Ombro a ombro
Tradução: Gustavo Perez Katague
HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto
Primeira publicação da tradução: Katague, Gustavo Perez. Ombro a ombro: uma tradução comentada para a obra Takekurabe (1896) da autora Higuchi Ichiyô (1872-1896). Dissertação de mestrado, USP, p. 65-158, 2024. Disponível em: Banco de dados USP . Acesso em: 07/11/2024
Texto original: "Takekurabe". In: Bungei kurabu, Tóquio, 1896. Disponível em: Aozorabunko. Acesso em: 07/11/2024.
Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).
Sumário
Capítulo 1
Ao voltar o olhar, os galhos suspensos do salgueiro da despedida ao portão principal se fazem distantes, entretanto, fica evidente o alvoroço vindo do segundo andar, de onde as lamparinas são refletidas no fosso. Sendo possível imaginar a imensurável exuberância por conta do incessante vaivém dos riquixás, as pessoas que moram por ali costumam dizer que o nome do bairro, Daionjimae, passa ares de santidade budista, mas que na realidade é um lugar extremamente vivaz.
Após virar na esquina do santuário Mishima não há sequer uma casa que se preze, mas uma fileira de dez, vinte casas nagaya geminadas com os beirais dos telhados decadentes. Em um lugar nem um pouco propício para o comércio segundo os rumores, são curiosos os aspectos dos papéis cortados nos mais peculiares formatos e dos palitos de madeira curvados para trás, que parecem coloridos espetos grelhados pintados com pó de giz, ao lado de fora das portas venezianas semicerradas. Não apenas em uma casa ou outra, famílias inteiras se dedicam ao trabalho com afinco, estendendo-os ao alvorecer e recolhendo-os ao anoitecer. E se lhes perguntassem o que era aquilo, responderiam:
— Não está sabendo? É a preparação dos amuletos kumade para os visitantes gananciosos que vão aos festivais do dia do Galo no décimo primeiro mês, no santuário Ōtori.
Quem se dedica sem parar ao longo do ano, começando a partir da época em que se recolhem as decorações de Ano Novo, são os verdadeiros comerciantes. Já os que o fazem como trabalho temporário, mancham os pés e as mãos de tinta a partir do verão, e quem sabe destinam o dinheiro das vendas nas confecções das roupas de Ano Novo.
— Ó, venerável divindade Ōtori, se concedeis sorte para quem compra, concedei a nós, que os fazemos, dez mil vezes mais — talvez dissessem, mas não deve ser o caso, pois não se ouvem boatos de gente rica naquela região.
Muitas das pessoas que moram ali têm alguma relação com o distrito. Em um reduto de entretenimento de porte inferior, um marido parece ocupado com o tilintar das plaquetas de madeira dos armários para controle de calçados. Ao sair depois do anoitecer, vestindo um agasalho haori, sua esposa faísca pederneiras às suas costas, rezando por segurança, com o semblante de como se aquela pudesse ser a última despedida. Isso porque seu marido poderia ser arrastado para uma sangrenta briga alheia, ou confundido e forçado a ser uma das partes de um duplo suicídio. Mas, assim por dizer, é curioso como ele parece estar dando apenas uma volta por aí, mesmo arriscando a vida com um trabalho extremamente perigoso e fácil de acumular rancores. As filhas ou são camareiras nos bordéis ōmagaki de primeira classe, ou empregadas em umas das sete casas de chá, ou estão em treinamento, correndo a passos rápidos e curtos com as lanternas de papel que servem como propaganda dos estabelecimentos. Virariam alguém após o treinamento? Não é estranho considerar que, de qualquer forma, iriam parar nos melhores palcos do distrito? Já passada dos trinta, vestindo um quimono asseado de listras verticais de algodão e meias azul-escuras, uma refinada mulher de meia idade se mostra ocupada, fazendo seus calçados estalarem ao carregar pacotes sob os braços.
— A volta é longa, vou entregar por aqui — a instrução fica clara através da ponte levadiça sobre o fosso, perto das casas de chá. Sendo, na região, uma das chamadas costureiras de encomendas, dispensa dizer o que há no embrulho.
Os costumes ali são diferentes dos outros locais. Poucas mulheres usam o obi propriamente com o laço atrás, tendo a maioria preferência pelos de estampa particular, mais largos, usando-os somente como uma faixa, sem nó. O estilo cai bem para as mulheres de meia idade, mas deve haver quem cubra os olhos diante de uma aparência dessas como uma jovem impertinente de quinze, dezesseis anos, soprando uma casca de fisális na boca. São, entretanto, traços inevitáveis do distrito. Ontem lembrada pelo nome artístico, uma certa mulher conhecida como Murasaki em uma das piores casas kashimise ao lado do fosso, hoje, sem familiaridade com os negócios, abre uma barraca noturna de yakitori junto com um rufião local, e, ao falir, volta mais uma vez ao velho lar no distrito. De alguma maneira, consideram-se mulheres assim mais encantadoras do que as normais.
Não há criança que não seja instigada por um meio como esse. Veja como exemplo a Avenida na época do festival Niwaka, em setembro durante a primavera. A mãe de Mêncio ficaria impressionada em ver o quão rápido eles aprendem os trejeitos de Rohachi e os gestos de Eiki. Ao receberem elogios, dizem:
— Nessa noite é só uma volta!
A audácia começa a aparecer a partir dos sete, oito anos. Ao atingir os quinze anos, os jovens se mostram precoces e convencidos, logo colocando a toalha de mão sobre o ombro e cantarolando canções populares do distrito. Passam a impressão de que são capazes de qualquer coisa nas gincanas esportivas ao entoar as marchas dos bombeiros sob o ritmo das músicas escolares. Apesar de o magistério ser difícil até mesmo nas melhores circunstâncias, o trabalho árduo dos professores é reconhecido pela Ikueisha, próxima a Iriya, que, embora seja uma escola privada, conta com aproximadamente mil alunos. Seu pequeno prédio é cheio de atividades cerimoniosas e a popularidade dos professores se faz cada vez mais aparente, ao ponto de a palavra “escola” se tornar sinônimo daquele lugar. Dentre as várias crianças que a frequentam, algumas, cujos pais talvez sejam bombeiros construtores, dizem:
— Meu pai fica no posto de sentinela da ponte levadiça, do lado de fora do fosso! — diz um, sabendo as artimanhas da profissão, apesar de nenhum adulto ter lhe ensinado.
— Opa! Você quebrou o ofendículo de bambu do muro! — reclama de pirraça o filho de um advogado vigarista, imitando acrobacias como se estivesse no topo de uma escada de mão.
— Seu pai é uma mula, hein! — há também criança de boa índole cujo rosto se avermelha ao ouvir esse apelido cruel que o pai levava pelo trabalho que faz.
— Senhorzinho, senhorzinho! — é curioso também, nos alojamentos dos bordéis, como se bajulam crianças que agem como se fossem pretensiosos nobres, aparentando riqueza com seus gorros felpudos e roupas ocidentais vistosas, pérolas dos pais que, com frequência, visitam os bordéis a negócios.
Dentre as muitas crianças, havia Shinnyo, do templo Ryūge, cujos fartos cabelos negros estavam com os dias contados. Eventualmente, as mangas do seu manto haveriam de ser tingidas de preto, seja por sua própria vocação, ou pela herança do ofício de seu pai. Apesar de estudioso, seus colegas lhe armavam diversas travessuras, desconfiados da sua natureza reservada. Houve vez em que, pendurando a carcaça de um gato morto com uma corda, sentenciaram:
— Já que é o seu dever, confiamos em você para dizer as últimas palavras.
Antigamente era assim. Hoje em dia, como o melhor aluno da escola, de jeito nenhum alguém faria algo do qual pudesse se arrepender. Com quinze anos, de estatura média e cabelos curtos quase raspados, pode ser apenas uma impressão, mas ele se distinguia do ordinário. Apesar de a leitura japonesa de seu nome ser Fujimoto Nobuyuki, pode-se dizer que, de alguma forma, suas atitudes eram como as de um discípulo de Buda.
Capítulo 2
No dia vinte de agosto, quando ocorre o festival do santuário Senzoku, é de se admirar o entusiasmo dos jovens que arrastam os carros alegóricos durante o desfile na cidade, com um vigor de como se fossem escalar a barragem até o interior do distrito. Deve-se redobrar a atenção por esses lados, uma vez que os que consideramos crianças aprendem de ouvido sobre uma coisa ou outra. Por sua vez, o yukata é vestido como uniforme por cada uma delas. É de se chocar com a impertinência delas ao perguntá-las sobre isso.
Chōkichi, o filho do chefe dos bombeiros, era o líder das crianças arruaceiras da autoproclamada turma do Beco. Tinha dezesseis anos e, desde que trabalhou como condutor do desfile no festival Niwaka, representando seu pai, passou a ter a arrogância nas alturas. Dava ordens de forma detestável, com o obi amarrado mais abaixo do que de costume, como se fosse um adulto, e com as respostas na ponta da língua. Ouvia-se até as esposas dos outros bombeiros praguejarem de volta:
— Ah, se esse não fosse o filho do chefe…
Fazia valer a sua autoridade com seu espírito completamente centrado em um egoísmo que mal cabia em si, mas tinha como rival o cortês Shōtarō, do estabelecimento Tanaka da Avenida principal, três anos mais novo, de família abastada e benquisto por todos.
“Eu frequento a escola privada, e outro, que vai para a escola pública, faz uma cara como se fosse de uma família superior, apesar de cantarmos as mesmas músicas escolares. Com o apoio dos adultos tanto no ano passado como no retrasado, esse aí se engajou mais do que eu nos planos do festival, que é organizado de forma a dificultar brigas. Se este ano for para perder dele de novo, quem seria? Chōkichi, do Beco! Vão difamar a minha força, achar que ela é só aparência, e seriam poucos a fazer parte da minha turma quando for para nadar no lago Benten. A gente ganha quando a questão é força, mas é decepcionante como uns aí tipo o Tarokichi e o Sangorō, que eram da nossa turma do Beco, tapeados pelo jeito gentil daquele outro de Tanakaya e ainda impressionados por ele ser bom em questões escolares, se juntaram àqueles lá em segredo. O festival é depois de amanhã, e, no fim, se realmente tivermos indícios de fracasso, vou entrar em desespero, vou ficar tão bravo, mas tão bravo, que vou acabar com a cara daquele Shōtarō, o que vai ser fácil de fazer mesmo que me custe um olho ou um braço. Se os que me apoiam, como o Ushi, o puxador de riquixá, o Bun, o artesão de cordões para cabelo, e o Yasuke da loja de brinquedos, estiverem ao meu lado, definitivamente não iremos perder. Ah, mas antes disso, aquela pessoa, se ele… se o Fujimoto estiver do meu lado, ele vai me ajudar com a esperteza dele”.
Assim, próximo ao entardecer do décimo oitavo dia, afastando os mosquitos que ruidosamente pairavam ao redor de seus olhos e boca, foi devagar em direção ao quarto de Shinnyo a partir do jardim de opulentos bambus próximo a Ryūgeji.
— Nobu-san, tá aí? — disse, mostrando o rosto — As pessoas dizem que o meu negócio é violência. Provavelmente estão certas, mas não deixa de ser decepcionante. Viu, escuta isso, Nobu-san. Começou com a briga de lanternas de papel no ano passado, entre os amigos do meu irmão mais novo e um nanico da turma do Shōtarō, quando acabaram destruindo a lanterna do pequeno e jogando os restos pro ar na euforia, e, vê se pode, tendo a audácia de sair voando em debandada. Quando alguém disse: “Olha lá, a baderna de gente do Beco!”, o idiota da loja de dango, fazendo cara de adulto, ficou praguejando: “Será que não têm vergonha não? Esses aí são o pior dos piores, tudo uns bundas de porco!”. Eu estava no desfile do festival do santuário Senzoku durante a briga, assim fiquei sabendo disso depois. Quando disse que ia dar o troco imediatamente, levei um esporro do meu pai e tive que engolir o sapo. Veja bem, como você já sabe, no ano retrasado, os jovens da Avenida se reuniam na papelaria e faziam suas improvisações de peças de comédia e sabe-se lá o que mais. Naquela época, quando fui lá para ver, ouvi a audácia deles dizendo algo como “o pessoal do Beco não têm mais o que fazer?”. O fato de tratarem somente o Shōta como espectador também me deu nos nervos. Não importa quanto dinheiro ele tenha, um agiota de uma loja de penhores medíocre não é dono de nada! É melhor para o mundo linchar um cara desses até a morte do que deixá-lo viver. No próximo festival, acho que nós temos que armar uma briga e dar o troco, não importa o que aconteça. Por isso, eu te peço em nome da amizade, Nobu-san. Eu sei que você não gosta dessas coisas, mas é que com a sua ajuda vamos recuperar a honra da turma do Beco. Então, vai? Você não me ajuda a acertar as contas com esse Shōtarō pretensioso das canções de escola pública? O mesmo vale para você, quando me chamam de estudante meia-boca de escola privada. Por isso, eu te imploro, por favor! Considere ajudar, carregue uma das grandes lanternas de papel em nosso nome! Eu me sinto tão humilhado, do fundo do meu coração. Vou ficar em uma posição difícil se eu perder para o Shōtarō da próxima vez! — terminou, extremamente frustrado, balançando os grandes ombros.
— Mas eu sou um fracote.
— Não tem problema ser fraco!
— Eu não consigo nem balançar a lanterna de papel!
— Tudo bem, não precisa carregar!
— Mas, tudo bem se eu entrar pra sua turma e você perder pra ele?
— Não tem problema em perder. Se isso acontecer, vou desistir porque já não há o que fazer. Tudo bem também se você não fizer nada, porque só de parecer que você está com a gente, o nome da Turma do Beco vai ficar popular que é uma beleza! Apesar de eu ser assim, bronco, você é inteligente, e se o pessoal de lá fizer provocações em chinês ou qualquer outra do tipo, revide em chinês, por nós! Ah, que sensação boa, me sinto aliviado! Se você ajudar a gente com o que sabe, vai valer por mais de mil. Obrigado, Nobu-san — disse, com palavras gentis que não lhe eram de costume.
Um deles, o filho de um bombeiro, com seu obi curto informal ao estilo dos trabalhadores e seu zōri calçado de modo desleixado. O outro, vestido como um monge, com um haori de malha de algodão refinada azul-escura quase verde e um obi lilás. Pensavam em coisas opostas e tinham sempre uma tendência às discordâncias nas conversas, mas o sacerdote mestre e sua esposa tinham certo favoritismo a Chōkichi pelo fato de ele ter dado ali, nas cercanias de Ryūgeji, o seu primeiro choro ao nascer. Havia também um desconforto quando falavam mal da escola privada porque ambos a frequentavam, e tinham pena de Chōkichi, que não conseguia fazer amigos de verdade por não ser um afável inato. A outra turma tinha apoio até dos jovens das cercanias, e era um fato que a culpa do fracasso de Chōkichi se dava por conta dos próprios envolvidos com Tanakaya. Prevendo ser requisitado como obrigação, era difícil para Shinnyo recusar.
— Então, eu entro para a sua turma, não é mentira quando digo isso. Mas, para ganhar, faça o possível para evitar as brigas! Se no fim os outros vierem comprar briga, aí não tem jeito. Hmm, até porque não é difícil dar uma surra em alguém como o Shōtarō de Tanakaya.
Esquecendo-se de que não tinha força, Shinnyo tirou de uma gaveta da mesa um objeto de lembrança de Quioto que havia ganhado, uma espada curta Kokaji, mostrando-a.
— Parece bem afiada! — disse Chōkichi com um semblante bisbilhoteiro — Não é perigoso ficar mexendo com isso?
Capítulo 3
Com a franja em um grande topete pesado e um coque firme ao topo da cabeça expondo as raízes dos cabelos, longos a alcançar os pés se soltos, seu penteado shaguma, apesar do nome assustador, é bastante popular para a época e vai também ao encontro do gosto das moças de boa família. De pele alva, seu nariz era delicado. Seus lábios eram firmes e, embora não fossem pequenos, não eram feios. Olhando um a um os detalhes, estava longe de ser um exemplo de moça bonita, mas tinha uma voz fina e suave. A vivacidade dos seus trejeitos era agradável, e vertia graciosidade ao olhar para os outros.
— Quero vê-la daqui três anos! — diziam os jovens que saíam do distrito ao ver a figura dela voltando do banho público pela manhã com a toalha de mão pendurada na nuca branca, vestida com um grande yukata de borboletas e pássaros tingidos sobre a cor cáqui, um obi de dois tecidos, cetim preto em uma face e tie-dye na outra, amarrado mais acima da cintura, e calçando aos pés um tamanco alto de madeira laqueada, algo não muito comum de se ver naquela região.
Nascida em Kishū, Midori, do estabelecimento Daikoku, era adorável até ao falar com seu sotaque. Não houvesse quem não simpatizasse com sua natureza generosa, a maior de todas. Não era à toa o peso de sua bolsa com moedas de prata, que em nada se parecia com as utilizadas por crianças, resultado da tamanha prosperidade de quem sua irmã mais velha veio a se tornar. Como lisonja à sua irmã, por extensão, as madames e assistentes lhe davam algum dinheiro.
— Aqui, Mii-chan, compre uma boneca para você! Não é muito, mas deve dar ao menos para uma bola — diziam, sem exigir nenhuma gratidão.
Midori, por sua vez, sem se sentir especialmente agradecida, naturalmente mostrava sua generosidade como ao presentear bolas de borracha às vinte colegas de sala de aula. Causava alegrias também ao comprar todos os brinquedos não vendidos da papelaria que sempre frequentava. No entanto, com gastos extravagantes todos os dias e noites, que não condiziam com sua idade e posição social, por fim, em que tipo de adulta viria a se tornar?
Seus pais, entretanto, eram coniventes e nunca a reprimiam. O dono de Daikokuya também a tinha em grande consideração, estranhamente, pois, pelo que se escutava, ela nem era sua filha adotiva e nem sua parente. Convencidos a deixar tudo para trás pelo mestre do bordel, que viajara a Kishū para fazer uma avaliação profissional da irmã mais velha na época em que fora vendida, os outros três membros da família, desejando fazer a vida por estes lados, colocaram suas roupas de viagem e vieram. Mais do que isso, quais outros motivos teriam para vir? Agora, supervisionam o dormitório das garotas, a mãe costura as roupas das prostitutas e o pai é secretário em um bordel de menor reputação.
Além das atividades artísticas e manuais, era permitido a Midori frequentar a escola regular. Fora isso, de acordo com a sua disposição, passava metade do dia no quarto da irmã e a outra metade fora de casa brincando pela vizinhança, ouvindo os shamisen e os taiko, ou observando as cores chamativas vermelha e roxa dos padrões das vestimentas das prostitutas. Quando nova na cidade, houve vez em que chorara por três dias e três noites, humilhada pelo deboche de algumas meninas da cidade ao andar com a gola tie-dye lilás do interior de seu quimono. “Caipira, caipira!”, elas riam. Mas agora, quem zombava dos outros era ela, e mesmo ridicularizando frente a frente o senso de moda das pessoas, não havia quem a respondesse.
Com o festival do vigésimo dia por chegar, os amigos, cheios de entusiasmo, a cobravam por ideias legais.
— Bolem um plano, cada um de vocês. Seria legal se fosse algo que a multidão vá gostar, não é? Eu pago, não importa o quanto custar! — disse Midori, generosa como sempre, tomando a responsabilidade sem se preocupar com as contas. Se não fosse pela incomparável bondade da rainha das crianças, que era muito mais eficaz que os adultos.
— Vamos fazer um chaban! A gente pega emprestado o espaço de alguma loja onde quem estiver passando na rua consiga ver — disse um deles.
— Bobagem! Melhor do que isso, vamos fazer um omikoshi! Um de verdade, como o que está decorado nos fundos da Kabataya. Quem se importa com o peso? Vamos, vamos, sem moleza! — disse um menino usando uma faixa trançada à testa.
— Olha, é uma chatice pra nós ver apenas vocês meninos carregando e se divertindo. Não deve ter graça nem pra Midori-san. Em todo caso, façam do jeito que quiserem — disse uma do grupo das meninas, deixando de lado o festival e dando a entender, pelo modo de falar, o interesse delas em ir a Tokiwaza.
— E uma lanterna mágica? Não querem fazer uma lanterna mágica? — perguntou Shōta de Tanakaya — Na minha loja tem poucas placas de vidro, e as que faltarem a Midori-san poderia gentilmente comprar para nós. Daria pra fazer as projeções na papelaria? Eu posso operar a lanterna, e o Sangorō, do Beco, poderia fazer a narração. O que acha, Midori-san? — disse, girando seus olhos graciosos.
— Ah, isso parece interessante! Com a narração do San-chan, com certeza vai todo mundo rir! Aliás, com aquela cara dele vai ser ainda mais engraçado!
Resolvido o arranjo dos planos, Shōta ficou encarregado de comprar os itens que faltavam. Puseram-se a suar com o trabalho duro. Por fim, era quase o dia do festival, e até mesmo a turma do Beco ficou sabendo do planejado.
Capítulo 4
Apesar de nunca faltar na região os rufos dos tambores e os tons dos shamisen, o festival é algo especial, com uma vivacidade única durante o ano, atrás apenas dos festivais dos dias do Galo. É curioso ver o espírito competitivo entre os santuários Mishima e Ono Teru, cada um se recusando a ser inferior ao outro por serem vizinhos. Os moradores dos Becos, assim como os da Avenida, usam em conjunto o mesmo yukata de algodão mooka com os nomes de suas localidades escritos à mão, mas há quem resmungue que o padrão do ano anterior era melhor. Pendurados em seus fibrosos tasuki, feitos com o linho mais grosso possível e tingidos de cor ocre das gardênias secas, os jovens, que não chegam aos catorze, quinze anos, ostentam diversos brinquedos de papel machê feitos aos formatos de daruma, corujas e cachorros, havendo quem tenha até mesmo onze deles pendurados. É divertido ver a coragem dos que saem correndo usando nada além das meias nos pés, fazendo tilintar os sinos, pequenos ou grandes, que levam às costas.
Separado do grupo, Shōta de Tanakaya vestia um casaco hanten de fios vermelhos que mostrava o nome da loja de sua família e um avental haragake azul escuro preso à sua nuca alva, vestes com as quais não era costume ser visto. Além disso, estava com um obi azul cadete amarrado bem firme, que, ao olhar atento, era feito em trama de seda trançada com duas camadas de tintura. Os emblemas tingidos em sua gola se sobressaíam, e na bandana amarrada por trás havia uma flor, daquelas usadas como enfeites nos carros alegóricos. Só se escutava o som de seu setta de tiras de couro, mas não estava com seus colegas que tocavam instrumentos na parada.
A noite às vésperas do festival ocorreu sem nenhum incidente, e ao entardecer do dia do festival, doze pessoas se reuniam na papelaria. Apenas Midori estava ausente pela demora no preparo da maquiagem noturna.
— Cadê ela, cadê? — repetia Shōta, entrando e saindo pela porta — Vai chamar ela, Sangorō. Acho que você nunca foi ao dormitório de Daikokuya, mas a Midori-san deve ouvir se você chamar pelo jardim perto da casa. Vai, vai!
— Então vou lá chamar. Acho que ninguém vai pegar a vela da minha lanterna se eu deixar ela aqui, não é? Shōta-san, peço para vigiar pra mim.
— Mas que tapado! Deixa de besteira e vai logo! — gritou Shōta, apesar de ser mais novo.
— Opa, vou indo nessa no Jirozaemon — e logo saiu em disparada como Idaten.
— Ai, que jeito mais estranho de correr o dele! — riram inevitavelmente algumas meninas que o acompanhavam com o olhar.
Atarracado, com a cabeça em formato de martelo, pescoço curto. Olhando de perfil, um nariz de batata saindo da testa proeminente, os dentes salientes para frente. Todos traços imagináveis pelo apelido, Sangorō. Apesar da pele de cor escura, o mais impressionante era o quanto seu espírito brincalhão transparecia em seus olhos, com suas afáveis covinhas em ambas as bochechas e sobrancelhas que pareciam com aquelas colocadas em brincadeiras fukuwarai. Por fim, um adorável garoto, livre de maldades. Sendo pobre, usava um quimono de mangas curtas, feitas de crepe de algodão awa.
— É que não deu pra conseguir um traje do festival a tempo — dizia para os amigos que não sabiam das suas condições.
Filho mais velho em uma família de seis crianças, dependia do trabalho árduo do seu pai como puxador de riquixá. Embora levasse os clientes até a via das Cinquenta Lojas, onde as casas de chá operam como vitrines, a triste situação financeira era inevitável. Desde o ano retrasado, quando fez treze anos, foi tido como braço direito da família e passou a trabalhar em uma loja de impressões em Namiki, mas não durou dez dias dada a sua personalidade preguiçosa, e muito menos conseguia manter o mesmo trabalho por um mês que fosse. Do décimo primeiro mês até meados da primavera, se ocupava confeccionando raquetes de hanetsuki em casa, e no verão ajudava na loja de gelo próxima ao posto de inspeção sanitária, onde se tornou favorito pois era bom em usar a voz para atrair clientes. Apesar de haver ainda o apelido maldoso, Mannenchō, colocado pelos amigos que o ridicularizaram ao vê-lo puxar o carro alegórico no festival Niwaka do ano anterior, o apelido Sangorō era sinônimo de alguém brincalhão, mas de boa índole, que ninguém detestava. Sua família carregava uma dívida de gratidão para com Tanakaya e, apesar dos juros diários que não eram baixos, não conseguiam ter ressentimento desse indispensável respaldo financeiro, que lhes era como uma luz no fim do túnel, uma tábua da salvação. Havia então um compromisso irrecusável quando chamado por Shōta para brincar com a sua turma. Contudo, ele havia nascido e crescido nos becos. O pedaço de terra onde morava era propriedade de Ryūgeji e os senhorios eram os pais de Chōkichi. Não podia dar as costas para a turma do Beco abertamente. Seria difícil realizar de forma discreta essa tarefa da turma da Avenida, enquanto os outros poderiam estar observando.
Sentado na papelaria, Shōta cantarolava entediado, em voz baixa, “O caminho oculto do amor”, e nisso a senhora da papelaria riu:
— É, não dá para bobear.
As bases das orelhas de Shōta se avermelharam sem motivo aparente. Disfarçando a vergonha, ele chamou em voz alta:
— Vamos lá, todo mundo! — e, ao sair correndo da papelaria, trombou com sua avó.
— Shōta, porque você não veio jantar? Você esquece de tudo quando está brincando, não sabia que já estou te chamando faz tempo? Criançada, deixa ele brincar com vocês depois — disse a avó à senhora da papelaria, agradecendo-a com um cumprimento.
Tendo a sua avó vindo pessoalmente para levá-lo para casa, Shōta não teve como reclamar. Assim que saíram, o ambiente foi tomado pela quietude repentina, embora a quantidade de pessoas ali mal houvesse mudado.
— Quando ele não está até os adultos se sentem mais solitários. Não é como o San-chan, que faz palhaçadas e piadas, mas ele cai nas graças das pessoas com um charme raro que as crianças das famílias ricas não têm.
— Deu pra ver, não é, como a viúva de Tanakaya é antipática. Ela já tem sessenta e quatro anos. Tudo bem que ela não usa maquiagem branca na cara, mas aquele tamanho de penteado marumage, aquela voz estridente. Ela não está nem aí para a morte de ninguém. Ela vai morrer por dinheiro ou duplo suicídio, quase certeza!
— Ainda assim, nós não somos nem páreo para ela. O poder do dinheiro. No fim, é o que todo mundo quer. Ouvi dizer também que os bordéis maiores do distrito têm grande dívida para com ela — conversavam duas, três mulheres, em pé na Avenida, estimando a fortuna alheia.
Capítulo 5
Um kotatsu portátil na calada da noite é cruel a quem espera, assim diz a canção de amor. O anoitecer de verão era refrescado pelo vento. Tendo dispersado o calor da tarde em um banho de ofuro, a filha estava diante do espelho que refletia seu corpo inteiro, enquanto sua própria mãe arrumava seus cabelos soltos. Mesmo sendo sua mãe, ela se sentava e se levantava repetidas vezes, apreciando a beleza da filha.
— Falta mais maquiagem na nuca — a mãe concluiu.
Ela vestia um quimono sem forro, com o frescor da seda azul clara tingida ao padrão yūzen e um obi de brocados de ouro. Passou um certo tempo até ficar pronta e calçar o geta deixado no jardim de pedra.
— Cadê ela, cadê? — procurava Sangorō, já na sétima volta em torno do muro do dormitório, após incontáveis bocejos. Tentava espantar os mosquitos que o picavam vorazmente na nuca e na testa. Já estava exausto quando Midori apareceu.
— Pronto! — ela disse. Sem falar nada, ele a pegou pelas mangas e partiu em disparada.
— Estou sem fôlego, meu peito está doendo! Não sei se consigo ir tão depressa assim, pode ir sozinho na frente! — gritou irritada. Por fim, chegaram separados na papelaria enquanto Shōta ainda estava ausente, jantando.
— Ai, isso não é legal! Não dá para começar com o projetor se ele não vier. Dona, aqui na loja vocês não vendem peças de tangram de papel cartão? Um jogo de Musashi e os dezesseis, qualquer coisa serve. A gente não pode é ficar à toa! — disse Midori, desolada, ao que de imediato as meninas tomaram algumas tesouras emprestadas e começaram a recortar. Os meninos, com Sangorō ao centro, começaram os ensaios do festival Niwaka.
Vendo o próspero norte do distrito,
a luz dos postes nos beirais,
sempre lotadas, as cinco divisões
Cantavam em uníssono, fazendo farra. Com boa memória, lembraram-se das palmas e dos gestos ensaiados nos anos anteriores sem nenhum erro. Dado o alvoroço de quase dez pessoas festejando, ouvia-se de dentro uma multidão à porta se perguntando o que seria aquilo.
— O Sangorō está aí? Vem aqui, rapidinho — disse Bunji, o artesão de cordões para cabelo. Sangorō foi despreocupado àquela voz familiar, cruzando para fora da linha da porta.
— Opa, cheguei.
— Seu traidor sem-vergonha, sujando o orgulho do Beco! Agora você vai ver, isso não vai ficar assim! Adivinha? Chōkichi aqui! Vai se arrepender por ser tão babaca! — disse já cruzando um soco no rosto de Sangorō.
— Ugh!
Atordoado, Sangorō tentou fugir, mas foi pego por trás da gola e puxado de volta pelo bando do Beco.
— Esfolem esse Sangorō até ele morrer!
— Arrastem o Shōta para fora e acabem com ele!
— Não vai fugir não, fracote!
— Não deixem barato para o idiota da loja de dango também!
O alvoroço fervia como um turbilhão. As lanternas de papel nos beirais do telhado da papelaria eram derrubadas com facilidade, e até as penduradas no teto viraram um perigo.
— Parem de brigar na frente da loja! — a senhora da papelaria gritou alto, mas não havia nem como não terem escutado. Devia haver umas quatorze, quinze pessoas, brandindo as varas de suas lanternas o mais forte que podiam, passando da delinquência à fúria descontrolada com pisões dos pés enlameados, até verem que o verdadeiro rival, Shōta, não estava lá.
— Onde esconderam ele?
— Para onde ele fugiu?
Tendo cercado Sangorō, Chōkichi perguntava entre socos e chutes.
— Não vai falar, é? Não vai falar? Vai ter que falar!
Irritada, Midori empurrou para os lados aqueles que a tentavam impedir de chegar à frente.
— Olha aqui, vocês aí erraram feio com o San-chan! Se querem brigar com o Shōta-san, briguem com ele! Ele não fugiu e nem se escondeu, não estão vendo que ele não está aqui? Esse é o lugar que eu venho pra me divertir, não pra receber ordem de vocês. Mas como você é péssimo, Chōkichi. Por que bater no San-chan e ainda por cima derrubar o menino? Se você está com rancor, vem bater em mim, seu alvo agora sou eu. Dona, não me impeça, por favor! — esbravejou, contraindo-se em angústia.
— Mas que vadia, fazendo conversinha fiada! Seguindo os passos da irmã para mendigar o dinheiro dos clientes! O inimigo certo para você é isso aqui!
Por trás das pessoas aglomeradas, Chōkichi pegou seu zōri imundo e o arremessou com uma pontaria perfeita, atingindo a testa de Midori com força. Em pé, com a expressão do rosto alterada e machucada, foi segurada pela senhora da loja.
— Isso é pra você aprender! A gente tem do nosso lado o Fujimoto de Ryūgeji. A nossa vingança não tem hora pra acontecer, sua idiotinha fracote e covarde. E você, quando voltar pra casa, fica esperto porque a gente vai estar à espreita no escuro dos Becos! — disse, jogando terra do chão em Sangorō.
Logo em seguida ouviram-se passos. Alguém havia relatado à polícia, que chegou só então.
— Hora de ir!
Ao ouvir a voz de Chōkichi, Ushimatsu, Bunji e as mais de outras dez pessoas mudaram o rumo, dispersando-se em passos rápidos, havendo quem se esgueirasse pelas vielas como atalho.
— Mas que droga! Que droga, que droga, que droga! Chōkichi, Bunji, Ushimatsu, seus desgraçados, por que não me mataram logo de uma vez? Não sou ninguém menos que Sangorō, não ia apenas morrer, ia virar um fantasma e assombrar vocês até a morte! Você vai ver, Chōkichi!
Sangorō praguejava enquanto lágrimas cheias vertiam dos olhos. E ainda, por fim, de repente começou a chorar em voz alta. Seu corpo inteiro parecia estar em dor, as mangas da sua roupa rasgadas em várias partes, suas costas cobertas com areia de cima a baixo. Nada menos que perplexa e sem nem mesmo conseguir interromper a briga, a senhora da papelaria, até então amedrontada e paralisada com horror daquela bestialidade, correu em sua direção e o ajudou a se levantar, tirando a areia das costas dele com as mãos.
— Paciência, paciência. No fim eles estavam em muitos, e do nosso lado não tinha ninguém forte. Você sabe que mesmo um adulto brigando no seu lugar não ia dar conta deles. E ainda bem que você não teve nenhum machucado mais grave. No mais, agora as emboscadas no caminho são perigosas, que bom que o senhor guarda que chegou a tempo, e, se ele puder te acompanhar até em casa, vamos ficar todos tranquilos. Então, foi assim… — a senhora da loja fez um breve relato do caso de até então ao guarda.
— Te acompanho agora mesmo, é o meu trabalho — disse o guarda, tomando a mão de Sangorō.
— Não, não, posso voltar sem ajuda. Volto sozinho mesmo — disse Sangorō, como que encolhendo.
— Não há do que ter medo. Vou só te acompanhar até a sua casa, não precisa se preocupar — disse o guarda com um sorriso, dando tapinhas na cabeça de Sangorō, que cada vez mais se encolhia.
— Meu pai vai ficar bravo comigo quando ele souber da briga, porque os pais do Chōkichi são os donos da nossa casa — disse Sangorō, ainda mais desanimado.
— Então eu te levo até o portão principal. Não vou fazer nada que possa te deixar encrencado!
Ver os dois partindo juntos foi um alívio para as pessoas ali presentes, mas, sem saber como ele o fez, Sangorō se soltou da mão do guarda quando estavam à esquina dos becos e fugiu correndo o mais rápido que podia.
Capítulo 6
— Que coisa rara, será que não vai nevar em um dia de sol escaldante como esse? Você, sem vontade de ir à escola, Midori? Está de mau humor? Você não terminou o café da manhã, quer que eu peça algo na loja de sushi depois? Você está sem febre para ser gripe. Parece cansada da farra de ontem, deixa que a mãe faz a visita matinal ao santuário Tarō Inari no seu lugar. Tá tudo bem — disse a mãe à Midori.
— Não, não. Eu que fiz a prece pelo sucesso da minha irmã, não vou ficar tranquila se eu mesma não for fazer a visita. Me dá dinheiro para a oferenda? Vou e já volto — disse Midori, saindo às pressas para fora de casa.
Fazendo soar o sino pendurado em frente ao santuário em Nakatanbo, ela juntou suas mãos e fez uma prece que ninguém além dela saberia qual é. Cabisbaixa desde que saiu de casa, voltava pelos caminhos entre os arrozais quando Shōta a viu. Ele a chamou de longe, correu na direção dela até alcançar a manga de seu quimono.
— Midori-san, me desculpe por ontem à noite! — disse Shōta de repente.
— Você não tem nada pelo que pedir desculpas.
— Ainda assim, é de mim que eles não gostam, o alvo da briga era eu. Eu não teria voltado para casa se não fosse pela minha avó que veio me chamar, e o Sangorō não teria apanhado daquele jeito tão absurdo. Essa manhã, quando fui até a casa dele para vê-lo, ele estava chorando inconformado. Só de ouvir o que aconteceu eu já fico abatido. E aquele traste do Chōkichi, jogou o zōri no seu rosto, não foi? Aquele idiota, a delinquência dele passou dos limites. Mas, Midori-san, por favor me desculpe! Não foi como se eu soubesse do que ia acontecer e tivesse fugido. Eu engoli a janta, e quando ia sair para a Avenida, minha avó me disse que ia ao banho público. A confusão toda deve ter acontecido enquanto eu estava tomando conta da casa. De verdade, eu não sabia de nada — Shōta se desculpava profundamente como se fosse culpado por toda a situação.
— Não está doendo? — Shōta subiu os olhos à testa de Midori, que sorriu com leveza.
— Nada que vá deixar uma cicatriz. Mas apesar disso, Shō-san, não diga pra ninguém que o Chōkichi me acertou com o zōri, mesmo que perguntarem. Se por acaso minha mãe ouvir falar disso, eu vou levar uma bronca. Nem mesmo meus pais levantam a mão para mim. Ter a testa suja de lama do zōri de um cara como Chōkichi seria igual a ser pisoteada — lamentou-se, virando o rosto para o outro lado.
— De verdade, me desculpe. A culpa é toda minha. Por isso peço desculpas. Você não pode recuperar seu bom humor? Eu vou ficar mal se você se zangar comigo.
Sem perceber, eles haviam chegado aos fundos da casa de Shōta enquanto conversavam.
— Não quer entrar, Midori-san? Não tem ninguém em casa, minha avó deve ter saído para coletar os juros diários. Assim eu não me sinto solitário. Posso te mostrar aquele nishiki-e que comentei uma vez. Entre! Tenho várias outras coisas.
Shōta segurava, sem soltar, a manga de Midori, que consentiu em silêncio acenando com a cabeça. Entraram pela porta dobrável envelhecida que dava acesso ao jardim. O ambiente não era muito grande, mas os vasos das plantas estavam curiosamente alinhados e era possível ver pendurado no beiral do telhado o xaxim que Shōta parecia ter comprado durante o festival do dia do Cavalo. Quem não soubesse das circunstâncias talvez ficasse em dúvida, mas apesar de ser a família mais rica da região, só duas pessoas, a avó e o neto, faziam parte dela. A miríade de chaves da família era tanta que gelava a pele do abdome ao carregá-las, mas como eram todas de casas nagaya, era de se esperar que nenhum ladrão quebraria sequer um cadeado quando estavam ausentes.
Entrando na frente, Shōta procurou um lugar onde o vento soprasse mais.
— Não quer vir aqui? — perguntou, sacando uma ventarola. Era peculiar o quão precoce era para uma criança de treze anos. Pegando diversos nishiki-e herdados através das gerações, ficou feliz quando Midori os elogiou.
— Midori-san, vou te mostrar uma raquete antiga de hanetsuki. Minha mãe ganhou quando trabalhava como governanta em uma mansão! Ela é grande, não é engraçado? E os rostos das pessoas também eram diferentes dos de agora, não é? Ah, eu queria tanto que ela ainda estivesse viva, ela morreu quando eu tinha três anos. Tem meu pai, mas ele acabou voltando para a casa da família dele no interior, e agora só tenho a minha avó. Sinto inveja de você, sabe? — disse, começando a trazer o assunto dos pais.
— Chorar não é coisa de homem, você vai molhar as gravuras — Midori lhe disse.
— Acho que eu sou um covarde, de vez em quando me pego lembrando de várias coisas, sabe? Por ora eu estou bem, mas no inverno, em noites de luar, depois de fazer uma ronda na região de Tamachi para coletar o dinheiro das dívidas, em inúmeras vezes desatei a chorar ao chegar na barragem. Não por conta do frio. Eu não sei por qual motivo, só fico pensando nas coisas. É… eu comecei a fazer as rondas para coletar as dívidas diárias no ano retrasado. A minha avó já era idosa, e à noite é mais perigoso também. Ela já não enxerga direito, então fica difícil para ela fazer as coisas como carimbar os documentos. Já tentamos contratar diversos homens para o serviço, mas minha avó disse que eles acham que conseguem nos enrolar por sermos uma senhora e uma criança, e no fim acabam não trabalhando como ela quer. Ela espera ansiosa que eu fique mais velho e abra a loja de penhores, pendurando novamente a placa de Tanakaya, mesmo que não seja como antigamente. Eu fico com pena porque as pessoas dizem que a minha avó é mesquinha, mas é por minha causa que ela é controlada assim com o dinheiro. Também devem falar mal da minha avó quando coletamos as dívidas nas casas, algumas delas em situação de dar dó, em Tōrishinmachi ou qualquer outro lugar. Só de pensar nisso, as lágrimas já escorrem. É mesmo um fato que eu sou fracote. Nesta manhã, quando fui à casa do Sankō coletar o juros, apesar do corpo todo dolorido, o rapaz estava trabalhando para que o pai dele não descobrisse. Quando eu vi isso, fiquei sem palavras. Não é esquisito quando um homem chora? É por isso que aqueles selvagens do beco me acham um idiota.
Ao começar a falar assim, sua feição parecia expressar vergonha da sua própria fraqueza. Sem pensar em nada específico, seu olhar afável se encontrava com o de Midori.
— Mas você estava muito estiloso no festival, eu fiquei com inveja. Se eu fosse homem, eu queria ser daquele jeito. Estava mais estiloso do que qualquer outro — Midori elogiava.
— Eu não sou nada de mais, quem é bonita é você! Mais bonita ainda do que a Ōmaki-san, o pessoal diz. Que orgulho seria se você fosse minha irmã mais velha! Em qualquer lugar que fosse, eu iria me gabar por estar na sua companhia. Irmãos mesmo eu não tenho nenhum, fazer o quê? Então, Midori-san, da próxima vez vamos tirar uma foto juntos? Eu vestido como estava no festival, você toda chique com as roupas de seda fina e estampada em listras largas. Podemos tirar a foto no estúdio Katō de Suidōjiri, para deixar aquele lá de Ryūgeji com inveja! É sério! Ele vai ficar bravo com certeza, vai ficar azul de tão bravo! Se bem que ele é todo introvertido, não vai nem ficar vermelho. Ou talvez ele vá rir da gente, quem se importa? Se a gente tirar uma foto grande, seria legal se colocassem ela no mural, não é? Você não gostou da ideia? Porque está com cara de que não gostou — até mesmo seu aborrecimento era engraçado.
— É que você não vai gostar se eu sair com uma cara esquisita — soltou Midori junto com um doce riso alto, retomando o bom humor.
O frescor da manhã passou despercebido, dando lugar ao calor da luz do sol.
— Shōta-san, nos vemos à noite. Vem brincar no meu dormitório, podemos acender algumas lanternas e ficar perseguindo os peixes. Consertaram a ponte sobre o lago, não tem com o que se preocupar — disse já por cima do ombro.
Shōta olhava feliz a figura de Midori que se distanciava, pensando na sua beleza.
Capítulo 7
Shinnyo, de Ryūgeji, e Midori, de Daikokuya, ambos frequentavam a escola Ikueisha. Ao final de abril daquele ano as flores de cerejeira caíam e começava a época de apreciação das glicínias às sombras das folhas jovens. Em Mizunoya no Hara, acontecia a grande competição esportiva de primavera, onde as pessoas se entretiam fazendo cabo de guerra, jogando bola, pulando corda, sem se darem conta do pôr do sol após o longo dia. Shinnyo, sem a compostura de sempre que lhe cabia, havia tropeçado na raiz de um pinheiro ao lado do lago, vergonhosamente sujando as mãos e as mangas da roupa com a terra vermelha do caminho. Midori, ao redor por acaso e sem conseguir ignorá-lo, pegou seu lenço de seda carmesim.
— Pode usar isso pra limpar — e ao expressar seus cuidados, alguns amigos que estavam com Midori ficaram com ciúmes.
— Apesar do Fujimoto ser metido à monge, é estranho como ele parece todo feliz quando vai agradecer uma mulher, não acham? Muita gente acha que a Midori-san vai virar esposa do Fujimoto. O nome do santuário vai ser Daikoku se continuar assim — circulavam as fofocas desse tipo.
Por natureza, Shinnyo detestava ouvir sobre assuntos de outras pessoas, sempre propenso a fechar a cara e olhar para outro lado. Sendo ele o alvo, não havia motivos para ter que tolerar aquilo. Depois disso, ele ficava receoso toda vez que ouvia o nome “Midori”. Sentia uma indescritível relutância, uma ansiedade dentro do coração, pensando se iam comentar de novo sobre o ocorrido. Entretanto, não adiantaria se zangar toda vez que algo do tipo acontecesse. Tanto quanto possível, ignorava esse tipo de ocasião, agindo como se de nada soubesse, fingindo indiferença com um semblante frio. Mas se sentia constrangido quando questionado cara a cara, sendo que um breve “não é da minha conta” bastaria para a maioria, e, desamparado, um suor frio escorria por seu corpo.
Midori, que no começo não sabia disso, o chamava com um tom de intimidade — Fujimoto-san, Fujimoto-san!
Certa vez, ela estava alguns passos à frente dele enquanto voltavam da escola. Tendo parado para ver uma flor diferente à beira da via, forçou um encontro com Shinnyo, que vinha atrás.
— Olha, tem uma flor tão bonita desabrochando, mas está em um galho alto demais para mim. Nobu-san, você deve conseguir alcançar já que é alto. Pegue para mim, por favor! — pediu, procurando o mais velho dentro daquele grupo de pessoas, que naturalmente seria Shinnyo.
Com o pedido, ele não conseguiu ignorá-la, porém cada vez mais relutante por não saber o que os demais ao redor pensariam, apenas pelas aparências, tomou um galho próximo qualquer e puxou uma flor sem muita escolha, chegando ao ponto de jogá-la rapidamente para Midori. Ela, surpreendida por aquela falta de cortesia, concluiu que ele estava sendo maldoso com ela de propósito pela frequência com que essas situações aconteciam.
— Ele não é diferente assim com os outros, só comigo ele mostra essa atitude horrível. Quando pergunto alguma coisa ele mal responde, ele foge quando eu chego ao lado dele, ele fica bravo quando falo com ele, todo travado e recluso. Não faço ideia do que eu poderia fazer, nada o faz melhorar os ânimos. Não preciso falar com alguém mal humorado e teimoso assim, que faz tudo do jeito que quiser e que fica bravo porque distorce as coisas. Muito menos ser amigo dele.
Nem um pouco pesarosa, Midori não falaria com ele a menos que precisasse. Caso passassem um pelo outro, nem mesmo cogitaria um cumprimento. Simples assim, sem que percebessem, estendia-se entre os dois um grande rio onde barcos e jangadas eram proibidos, sem que tivessem outra escolha senão seguir cada um à sua margem.
Passado o dia do festival, Midori de repente parou de frequentar a escola. Sem que fosse necessário dizer, sentia uma profunda humilhação da qual, ao contrário da lama na testa, era difícil de se livrar.
— Turma da Avenida isso, turma do Beco aquilo. Se todos fossem enfileirados na mesma sala de aula, não teria porque fazer essa distinção dos colegas de escola. Com essa divisão estranha, eles ficam competindo por orgulho a todo momento. Sendo menina, acham que eu sou não sou páreo para eles e me tomam como ponto fraco. E a atitude deles na noite do festival? Que covardia! Qualquer um sabe que aquele estúpido do Chōkichi é o mais atroz de todos, mas seria impossível ser tão obstinado em arrebentar a turma da Avenida se não tivesse tido o apoio do Shinnyo. Na frente das pessoas ele pode parecer culto, dando uma falsa aparência de honesto, mas, nas sombras, quem dá as cartas é o Fujimoto. Mesmo que ele seja mais velho na escola e que seja bom nos estudos, mesmo que seja o jovem mestre de Ryūgeji, eu, Midori de Daikokuya, que nunca precisei de qualquer coisa que fosse dele, não tenho motivos para ser chamada de indigente. Não sei o quão notáveis são as famílias que frequentam e fazem doações para Ryūgeji, mas mesmo minha irmã já conta com três anos de patronagem do Kawa-sama, do banco, e do Yone-sama, de Kabutochō. O congressista Chii-sama chegou a dizer que pagaria o resgate e que a tomaria como esposa, mas minha irmã recusou a proposta por não gostar de gente disposta assim. Entretanto, dizem que mesmo ele é uma pessoa de bastante renome na sociedade. Pode perguntar por aí se é mentira! O que dizem é que, se não fosse pela Ōmaki, Daikokuya seria um bordel ao relento. Por isso que o mestre nem brinca em ser grosseiro com o papai, nem com a mamãe e nem comigo. Teve uma vez, não me lembro quando foi, eu estava fazendo bagunça com a raquete de hanetsuki, querendo brincar dentro de uma das salas de tatami, onde no tokonoma tinha uma porcelana da divindade Daikoku a qual o mestre tinha muito apreço. Eu derrubei um dos vasos de arranjo de flores que ficava alinhado ali e ele se despedaçou inteirinho. O mestre, que estava na sala ao lado tomando saquê, só disse “Midori, você está muito moleca, hein!”, sem nenhuma bronca! Se fosse qualquer outra pessoa, ele ficaria muito mais bravo, ao ponto das outras criadas ficarem com ciúmes de mim, mesmo depois de muito tempo do ocorrido. No fim, é tudo graças à minha irmã. Apesar de eu ser só quem toma conta do nosso dormitório, minha irmã é a Ōmaki de Daikokuya. Não sou dessas que vai abaixar a cabeça para qualquer um como Chōkichi, muito menos ser humilhada pelo monge de Ryūgeji.
Assim dizendo, Midori perdeu o interesse em ir à escola. Em sua verdadeira essência egoísta, com a raiva de ter sido subestimada, quebrou seu lápis de cera e jogou fora as pedras de nanquim. Passou a ignorar os livros escolares e o ábaco e foi brincar à toa com seus amigos.
Capítulo 8
Em contraste com as noites agitadas, ao amanhecer resta a solidão dos riquixás onde embarcam os sonhos da noite anterior. Há quem seja avesso ao olhar alheio, cobrindo a linha dos olhos com um chapéu. Há quem envolva o rosto com uma toalhinha qualquer, esboçando um sorriso sinistro e feliz quanto mais lembrava do sofrimento penetrante do tapinha que recebeu de uma delas ao partir. Há de se ter cuidado ao passar pela avenida Sakamoto, pois com as carroças de verdura que voltam de Senju podem ser perigosas para quem está a pé. Na avenida até a esquina do santuário Mishima ficam os maníacos que frequentam o distrito. Embora deselegante, há também quem viva de nariz empinado aqui e acolá, com o semblante todo relaxado, dizendo rudezas nos cruzamentos. Pode-se pensar ser um rapaz importante, mas a verdade é que ele não tem quase nada de valor.
Desnecessário seria citar a Canção do Eterno Lamento, onde a senhorita da casa Yang prestou-se à afeição de seu soberano. Em qualquer lugar, uma filha é tida como preciosa quando chega à idade de ser desposada, mas na região há muitos exemplos de princesa Kaguya nascidas em um casebre qualquer. Por exemplo, uma linda moça chamada Yuki, agora alocada em uma agência qualquer de Tsukiji, excelente dançarina e acompanhante apenas de nobres patrões, diz algo extremamente inocente em um recente jantar de trabalho, com os clientes em uma sala de tatami: “De qual árvore vem o arroz?”. Antes era, entretanto, dessas que nem o obi amarrava e que confeccionava cartas de hanafuda como trabalho temporário. Sua reputação estava em alta recentemente, mas o passar dos dias traz a indiferença para com aqueles que partem. Tendo ela própria caído no esquecimento, a segunda flor é a filha mais nova da casa dos tintureiros, que por hora é sugerida na lanterna da entrada de uma nova agência em Senzoku. Chama-se Kokichi, uma das mulheres de rara beleza do parque de Asakusa, igualmente nascida por estes lados. Seja dia, seja noite, o rumor é que o sucesso na vida se limita apenas às mulheres, e os homens aparentam ser inúteis como cachorros de manchas pretas no rabo que vasculham lixões.
No auge da impetuosidade aos dezessete, dezoito anos, os chamados rapazotes, filhos dos citadinos desta vizinhança, agrupam-se em bandos de cinco, sete, nenhum deles um dândi ao ponto de ter à cintura uma flauta shakuhachi. Mas, por algum motivo, se envolvem em uma intrincada relação entre quem manda e quem obedece, com as toalhas de mão e lanternas de vara longa combinando, onde ninguém ousa contar uma piada diante das treliças dos bordéis pelas quais olhavam como clientes sem a intenção de comprar nada enquanto não souberem rolar um dado. Enquanto se ocupam apenas pela tarde, trabalhando duro nos negócios familiares, tomam um banho assim que o sol se põe, calçam o geta e vestem um quimono ao estilo sete-cinco-três.
— Vocês viram a novinha que começou naquela loja lá? Parece a moça da loja de linhas de Kanasugi, com o nariz um pouco menor.
Ocupando suas mentes com essas questões, apanham sem pudor o tabaco pelas treliças de cada bordel, importunam pedindo lenços de papel, batem uns nos outros de maneira despretensiosa, fazendo disso um orgulho de vida. Há herdeiro de família honesta que mudou de nome e se tornou rufião, saindo para comprar briga ao lado do portão principal.
Por dizer, nas cinco divisões, onde primavera e outono são indistinguíveis, a multidão exalta o vigor das mulheres. Embora as lanternas-guia já estejam fora de moda, junto ao som dos setta das mulheres mawashi das casas de chá, ressoam as músicas e as danças. Caso pergunte aos festeiros por qual motivo entravam na aglomeração, respondem que para ver os longos gibões de colarinho vermelho sob as jaquetas uchikake de mangas longas, os lábios sorridentes e as expressões nos rostos, e que é difícil dizer de onde vem a beleza, mas que aqui as oiran são dignas de reverência, enquanto não sabem o que seria delas lá fora.
Tendo passado dias e noites em meio a tudo isso, não era de se admirar que Midori tivesse suas roupas brancas tingidas de carmesim. Ao seu ver, aqueles chamados de homens não eram nem um pouco medonhos ou assustadores, e não pensava que aquelas chamadas de prostitutas faziam um trabalho vulgar. Com isso, a lembrança de quando se despediu chorando da sua irmã mais velha, que partia da terra natal, lhe parecia uma ilusão. Tinha inveja do quão prestativa sua irmã era para com os pais por conta do seu sucesso atual, mas, por desconhecer seus os incontáveis sofrimentos dela, que persistia firme no ofício, Midori ouvia e observava com interesse o som chamativo aos clientes, o feitiço das treliças e até a magia do tapinha nas costas no momento da separação. Era lastimável como ela falava por aí as palavras usadas no distrito sem nem mesmo sentir vergonha. Com quase catorze anos contados, ela não era diferente de uma donzela de família nobre pelo jeito como abraçava as bonecas ou como esfregava as suas bochechas. Apesar de ter tido alguma instrução sobre moral, bons costumes e economia familiar, isso se limitava à escola, e o que chegava aos seus ouvidos a todo tempo era, na verdade, fofocas daquilo que os clientes gostavam ou não, das roupas de trabalho das mulheres, das roupas de cama que os clientes davam de presente, dos presentes recebidos pelas casas de chá. O que fosse vistoso era maravilhoso, o que não fosse era deplorável. Ainda era cedo para discernir o que era assunto alheio do que era privado. Para seu imaturo coração, apenas flores brilhavam diante de seus olhos. Sua natural disposição competitiva corria solta, sem arbítrio, tomando a forma de uma nuvem.
A avenida dos maníacos, a rua dos sonolentos. Estas compõem a rota dos cavalheiros que voltam para casa após o amanhecer. Nesta vizinhança de despertar tardio, as vassouras que varrem a frente das portas desenham um padrão de ondas do mar. Ao seguir o percurso da Avenida, finalizada com agradáveis salpicadas de água, passa-se pelas redondezas de Mannenchō, Yamabushichō, Shintanimachi, onde se aninham pessoas, cada um com seu talento e estilo, conhecidas como artistas de rua. Doceiros, equilibristas, titereiros acrobatas, jovens fantasiados com cabeça de leão fazendo a dança de Sumiyoshi, cada um vestido ao próprio gosto, de crepes finos de seda a roupas de algodão lavado e estampadas no padrão azul escuro Satsuma sob estreitos obi de cetim preto. Mulheres decentes, homens, grupos de cinco, sete, outros grandes de dez pessoas, velhinhos franzinos e solitários carregando nos braços um shamisen surrado, vê-se até meninas de seis, cinco anos, com faixas vermelhas amarradas para subir as cavas dos quimonos, obrigadas a dançar “Aquela é Kinokuni”.
Estes artistas de rua são entretenimento para os frequentadores que vivem dentro do distrito e distração para as angústias das prostitutas. Eles sabem que conseguirão renda para a vida inteira se entrarem no distrito com essa clientela fiel. Desprezando os pequenos ganhos do lado de fora, nem mesmo um mendigo com as calças do quimono esfarrapadas como algas marinhas se presta ficar parado em uma esquina qualquer.
Ao ver passar uma bela artista de rua tayū, mostrando seu refinado rosto que estava coberto por um chapéu cônico, orgulhosa de sua voz e de suas habilidades, a senhora da papelaria comentou estalando a língua:
— Olha só, é uma pena que não se costuma escutar uma voz assim por estes lados.
Midori, que após o banho observava o vaivém sentada em frente à loja, ajeitou agilmente suas franjas soltas com um pente de buxo-arbóreo japonês, e disse:
— Dona, vou chamar aquela moça tayū — ao que saiu correndo como o vento. Agarrando sorridente uma das mangas da moça, colocou algo dentro sem dizer a ninguém o que era e a fez recitar sem hesitar o seu adorado trecho, “o corvo do amanhecer”.
— Obrigada, até a próxima! — agradeceu a artista tayū com sua voz charmosa, um feito que nem todos conseguiam assim tão fácil.
— Foi a criança ali que fez ela cantar? — questionavam perplexas as pessoas aglomeradas ali, mais admiradas com Midori do que com a artista tayū.
— Gosto de parar os artistas de rua que passam por aqui para ouvir o som dos shamisen, das flautas, dos tambores, para ver eles cantarem e dançarem, para ver algo que ninguém ainda fez antes — Midori sussurrava para Shōta de tempos em tempos, fazendo-o ficar surpreso e desgostoso.
— Eu não gosto não…
Capítulo 9
— Assim eu vos ouço.
A entoação dos ensinamentos de Buda no sutra Sukhavati harmonizava com o vento nos pinheiros e deveria varrer as impurezas do espírito. Da cozinha do templo pairava uma fumaça de fritura do peixe fresco, e no cemitério secavam as fraldas dos bebês, coisas que não seriam um problema dependendo da seita, porém, aos olhos de quem reconhece um impostor vestido de monge, seria evidente concluir que aquilo tudo era meio suspeito.
O sacerdote mestre de Ryūgeji tem tanta riqueza quanto tinha barriga, ambas de fato magníficas, mas fica a dúvida de qual é o elogio apropriado neste caso peculiar. Com o rosto barbeado e a cabeça raspada até a nuca, não há em sua pele bronzeada nem um ponto rosado de cor de cerejeira ou vermelho de flor pêssego, muito menos uma mancha escura. Quando se presta a rir alto e sem pudor, levantando as grossas sobrancelhas que agregam fios brancos, há o risco de assustar a estátua de Tathagata no salão principal do templo e fazê-la rolar e cair do pedestal.
A sua esposa mal passava dos quarenta. Tinha a pele clara e cabelos finos, presos em um pequeno coque ao penteado marumage de personalidade decente, e era amigável com os visitantes. Até a senhora fofoqueira da floricultura em frente ao portão não falava mal dela pelas costas, talvez por estar em débito por conta dos yukata usados e dos excedentes das refeições recebidas. Ela, originalmente, era de uma família que contribuía com as finanças do templo, mas tendo logo perdido o marido e sem um lugar para morar, pediu no local pelo mínimo de comida em troca de serviços de costura. Começou lavando roupa e, claro, cozinhando, trabalhou até como ajudante dos empregados para limpar os túmulos, quando o sacerdote mestre, fazendo as contas, ficou com pena dela. Enquanto mulheres mesmo costumam achar impróprio uma diferença de vinte anos entre um casal, ela por fim deixou de ter vergonha do julgamento alheio e decidiu que aquele era um bom lugar para se ter como residência até o fim da vida. Apesar de escandaloso, os membros das famílias contribuintes do templo não chegaram ao ponto de censurá-la por conta de sua boa índole. Quando ficou grávida de sua filha mais velha, Hana, entretanto, foi estranho ter um desses membros, um comerciante aposentado com fama de prestativo que vendia óleo na avenida Sakamoto, atuando como intermediário casamenteiro em prol de sua boa imagem pública como esposa do sacerdote mestre.
Do par de irmãos que vieram ao mundo por esse mesmo ventre, Shinnyo era o típico excêntrico que passava o dia inteiro no quarto, taciturno de nascença, enquanto sua irmã Ohana era uma moça de pele suave, com um queixo duplo adorável. Não era de fato uma linda mulher, mas, à época da sua maioridade, era vista com bons olhos pelos outros, e havia quem se lamentava que ela fosse deixada na inocência. Ainda não se conhecia nenhum outro mundo onde uma jovem de templo levantasse a barra do quimono com sua mão esquerda e onde Buda tocasse shamisen. Com receio do julgamento alheio, foi providenciada uma bela loja de ervas de chá em uma rua de Tamachi, onde colocaram essa moça por trás das treliças do balcão vendendo seu charme. Todas as noites, sem nenhum motivo aparente, jovens que nem contas sabiam fazer, e que pouco se importavam com as medidas e pesos das folhas de chá, formavam na loja uma multidão interminável de clientes até o soar da meia-noite.
Ocupado era o sacerdote mestre. Coletava empréstimos, inspecionava sua loja, fazia serviços memoriais aqui e ali, designava certos dias do mês para os sermões, revirava as páginas do livro contábil, lia sutras. Sendo difícil seu corpo aguentar desse jeito, estirava sua esteira de padrões florais na varanda, servindo-se de awamori em um copo grande, cheio até a borda, enquanto balançava uma ventarola nos ombros despidos e dava ordens para que buscassem em Musashiya, na Avenida, uma porção generosa de enguia grelhada ao molho de soja, seu aperitivo favorito para acompanhar a bebida. O encarregado de receber as ordens era Shinnyo, que sentia pela tarefa um desgosto de lhe penetrar os ossos, andando pela rua sem nem mesmo tirar os olhos do chão. Caso escutasse a voz das crianças na papelaria, na diagonal oposta ao restaurante, pensava envergonhado em que tipo de coisas ruins elas estariam falando sobre ele. Passava reto pelo portão do restaurante de enguias e esperava o momento em que não fosse chamar atenção das pessoas ao redor para voltar e entrar correndo, com um sentimento resoluto de que, se dependesse dele, não comeria nunca aquela coisa fedorenta.
Seu pai, o sacerdote mestre, era uma pessoa que conhecia muito bem os caminhos do mundo. Apesar de ser um pouco conhecido por sua ganância, não era retraído ao ponto de se deixar levar por rumores alheios. Dada sua natureza, tentava fazer trabalhos temporários confeccionando amuletos kumade se tivesse um tempo livre, obviamente com a ideia de, nos dias do Galo do décimo primeiro mês, abrir uma venda de pequenos adornos de cabelo no lote vazio em frente ao seu portão, fazendo sua esposa amarrar uma toalhinha de mão na cabeça e sugerir aos clientes que comprassem algum item de boa sorte. A princípio ela havia ficado envergonhada com a ideia, mas ao ouvir sobre o enorme lucro que as pessoas comuns das casas geminadas conseguiam com esses artesanatos, e considerando que não chamaria a atenção no meio da multidão, muito menos depois do entardecer, fazia a mulher da floricultura ajudar à tarde e ela mesma ficaria ali atraindo clientes à noite. Antes que percebesse, sua vergonha havia dado lugar à avareza, passando inconscientemente a anunciar brindes e descontos em voz alta no encalço dos clientes. Ao preço de setenta e cinco sen por três adornos de cabelo, os compradores, esbarrando desorientados uns nos outros na horda de pessoas sem notar que estavam diante do portão do templo onde anteontem tinham vindo rezar pela prosperidade na próxima vida, barganhavam cinco adornos por setenta e três sen. De certo, deve haver neste mundo outras formas obscuras como um breu de se fazer dinheiro.
Shinnyo se sentia pesaroso com atitudes assim, por mais que isso não chegasse aos ouvidos das famílias contribuintes. Ficava envergonhado que a opinião dos vizinhos ou que as fofocas dos colegas de idade fossem sobre a cara de louca da sua mãe vendendo os adornos de cabelo em Ryūgeji.
— Seria melhor se vocês parassem com essas coisas — houve momentos em que tentava impedi-los, mas o sacerdote mestre explodia em risos.
— Fica quieto, fica quieto! É coisa que gente como você aí não entende! — ignorando-o por completo. Invocava Buda de manhã, fazia contas à noite. Sua expressão de sorridente deleite ao ter nas mãos o ábaco era vergonhosa mesmo sendo seu pai, e odiosa de se perguntar por qual motivo havia raspado a cabeça.
O motivo de Shinnyo ter se tornado uma pessoa taciturna não se deu particularmente por ter sido criado em par com sua irmã de mesmo ventre desde o princípio em meio a uma família pacata que não se misturava com os outros. Além da sua natureza quieta, ele perdia o interesse pelas coisas por não darem ouvidos a ele. Os atos de seu pai, o comportamento de sua mãe, a forma como sua irmã foi criada, pensava que tudo havia sido de forma errada, mas se sentia lamentavelmente triste por ter se cansado de falar o que ninguém ouvia. Apesar de seus colegas o considerarem um rude tacanho, a verdade é que seu coração era, no fundo, deprimido. Ele era o tipo de pessoa que não teria a coragem de se impor e discutir, mesmo se ouvisse pelas costas alguém lhe xingando um pingo que fosse, e apenas se trancaria em seu quarto, extremamente aflito para encará-la de volta. Mesmo com um bom desempenho na escola e uma posição social de respeito, não havia ninguém que soubesse das suas fraquezas.
— O Fujimoto de Ryūgeji tem a rigidez de um mochi mal grelhado. É um cara que incomoda — dizia também quem o detestava.
Capítulo 10
Na noite do festival, Shinnyo foi enviado para ajudar sua irmã em Tamachi, e, como não tinha voltado para casa até tarde da noite, nem imaginava a confusão que havia ocorrido na papelaria. No dia seguinte, soube disso e daquilo pelas bocas de Ushimatsu, Bunji e dos outros. Apesar de ficar assustado com a violência de Chōkichi, já era tarde demais para apontar dedos. Ficou incomodado ao extremo só pelo fato de ter seu nome usado, e, embora não tenha sido seu feito, sentia que deveria carregar sozinho a culpa pelo que aquelas pessoas sofreram. Também um pouco envergonhado pelo estrago que fizera, Chōkichi ficou sem dar as caras por três ou quatro dias, até o clima esfriar um pouco, para não ouvir uma reprimenda caso se encontrasse com Shinnyo.
— Nobu-san, você deve estar bravo, mas, por favor, tenha paciência comigo, pois foi o calor do momento. Viu, não tinha como ninguém saber que o Shōta não estava. Eu não queria fazer daquela vadia o meu alvo e nem bater no Sangorō, mas não pude simplesmente voltar para casa depois de entrar brandindo a lanterna. Eu só queria levantar a nossa moral, mas acabei fazendo besteira. Foi tudo culpa minha, foi ruim da minha parte não ouvir suas ordens, mas vamos pôr tudo a perder se você ficar bravo comigo agora. Com você como escudo nas minhas costas é como estar a salvo em um grande barco, e estaria em apuros se você me abandonasse. Mesmo que não seja muito do seu gosto, continue como chefe do nosso grupo. Prometo que não vou cometer mais erros — e pediu desculpas, parecendo estar arrependido, ao que Shinnyo não conseguiu recusar com todas as letras.
— Existem limites para o que se pode fazer, não há outro jeito. Arranjar encrenca com os mais fracos vai ser uma vergonha para o nosso lado, não faz sentido lidar com Sangorō, Midori e os outros. Se Shōta tiver o apoio de seus seguidores, o que fazer? Mas de forma alguma coloque as mãos neles — Shinnyo disse com firmeza. Não chegou a repreender Chōkichi, mas não conseguia deixar de orar para evitar uma próxima briga.
Quem não tinha culpa era Sangorō do Beco. Esmurrado e chutado à vontade, nos últimos dois, três dias, seu corpo doía, estivesse levantado ou sentado.
— O que aconteceu com o Sankō? Ele tem parecido muito fraco — chegou inclusive ao ponto de um conhecido fornecedor perguntar ao seu pai, que toda noite arrastava o riquixá vazio até as casas de chá na via das Cinquenta Lojas. Mas seu pai, conhecido como “Tetsu, o submisso”, tendo nunca levantado sua cabeça diante de pessoas superiores, incluindo obviamente os donos dos bordéis, era disposto a consentir com os excessos dos senhorios e donos de terra como algo razoável. Mesmo com seu filho acusando Chōkichi de criar confusão e tendo levado a pior na briga por motivo qualquer, ele praguejava, repreendendo duramente o próprio filho e tomando o lado do outro:
— Isso aí não tem jeito! Ele é o filho do senhorio, não é? A gente pode ter a razão do nosso lado e a culpa pode ser deles, mas você não tem que arranjar briga com ele! Vai se desculpar, vai! Que absurdo de moleque!
Como era certo que seria obrigado a se desculpar, Sangorō engoliu sua frustração, esquecendo-a ao mesmo tempo em que suas feridas se curaram, com o passar de uma semana ou pouco mais. Ficava feliz quando cuidava do irmão bebê de Chōkichi, ganhando a pequena quantia de dois sen pela tarefa. “Hora de dormir, tchau tchau”, ninava andando com a criança nas costas. Quando lhe perguntavam sua idade, mesmo com os 16 anos que seria o auge da petulância, não tinha vergonha do tamanho de seu corpo e passeava pela Avenida sem malícia alguma, tornando-se sempre alvo das chacotas de Midori e Shōta.
— Onde você deixou seu caráter? — embora tirassem sarro dele, os amigos com quem brincava não o deixavam de lado.
Na primavera, a florescência das cerejeiras. No verão, as lanternas ornamentadas com o rosto da póstuma Tamagiku. No outono, durante o renovado festival Niwaka, em um intervalo de dez minutos pode-se contar, só olhando, setenta e cinco riquixás em movimento. Mas passada a última quinzena, em um piscar de olhos, as libélulas vermelhas preenchem desordenadas os arrozais e a época dos cantos das codornas no fosso oeste ao distrito se aproxima. Com o vento outonal penetrando na pele do amanhecer ao anoitecer, os incensos repelentes dão lugar aos aquecedores de bolso na loja de variedades Jōsei. O som do pilão de farinha da loja de biscoitos Tamura se faz solitário perto da ponte de pedra, e, por qualquer motivo que seja, o eco do relógio de Kadoebi passa a ressoar melancolia. A luz do fogo de Nippori, incessante entre as quatro estações, traz a triste dúvida de se a sua fumaça é sempre de pessoas sendo cremadas. Do estreito caminho na parte baixa da barragem que segue por trás das casas de chá, pode-se escutar o som dos shamisen vertendo do alto.
— No refúgio confortável do seu amor… — cantam e tocam com maestria as gueixas da alameda Nakanochō, fazendo de um verso simplório até mesmo algo profundo.
Segundo as mulheres que já cumpriram seus contratos, é a partir desta estação que os fiéis cavalheiros, apreciadores sensíveis e honestos, ao contrário dos libertinos que ficam à mercê de farra qualquer, passam a frequentar a região.
Mas seria tedioso prolongar assuntos como esse. Os tipos de novidade que circulam em Daionjimae são outros. O suicídio por afogamento de uma jovem massagista cega no lago de Mizunoya, pouco após completar vinte anos, ressentida com a limitação de seu corpo que a impossibilitava de qualquer paixão. Ou o sumiço do carpinteiro Takichi, de quem nem a sombra se via. Quando perguntavam sobre o que lhe teria ocorrido ao verdureiro Kichigorō:
— Ele foi preso por conta disso — respondia com o dedo apontado bem no meio da própria cara, sem ênfase em quaisquer detalhes, e ninguém mais comentava sobre o assunto.
Ao olhar no entorno da Avenida, três, cinco crianças cândidas cantam em roda de mãos dadas:
— Floresceu, floresceu, qual foi a flor que floresceu… — à brincadeira inocente e naturalmente tranquila, pode-se escutar o vigoroso barulho de sempre dos riquixás que vão e voltam do distrito.
Era uma noite solitária. Quando se achava que a chuva de outono iria cair gentilmente, um barulho repentino fez parecer que algo estava por vir. Sem a expectativa de receber clientes na loja, a senhora da papelaria havia fechado as portas da frente a partir do anoitecer. Dentro se agrupavam Midori, Shōta e outras duas, três crianças mais novas. Enquanto se divertiam em uma partida infantil de conchas de gude, Midori de repente escutou algo.
— Ué, não é que alguém veio fazer compras? É barulho de gente pisando na tábua da sarjeta.
— É mesmo? Eu não escutei nada! Será que não é algum amigo nosso? — disse Shōta contente, interrompendo a contagem que fazia nas mãos.
Mas os passos que acabaram de ouvir, de alguém que viera até à porta da frente da loja, cessaram subitamente. Não havia mais barulho algum.
Capítulo 11
— Buu! — gritou Shōta, colocando a cara para fora após abrir a porta de correr. Viu as costas de uma pessoa se distanciando aos poucos, seguindo por baixo dos beirais, já duas ou três casas adiante — Quem é? Quem é? Ei, pode entrar!
Midori calçou seu ashida e estava prestes a sair em disparada, ignorando a chuva que caía.
— Ah, é ele — Shōta virou o rosto após poucas palavras — Midori-san, não adianta chamar, ele não vem. É ele — disse, fazendo um gesto em sua cabeça como se estivesse raspada.
— Era o Nobu-san? — perguntou Midori, deixando escapar um tom de afeto. — Era só o que faltava, aquele monge asqueroso. Com certeza deve ter vindo na loja comprar alguma coisa, mas quando viu que era a gente dentro, deu uma bisbilhotada e voltou pra casa. Aquele maldito perverso, metido a gente grande, gago, banguela, desprezível! Eu ia falar tudo o que penso se ele tivesse entrado, uma pena que foi embora! Alguém me empresta um geta, vou dar uma olhada lá fora. Quando trocou de lugar com Shōta e colocou o rosto para fora, gotas de chuva que pingavam do beiral caíram na sua franja.
— Ai, um pingo! — disse encolhendo o pescoço.
Midori observou, por um longo, longo tempo, o vago contorno das costas de Shinnyo se distanciar. Sob os postes de lamparina a querosene, quatro ou cinco casas adiante, ele andava parecendo olhar para baixo, com um grande guarda-chuva de papel apoiado no ombro.
— O que foi, Midori-san? — estranhou Shōta, cutucando as costas de Midori.
— Nada não — respondeu desanimada e entrou na loja, passando a recontar as conchas viradas para cima — De verdade, não presta nem como mongezinho. Nem consegue brigar, só fica aí fazendo pose de gente grande escondendo as verdadeiras intenções. Não é de dar ódio? Como é mesmo que a minha mãe sempre diz? São as pessoas diretas que têm bom coração. Então, esse Nobu-san aí, que fica aí se fazendo de tonto, só pode ter um mau coração. Deve ser isso, não é Shōta-san? — falou mal de Shinnyo com as palavras mais fortes que conseguiu encontrar.
— Mas ainda assim, esse aí de Ryūgeji pelo menos tem algum discernimento. Quando o caso é o Chōkichi, o cara é um ignóbil! — disse convencido, imitando o jeito de falar dos adultos.
— Pode parar, Shōta-san. Apesar de parecer maduro para uma criança, isso ainda é muito estranho. Você é muito paspalho mesmo, não é? — Midori cutucava a bochecha de Shōta — E essa cara séria? — disse, rolando de rir.
— Mas falta pouco para eu virar adulto. Vou vestir algo estiloso como um sobretudo de mangas quadradas, que nem o mestre de Kabataya, sabe? Vou ganhar da minha avó o relógio de ouro que ela tem guardado, e mandar fazer um anel também, e fumar cigarros. O que será que ficaria legal como calçado? Como eu prefiro os setta em vez dos geta, vou calçar um com três camadas de couro na sola e tiras hanao coloridas de seda e cetim . Será que combina?
— Gente baixinha com um sobretudo de mangas quadradas e setta nos pés? Olha, acho que vai ficar estranho de qualquer jeito, parecendo um frasco de colírio ambulante! — Midori zombou entre risinhos.
— Mas que tolice, até lá eu já vou ter crescido! Não vou ser nanico desse jeito! — disse Shōta, vangloriando-se.
— Então a questão é saber quando isso vai acontecer! Olhem lá, os ratinhos no teto! — Midori apontou com o dedo, fazendo a senhora da papelaria e todos os outros agrupados ali rolarem de rir.
Shōta ficou sério.
— Você leva como piada, não é, Midori-san, apesar de não ter ninguém que não tenha virado adulto. Qual o motivo da graça quando o assunto sou eu? Vou conseguir uma bela esposa e vou sair por aí com ela ao meu lado. Eu só gosto das bonitas, então se me vier alguém com o rosto marcado de varíola, como a Ofuku da loja de senbei, ou alguém com a testa grande como a moça da loja de lenhas, vou logo enxotar, não vai entrar na minha casa não. Detesto marcas de varíola e sarna! — disse com firmeza, fazendo seus olhos girarem.
A senhora da papelaria caiu na gargalhada.
— E ainda assim, Shō-san, você, que me dá o privilégio de vir à minha loja com frequência, não vê as marcas de varíola da tia aqui? — disse rindo.
— Ainda assim, porque você é idosa. Estou falando da questão da esposa. Os idosos, tanto faz.
— Mas que gafe a minha, não é mesmo? — disse espirituosa a senhora da papelaria, levando na brincadeira — As bonitas da região são a Oroku-san da floricultura e a Kii-san da frutaria. Mais do que elas, a mais bonita de todas está sentada ao seu lado, Shōta-san, mas parece que você já está decidido. O olhar da Oroku-san, ou a voz da Kii-san? Qual delas? — o rosto de Shōta se avermelhou com a pergunta.
— Mas o quê? Onde é que essas Oroku e Kii aí são bonitas? — Shōta se retraiu um pouco para baixo da lamparina pendurada no teto, se recostando perto da parede.
— A Midori-san é bonita então, é? Assim está decidido? — disse certeira.
— E desde quando você sabe de alguma coisa? Mas o que é isso! — Shōta deu de costas. Batendo com o dedo no lambri da parede, começou a cantar “roda, roda, roda d’água” em voz baixa.
— Vamos lá, mais uma vez, do começo! — Midori juntou as várias conchas, sem mesmo ruborizar o rosto.
Capítulo 12
Sempre que ia a Tamachi, Shinnyo pegava o “atalho” que seguia junto à barragem, apesar de conseguir chegar ao seu destino sem precisar passar por lá. Se espiasse pelos portões treliçados no caminho, podia ver as lanternas de pedra de Kurama e as elegantes cercas de lespedeza. Gostava de como as persianas de bambu eram enroladas nas varandas. Por dentro do shōji envidraçado, uma viúva moderna de Azechi Dainagon passava as contas de uma japamala entre os dedos, e até era possível imaginar que Wakamurasaki apareceria com seu cabelo produzido. Essa construção singular era o dormitório de Daikokuya.
A chuva de fim de outono era contínua como no dia anterior. Uma vez finalizada a roupa de baixo que sua irmã em Tamachi havia requisitado, sua mãe ansiava com seu zelo materno por fazê-la vestir o quanto antes.
— Eu sei que é incômodo, mas, antes de ir para escola, toma um tempinho para levar para a sua irmã, por favor? Tenho quase certeza de que ela está contando com isso.
— Está bem, está bem.
Em sua obediência, que não o permitia recusar um pedido da mãe mesmo que estivesse descontente, Shinnyo tomou nos braços o pequeno pacote. De pronto calçou os geta com suporte de magnólia, atados com hanao cinza escuro de algodão de Kokura, e saiu abrindo o guarda-chuva.
Virando na quina do fosso, optou pela trilha por onde sempre ia. Para seu azar, quando chegou em frente ao dormitório de Daikokuya, um vento repentino atingiu a parte de cima do guarda-chuva, fazendo-o desconfiar se ele não sairia voando com aquela lufada violenta.
— Assim não vai dar — pensou, e no instante em que fincou os pés para se manter firme, o nó da frente do hanao, algo ao qual nem estava atento, se afrouxou e desatou, passando a ser mais preocupante do que o próprio guarda-chuva.
Shinnyo estalou a língua irritado com o temporal, mas sem haver outro jeito naquele momento, apoiou o guarda-chuva no portão do dormitório de Daikokuya e, sob seu telhado, tentou reatar o hanao. Sendo entretanto um jovem de família desacostumado com essas trivialidades, percebeu que não tinha ideia de como fazer aquilo e, tentativa após outra com o coração em desespero, terminou desconsolado por não conseguir consertá-lo com sucesso. Mas que irritante. Que irritante! Pegou de dentro da manga uma grande folha de papel de caligrafia onde havia escrito o rascunho de uma redação escolar, rasgou-a e tentou juntá-la em uma tira. Porém, uma vez mais, a cruel tempestade que despencava fez rolar vagarosamente o guarda-chuva apoiado.
— Mas que droga! — esbravejou, e quando esticou a mão para tentar pará-lo, o pequeno pacote que repousava sobre seus joelhos caiu despretensiosamente, enlameando o tecido do embrulho e até as mangas das suas vestes.
Não havia como presenciar uma ocasião mais infeliz. Sem guarda-chuvas naquela tempestade, o hanao estourado no meio do caminho. Por dentro do shōji envidraçado, Midori assistia de longe.
— Olha, tem alguém com o hanao estourado. Mãe, podemos dar uma tira de pano? — perguntou, tomando alguns retalhos de crepe de seda yūzen da gaveta da caixa de costura.
Impaciente até para calçar os geta de jardim, saiu em disparada com passos apressados antes mesmo de abrir a sombrinha que estava na varanda, seguindo por cima das pedras do jardim.
Ao ver de quem se tratava, o rosto de Midori enrubesceu. Os batimentos em seu peito começaram a se acelerar como se inesperadamente tivesse se deparado com algo de extrema importância. Sem deixar de olhar para trás, com receio de estar sendo observada, aproximou-se acanhada do portão. Shinnyo também virou o rosto de repente e começou a suar frio por entre os braços, sem dizer uma palavra. Seu impulso era sair fugindo descalço.
Fosse ela a Midori de sempre, apontaria os dedos para aquela situação deplorável de Shinnyo, ridicularizando-o em uma explosão de risadas enquanto falava todos os impropérios que desejava.
— Olha só, se não é o sem-vergonha! Como você se atreve a atrapalhar o nosso momento na noite do festival, fazendo vingança contra o Shōta-san e mandando baterem no San-chan, que não tinha culpa de nada? Você só fica em cima do trono dando ordens, é isso? Não vai pedir desculpas? Fala alguma coisa! Eu sei que foi ideia sua fazer o Chōkichi me chamar de prostituta! Tem algum problema em ser prostituta? Eu pelo menos não devo nada a você! Eu tenho meu pai, minha mãe, o mestre de Daikokuya, minha irmã! Definitivamente não preciso de nada de um mongezinho corrompido como você, então pára de ficar me chamando de prostituta! Se tiver alguma coisa pra falar, pára de fazer isso nas sombras das minhas costas e fala aqui e agora! Eu te mostro a hora que quiser que sou uma oponente à altura! Fala alguma coisa! — diria sem parar, agarrando as mangas de Shinnyo, com uma ferocidade difícil de ser contrariada.
Ao invés disso, não disse uma palavra. Ficou sorrateiramente escondida às sombras das treliças, e, ainda assim, não queria sair dali, com seu peito batendo hesitante.
Aquela não era a Midori de sempre.
Capítulo 13
A partir do momento em que percebeu estar próximo ao dormitório de Daikokuya, Shinnyo, com um senso de pavor inexplicável, passou a andar sem olhar para os lados. Mas além do sentimento de que não conseguiria de forma alguma resistir àqueles inúmeros eventos infelizes — a chuva e o vento inoportunos, que ainda por cima fizeram estourar o hanao, a sensação de torcer papéis em um cordão, desamparado sob o portão — o som dos passos nas pedras às suas costas foi como um banho de água fria. Mesmo sem dar atenção, tremia por inteiro por saber de quem se tratava, certo de que a cor do seu rosto estava alterada. De costas, uma parte sua se fazia parecer absorta no hanao, e a outra estava desesperada pois parecia que ele nunca conseguiria calçar aquele geta.
Espiando do jardim, Midori se irritava com cada detalhe.
“Mas como é que vai conseguir com mãos tão desajeitadas? O papel está mal torcido, por mais que amarre no buraco da frente, não vai durar o suficiente. Qual é, não percebe que a manga do seu haori está suja de lama? E o guarda-chuva que rolou para longe, se tivesse apoiado ele fechado seria melhor”, pensava imóvel, sem conseguir dizer que tinha uma tira que ele poderia usar no reparo. Despreocupada com a chuva que estragava sua própria roupa, escondia-se em um silêncio sorrateiro, esperando por uma chance. Foi quando a sua mãe a chamou de longe, sem saber o que se passava:
— A brasa do ferro de passar já está pronta! Midori-san, o que você está aprontando? Não é hora de ir sair na chuva para fazer arte, você ainda vai pegar um resfriado desse jeito!
— Sim, já vou!
Ficou envergonhada por Shinnyo tê-la escutado responder em voz alta. Enrubescida, com o peito batendo forte, sem conseguir de forma alguma abrir o portão que estava ao seu lado. Ainda assim, pensando em tudo diante daquela situação trágica a qual não conseguia ignorar, arremessou por entre as grades treliçadas a tira que segurava na mão, sem dizer nada. O semblante de Shinnyo permaneceu indiferente, parecendo como se não tivesse visto nada.
“É aquele caráter de sempre mesmo”, pensou Midori com os olhos cheios de pesar, formando lágrimas de ressentimento no rosto. “O que é que você odeia em mim tanto assim para ser frio desse jeito? Quem tem algo pra falar agora sou eu, seu pobre de espírito”.
Seus sentimentos se intensificavam ao ponto de fazê-la chorar, mas nada podia fazer senão começar a andar um passo após o outro aos chamados frequentes da mãe que lhe pesavam no coração.
“Mas o que é isso? Como sou teimosa. Que vergonha de mim mesma”, pensou, virando de costas e voltando com seus calçados estalando pelas pedras.
Ao virar para trás, agora solitário, Shinnyo viu espalhadas aos seus pés as folhas outonais que formavam a linda estampa do yūzen carmesim encharcadas pela chuva. Apesar do ímpeto despreocupado de pegá-lo, contemplou-o em vão com um sentimento de tristeza sem tomá-lo às mãos.
Desistindo por conta da sua inaptidão, tirou o longo cordão do seu haori e fez um improviso desastroso com torções e amarras, mas, obviamente, ao pisar, duvidou se conseguiria ir até Tamachi com aquele geta por conta da dificuldade de andar. Sem opção senão ficar em pé, Shinnyo pegou o pequeno pacote e deu apenas dois passos para longe do portão, mas a imagem das folhas outonais do tecido yūzen permanecia em seus olhos. Sendo insuportável deixá-lo ali e partir, olhou para trás arrependido.
— Nobu-san, o que foi? Seu hanao estourou, é? O que é isso aí? Não parece bom não, hein! — alguém falou de repente.
Ao voltar o olhar surpreso, era o valentão Chōkichi, parecendo voltar de dentro do distrito. Com o yukata sobreposto ao quimono de tecido tōzan e um obi cor de caqui de três shaku na cintura amarrado à frente como sempre, abrigava sob um guarda-chuva de marca o colarinho de seda kurohachi e um casaco hanten novo. Se mostrava orgulhoso com a aparência da proteção frontal do seu takaashida, que reluzia em verniz naquela manhã.
— Acabei estourando o hanao e estou sem saber o que fazer. Sou um frouxo mesmo — disse Shinnyo sem nenhum respeito por si próprio.
— Então é isso, você não consegue consertar o hanao? Não tem problema, pode ir calçando o meu geta. O hanao dele está firme.
— Mas aí você ficaria na mão.
— O quê? Eu estou acostumado. É assim que funciona — disse enquanto rapidamente colocava para dentro do obi a parte inferior do quimono. Em seguida, descalçou o geta.
— Isso é muito mais refrescante do que qualquer nó prendendo os dedos!
— Você vai ficar descalço? Eu sinto muito — disse Shinnyo perplexo.
— Tá tudo bem, eu estou acostumado! Gente que nem o Nobu-san tem as solas do pé macias, e aí não consegue andar descalço nos caminhos cheios de pedras. Viu, pode calçar esse aí — disse, colocando o par de geta à disposição. Era peculiar vê-lo deixar palavras gentis escaparem, fazendo mexer suas sobrancelhas grossas e peludas como uma taturana, enquanto as pessoas o odiavam como se fosse um deus das pestes.
— Vou levar seus geta comigo, Nobu-san. Acho que não tem problema se eu largar na cozinha do templo, certo? É isso, vamos trocar, calça esse aqui — oferecendo ajuda, pegou em sua mão o hanao estourado — Sendo assim, pode ir, Nobu-san. Depois nos vemos na escola!
Shinnyo foi em direção à sua irmã em Tamachi, e Chōkichi em direção à sua casa, mas o inesquecível tecido yūzen carmesim, em sua beleza vã, foi deixado ao lado de fora do portão treliçado.
Capítulo 14
O ano contou com três dias do Galo. Apesar de o segundo ter sido arruinado pela chuva, o primeiro e o terceiro foram agraciados com bom tempo, servindo de pretexto para que uma tremenda multidão visitasse o santuário Ōtori. Entre os risos de bom humor, considerava-se se a algazarra vigorosa dos jovens desordenados entrando no distrito pelo portão do posto de inspeção sanitária não era na verdade os estrondos dos pilares que sustentam os céus se estilhaçando e as cordas que suspendem a Terra se rompendo. O fluxo parecia mudar de direção de repente na alameda Nakanochō, e havia também uma horda de pessoas que se separava em diversos rumos entrando pelas pontes levadiças nas vias Sumichō e Kyōmachi, a gritos parecidos com os dos barcos táxi: “Rápido! Vamos, vamos”. Dos gorjeios convidativos nas pequenas lojas kashimise aos elevados andares superiores dos magníficos bordéis ōmagaki, o som das cantorias e dos instrumentos fervia em tanta variedade que a maior parte das pessoas jamais se esqueceria daquele espetáculo.
Com uma folga na coleta do juro diário concedida nesse dia, Shōta visitou a barraca de ornamentos ōgashira de Sangorō, e depois parou onde o grandalhão idiota da loja de dango servia sopas shiruko não muito convidativas.
— E aí? Dando lucro?
— Shō-san, você veio em boa hora. Os ingredientes do recheio anko acabaram e agora mesmo já deixei mais cozinhando, mas eu não sei o que vender para os clientes que estão esperando. Eu não quero que eles vão embora. O que eu faço? — pedia o idiota por um conselho.
— Mas que tapado, você! Não tem esse tanto que sobrou em volta da panelona? Se você misturar isso em água quente e adoçar com açúcar, vai conseguir porções para umas dez, vinte pessoas! Todo mundo faz assim em todo lugar, não vai ser só na sua barraca! E outra, você acha que alguém vai ficar falando do sabor no meio dessa bagunça? Vamos, vai trabalhar! Vai trabalhar! — enquanto falava, pôs-se adiante e pegou um pote de açúcar.
— O senhorzinho está conseguindo mesmo se dar bem como comerciante, é alguém bastante esperto — elogiou a mãe do idiota, cega de um olho, com cara de surpresa.
— O quê? Isso aqui é coisa de gente instruída? Eu vi agora mesmo um palerma do Beco fazendo isso porque estava com pouco anko, não é invenção minha — disse Shōta por cima do ombro — Vocês aí não sabem onde é que a Midori-san está? Eu a estou procurando desde de manhã, mas não sei aonde ela foi. Parece que nem à papelaria ela veio. Dentro do distrito, talvez?
— Hmm, a Midori-san né, pouco antes ela passou na frente de casa e entrou pela ponte levadiça de Ageyamachi. Ela é mesmo demais, Shō-san. Hoje, ela estava com o cabelo shimada armado desse jeito — disse o idiota, fazendo um gesto estranho com as mãos ao ilustrar o penteado — Linda aquela moça, não é? — perguntou esfregando o nariz.
— Ela é ainda mais bonita que a Ōmaki-san! Mas é uma pena se ela também vai virar uma oiran — Shōta respondeu olhando para baixo.
— Mas não é bom se ela virar uma oiran? A partir do ano que vem eu vou começar a vender artigos populares de temporada, e assim fazer um dinheiro, sabe? Com ele em mãos é que vou comprá-la! — disse o idiota, mostrando-se um tolo.
— Mas que coisa insolente de se dizer! Assim vai ser rejeitado com certeza!
— Mas por quê? Por quê?
— Por quê? Motivo para ser rejeitado é o que não falta! — disse rindo, com o rosto um pouco corado — Bem, eu vou dar mais uma volta por aí! Depois eu passo aqui. Até! — e foi pelo portão após finalizar com seu tom afiado, cantando:
Até os dezesseis, dezessete,
entre borboletas e flores ao crescer
Com uma suspeita voz trêmula, recitava dentro da boca os versos populares da época na região.
Agora, penetra na alma o dever…
Junto aos estalos altos como sempre dos setta, seu pequeno corpo desaparecia em um instante ao se embrenhar por entre os festeiros.
Espremido em um dos cantos do distrito, sem dúvida enxergou Midori de Daikokuya vindo do lado oposto e acompanhada de uma assistente, Otsuma, com quem conversava. Mas, de fato, assim como o idiota havia dito, seu cabelo estava feito em um grande e jovial penteado shimada, enfeitado com um luxurioso crepe de seda tie-dye como no penteado yuiwata , e espetado com um pente de casco de tartaruga e um adorno de flores com borlas pendendo. Shōta ficou parado em pé, calado, pensando estar diante de uma boneca de Quioto com aquela riqueza de cores além do usual, olhando fixamente sem se lançar para abraçá-la como de costume.
— Shōta-san? — Midori correu na direção dele — dona Otsuma, se você tiver compras para fazer, podemos nos separar por aqui. Eu volto para casa acompanhada desse jovem. Adeus! — disse abaixando a cabeça.
— Ah, Mii-chan, sua aproveitadora! Já não precisa da minha companhia? Sendo assim, eu vou à Kyōmachi fazer compras! — e saiu correndo a curtos passos em direção à estreita rua de casas nagaya.
Shōta só então puxou uma das mangas de Midori.
— Você fica bem assim, não é mesmo? Quando foi que você se arrumou? Hoje? Ontem? Por que você não me mostrou antes? — reclamou em tom de censura, como uma criança mimada.
— Me arrumaram hoje de manhã, no quarto da minha irmã. Eu detestei, mas fazer o quê? — Midori disse vagarosamente desanimada, olhando para baixo, envergonhada pelos olhares das pessoas que passavam.
Capítulo 15
Sentindo no seu íntimo algo do qual tinha tristeza e vergonha, Midori ouvia como escárnio os elogios que lhe faziam e tomava como desprezo a expressão das pessoas que viravam atraídas para olhar seu penteado shimada.
— Shōta-san, eu vou voltar para a minha casa!
— Mas por quê? Você não vai brincar hoje? Levou alguma bronca? Teve uma briga com a Ōmaki-san, não foi? — Shōta perguntava, ingênuo. A resposta veio apenas em um rosto enrubescido.
Quando passaram em frente a loja de dango, o idiota soltou a voz de lá de dentro.
— Meus cumprimentos ao casal!
Ao ouvir estas palavras exageradas, Midori fez uma cara como se quisesse chorar.
— Shōta-san, pare de me acompanhar! — e pôs-se rapidamente a andar sozinha, deixando-o para trás. Apesar de ter dito a Shōta que iriam juntos ao festival do Galo, Midori mudou de rumo e voltava às pressas na direção de casa.
— Você não vem junto? Por qual motivo está voltando na outra direção? Aí já é demais! — disse Shōta no tom mimado de sempre. Ignorado, não obteve resposta alguma. Perseguia-a afoito, desconhecendo o motivo daquilo, até alcançar a manga de Midori.
— Não é nada! — disse, com a face enrubescida, diante da insistência. Pelo tom de voz, algum motivo havia.
Ela irrompeu pelo portão do dormitório. Shōta, bastante à vontade naquela casa, onde já havia vindo brincar, continuou no seu encalço e subiu discretamente pela varanda quando então foi visto pela mãe de Midori.
— Oh, Shōta-san, que bom que você veio. A Midori está de mau humor desde hoje cedo e estamos todos perdidos sem saber o que fazer com ela. Vá animá-la, por favor.
Shōta atendeu ao pedido com ares de maduro.
— Ela está doente? — perguntou com sobriedade.
— Não é isso — a mãe esboçou um sorriso escuso — Ela vai ficar boa em breve. É a senhorita egoísta de sempre. Certamente deve ter brigado com os amigos, toda dondoca mesmo — e olhou para trás.
Antes que percebessem, Midori já havia arrancado fora o seu obi e as vestes mais externas e armado um futon kaimaki na pequena sala de tatami. Estava deitada de bruços sem dizer nada.
Shōta aproximou-se apreensivo à cabeceira.
— Midori-san, o que foi? Está doente? Está se sentindo mal? O que raios aconteceu? — perguntou com o coração aflito, sem chegar muito perto, apoiando as mãos nos joelhos.
Uma vez mais, Midori não respondeu. Cobria o choro silencioso com uma das mangas da roupa. Ainda desajeitada, a franja do seu cabelo parecia molhada. Shōta sabia que havia um motivo, mas, na sua ingenuidade, não conseguia oferecer nenhuma palavra de conforto, permanecia apenas perdido por completo.
— Mas o que raios é que está acontecendo? Eu não fiz nada para te deixar brava. O que te deixou tão furiosa assim? — perguntou desorientado, espiando Midori secar os olhos.
— Shōta-san, não é que eu estou brava.
Quando indagada, vários desgostos lhe vinham à mente, mas aquilo era algo sobre o qual ela não conseguia falar, e não havia ninguém a quem pudesse confidenciar. Calada, naturalmente com as bochechas avermelhadas, sem conseguir se explicar — pouco a pouco se sentia desamparada, criando a ideia de que não se assemelhava à Midori de antes em mais nada. Seu constrangimento era indescritível.
Se fosse possível, viveria dentro de um quarto escuro, fazendo o que quiser, dia e noite, sem falar com qualquer pessoa que fosse, sem que houvesse alguém para ver seu rosto. Assim, não precisaria se preocupar com nada e nem ficaria remoendo angústias como essa, só ficaria brincando de casinha com as bonecas feitas de papel, até a hora que quiser. Isso com certeza seria maravilhoso. Mas, não, que horrível! Virar adulta é horrível! Qual o sentido de crescer assim? Só queria voltar no tempo. Sete meses, dez, um ano para mais!
Pensava como uma velha senhora, sem se dar conta de que Shōta estava ali. Ele estava para começar a falar algo quando ela o interrompeu por completo.
— Por favor, volta para a sua casa, Shōta-san. Volta para a sua casa, eu te imploro. Sinto que eu vou acabar morrendo se você continuar aqui. Quando você fala eu fico com dor de cabeça. Se eu falo, fico tonta. Eu não quero ninguém aqui comigo, inclusive você. Então, por gentileza, volta para a sua casa! — disse friamente, diferente do usual.
Sem conseguir compreender qualquer motivo que fosse, era como se Shōta estivesse envolto em uma cortina de fumaça.
— Sem dúvidas, você está estranha. Uma esquisita mesmo. Não tem motivo nenhum para falar desse jeito — um pouco relutante, Shōta disse com calma enquanto tímidas lágrimas umedeceram seus olhos, mas nem havia como Midori percebê-las.
— Volta para casa! Volta para casa! Se você ficar aqui para sempre, nós não seremos mais amigos! Mas que droga você, Shōta-san! — Midori disse com ódio.
— Se é assim, eu volto! Me desculpa se eu fui um estorvo para você!
Sem mesmo cumprimentar a mãe de Midori, que olhava a temperatura da água no aposento de banho, Shōta se levantou de repente e saiu pelo jardim da casa.
Capítulo 16
Em uma arrancada em linha reta, Shōta mergulhou por entre o público e se enfiou na papelaria. Sangorō, que em algum momento havia fechado a sua barraca, fazia tilintar alguns trocados no bolso de seu avental de trabalho. Agia com ares de irmão mais velho, daqueles que compraria qualquer coisa ao gosto dos irmãos mais novos que trazia consigo.
— Ah, Shō-san! Agora mesmo eu estava te procurando. Eu fiz uma boa grana hoje. Você quer algo por minha conta? — ofereceu em ótima disposição ao ver Shōta vindo a toda velocidade.
— Deixa de falar besteira, eu não sou desses que vai aceitar algo de alguém como você! Para de ser metido e cala a boca! — a ira dele era fora do comum — Agora não é hora pra isso — disse abatido.
— O quê? O quê? Briga? — Sangorō enfiou no bolso o anpan que comia — Com quem? O de Ryūgeji? Chōkichi? Onde? Dentro do distrito? Em frente ao torii? Vai ser diferente daquele outro dia do festival! Se não vierem com surpresa, a gente não vai perder! Eu estou alerta, vou ficar na linha de frente! Se prepara e vamos lá, Shō-san! — disse entusiasmado.
— Mas que apressado, você! Não é briga — interrompeu Shōta, segurando a própria língua e, como esperado, com dificuldades em explicar o que aconteceu.
— É que como você veio tão rápido que eu tinha certeza que era uma briga. Mas então, Shō-san, já não vamos ter mais chance de brigar se não for nessa noite, sabe? O braço direito do idiota do Chōkichi vai sumir.
— O que? Como assim o braço direito dele vai sumir?
— Você não sabe? Eu também escutei agora há pouco do meu pai que estava conversando com a esposa de Ryūgeji, mas o Nobu-san logo vai entrar em alguma escola de monges por aí! Uma vez que ele vestir o manto, não tem mais volta! De fato, porque ficar dobrando aquelas longas mangas deve ser terrível! Desse jeito, a partir do ano que vem, vai todo mundo, do Beco ou da Avenida, virar seu capanga — bajulou Sangorō.
— Pára com isso! É só você receber dois sen do Chōkichi que você entra para a turma dele! Eu não ia ficar nem um pouco feliz mesmo se eu tivesse comigo cem pessoas que nem você! Pode escolher o lado que você quiser, eu não vou confiar em ninguém. Pelo menos uma vez eu queria dar uma surra só com estes braços naquele lá de Ryūgeji, mas é a vida se ele está indo embora. Eu tinha ouvido falar que o Fujimoto iria só depois de se formar na escola no ano que vem, mas porque será que adiantaram? É um idiota sem jeito — disse Shōta estalando a língua.
Mas nada disso o fazia esquecer a atitude de Midori por um momento que fosse. Sem cantar suas canções de sempre, Shōta sentia uma solidão que nem mesmo o grande movimento na Avenida o alegrava. Desamparado dentro da papelaria desde o acender das luzes, aquele dia do Galo havia se tornado um dos mais estranhos de todos.
Midori, daquele dia em diante, agia como se tivesse renascido em um corpo distinto. Visitava a sua irmã no distrito quando tinha assuntos a tratar e jamais tornou a brincar nas ruas da região. Aos chamados de seus amigos que sentiam sua falta, respondia: “daqui a pouco, daqui a pouco”, com incontáveis promessas vazias. Distanciou-se até mesmo de Shōta, seu amigo mais próximo e, sempre envergonhada, com o rosto corado, tornou-se impossível ver novamente a alegria das suas dancinhas na papelaria. As pessoas estranhavam, e havia também quem suspeitava ser culpa de alguma doença.
— Logo ela volta com o jeito moleca de sempre, isso é uma fase — dizia sua mãe, apenas sorrindo, com o jeito de alguém que sabia o motivo.
— Ela ficou mais feminina, mais dócil — havia quem a elogiava sem mesmo entender o que se passava.
— Ela era tão divertida, mas a deixaram sem graça — e havia quem a criticava.
De repente, a Avenida tornou-se um lugar desolado, como se seu brilho tivesse se apagado. Shōta raramente fazia escutar sua doce voz. Por noites e noites com sua lanterna de suporte em arco, sabia-se claramente qual era o dia da coleta do juros diário pela vaga frieza de sua sombra andando na barragem. Algumas vezes, ouvia-se a voz cômica de Sangorō, que o acompanhava, a única que não havia mudado com o tempo.
Midori jamais havia escutado os rumores de que Shinnyo de Ryūgeji partiria para os jardins do conhecimento de sua seita. Não reconhecia a si mesma, agindo há algum tempo de forma estranha ao reprimir o seu orgulho de outrora, envergonhada por qualquer coisa que fosse. Porém, em uma manhã coberta pela geada, percebeu uma flor artificial de narciso encaixada pelo lado de fora do portão treliçado. Midori não tinha como saber quem havia feito aquilo, mas, por algum motivo, possuída por sentimento de afeto, colocou-a em um vaso para uma só flor da sua estante em desnível e admirou a pureza solitária de sua forma. No dia seguinte, embora nada tivesse perguntado, ouviu o boato de que, no dia anterior, em um mosteiro ou algo assim, Shinnyo havia trocado as cores das mangas de seu manto.