A carta no barril de cimento

Hayama Yoshiki

Tradução: Rafael da Costa Palma Cabral

Revisão e cotejo: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

Texto original: "Sementodaru no naka no tegami". In: Bungei sensen, no. janeiro, Tóquio, 1926. Disponível em: Aozorabunko. Acesso em: 15/11/2024.

Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).

Matsudo Yozô abria o cimento. Não se notava por sua aparência, mas seus cabelos e a área abaixo do nariz estavam cinza, cobertos de cimento. Queria enfiar o dedo no nariz e tirar aquela poeira, que deixava os pelos duros como vergalhões de concreto armado, mas a betoneira derramava cerca de 300l de cimento por minuto, sem parar. Para dar conta, não podia se dar ao luxo de limpar o nariz.

Passou onze horas incomodado. Nesse período em que não pode limpar o nariz, parou de trabalhar apenas duas vezes: para o almoço e para o descanso das três horas. Ao meio dia, estava com muita fome. Depois, ficou ocupado limpando a betoneira. Quando finalmente conseguiu limpar o nariz, ele parecia tão endurecido quanto um nariz de gesso.

Ao fim do expediente, do barril que carregava com as mãos já exaustas, surgiu uma pequena caixa de madeira.

“O que é isso?”, pensou, achando um pouco suspeito, mas não podia perder tempo com aquilo. Com uma pá, jogou o cimento em uma caixa e o mediu. Em seguida, transferiu o cimento da caixa para um carrinho de mão e voltou imediatamente a esvaziar o barril.

— Pera aí! Não tem sentido sair uma caixa dum barril de cimento!

Então ele pegou a caixinha e a jogou dentro do bolso do avental. Era leve.

— Leve assim, dinheiro não deve ser...

Antes que pudesse pensar mais a respeito, Yozô precisou esvaziar o próximo barril e medir a próxima caixa. Logo a betoneira começou a esvaziar. Quando o concreto acabou, acabou também o expediente.

A primeira coisa que Yozô fez foi lavar o rosto e as mãos com a água de uma mangueira ligada à betoneira. Então, com o bentô pendurado no pescoço, voltou para a nagaya, pensando apenas em comer e beber até cair. Haviam construído a maior parte da usina. Erguendo-se na penumbra do entardecer, o Monte Ena estava coberto por um pálido manto de neve. Seu corpo suado, de repente, começou a sentir um frio congelante. As águas do rio Kiso rugiam pelo caminho, a espuma branca mordiscando seus pés.

— Tsc! A mulher já tá barriguda outra vez... assim não dá... — Quando pensou na casa tomada de crianças, no bebê que nasceria naquele frio, na mulher que engravidava descontroladamente, ficou completamente desolado.

— Dos 1,90 ienes que recebo por dia, 0,50 vão pro arroz. São dois shô de arroz por dia. Merda, só de casa e roupa são mais 0,90! Com que dinheiro eu vou beber?!

De repente, Yozô se lembrou da caixinha em seu bolso. Ele a esfregou na parte de trás das calças para limpar o cimento.

Não havia nada escrito. Ainda assim, estava firmemente pregada.

— Que coisa suspeita, pregar a caixa desse jeito...

Yozô a bateu contra uma pedra. Como ela não quebrou, ele a pisoteou violentamente. Vez após outra, descontando nela toda a sua frustração, como se tentasse esmagar o próprio mundo.

De dentro da caixinha surgiu um pedaço de papel envolto em trapos.

Nele estava escrito:

“Sou uma operária que costura sacos de cimento na Empresa de Cimento N. Meu namorado trabalhava jogando pedras no triturador. Na manhã do dia 7 de outubro, ao jogar uma pedra muito grande, ele acabou caindo dentro do triturador junto com ela.
Seus colegas tentaram salvá-lo, mas, como quem se afoga no mar, meu namorado afundou por entre as pedras. Seu corpo e a pedra se despedaçaram juntos, transformando-se em pedrinhas vermelhas que caíram sobre a esteira. A esteira seguiu para o tambor de trituração. Lá, junto com grânulos de aço, foram triturados em pedaços minúsculos em meio a intensos gritos de maldição. Por fim, tudo foi queimado e transformado em cimento com sucesso.
Os ossos, a carne, até mesmo sua alma, foram reduzidos a pó. Tudo o que meu namorado foi um dia se tornou cimento. Tudo o que restou são estes trapos de sua roupa de trabalho. Agora, eu costuro os sacos que carregarão meu amado.
Meu namorado se transformou em cimento. E eu, no dia seguinte, escrevi esta carta e a escondi dentro deste barril.
Você é operário? Se for, e minha história tocar seu coração, por favor, me responda. Para o que foi usado o cimento dentro deste barril? Eu gostaria de saber. Quantos barris de cimento meu amado se tornou? Por quantas pessoas foi usado? Você é pedreiro? Construtor, talvez? Eu não suportaria ver meu namorado se tornar o corredor de um teatro, ou o muro de uma grande mansão. Mas o que eu poderia fazer para impedir? Se você for operário, por favor, não use este cimento em tais lugares.
Não, tudo bem, use-o onde quiser. Meu amado, onde quer que seja enterrado, com certeza fará algo bom pelo lugar. Não me importo, ele era uma pessoa de caráter firme, então com certeza fará um trabalho à altura.
Ele era uma pessoa boa e gentil. Era forte e viril. Era jovem, acabara de fazer vinte e seis anos. Não tenho palavras para expressar o quanto me amava. Ainda assim, ao invés de vesti-lo com um quimono branco para o seu velório, eu o vesti com um saco de cimento! Ele não foi colocado em um caixão, foi colocado em um forno industrial.
Como posso me despedir dele? Ele está enterrado por toda parte, ao leste e ao oeste, perto e longe.
Se você for um jovem operário, por favor, me responda. Em troca, eu lhe darei um pedaço da roupa de trabalho que meu amado usava. É o mesmo pedaço que envolve esta carta. Este pedaço de pano não carrega apenas poeira de pedra, também está impregnado com o suor do seu trabalho! Como ele me abraçou forte usando essa roupa...
Por isso, eu lhe peço: me informe a data em que este cimento foi usado, o endereço completo e para que tipo de lugar foi destinado, além do seu nome, se isso não lhe causar incômodo. E, por favor, tenha cuidado. Adeus.”

Matsudo Yozô sentiu o fervilhar da agitação das crianças ao seu redor. Olhando o endereço e o nome ao fim da carta, virou de uma só vez o saquê que havia servido na tigela de chá.

— Quero beber até esquecer tudo! Até destruir tudo, acabar com tudo! — berrou, em um rompante de fúria.

— Se você beber até esquecer tudo e destruir tudo, o que será das crianças? — perguntou sua esposa.

Em sua enorme barriga, ele vislumbrou o sétimo filho.

(Janeiro de 1926)

Notas