemente consideram essa resistência como uma prova definitiva de sua força, sentindo-se tranquilas após isso. Entretanto, em minha opinião, isso é apenas o início do caminho e o verdadeiro trabalho começa quando, mais adiante, elas precisam se expor e começar a interagir com os outros. No relacionamento com os outros, o orgulho e a falsidade não podem ser tolerados. Ou talvez nem seja o orgulho. Tentam direcionar para as outras pessoas o mesmo egoísmo e rebeldia que dirigiam aos seus familiares. E é aí que muitos falham. Então o que fizeram perde sua legitimidade. Eu também percorri esse caminho antes. Fui mal compreendida e me irritei, mas essa incompreensão era inevitável. O caminho a ser seguido não pode ser evitado. Ao compartilhar aqui minhas experiências internas, espero que possam, em uma disposição um tanto antiquada, ser de alguma ajuda, ainda que pequena, para aqueles que também precisarão trilhar esse caminho. No entanto, não sei se isso é tão importante para todos como é para mim. No fim, este texto é apenas uma reflexão sobre meus próprios erros.
(Dai san teikoku, no. 39, cinco de maio de 1915)