O diamante de Bornéu

Hayashi Fumiko

Tradução: Juliana Paula Picanco Stracciolano Valverde

Primeira publicação da tradução: Trabalho de conclusão de curso pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Texto indisponível virtualmente.

HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

Texto original: "Boruneo daiya", 1946. Disponível em: Aozorabunko. Acesso em: 19/12/2024.

Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).

As luzes das velas brilham junto às águas turvas. Um pouco antes, o último pôr do sol desaparecera no longínquo céu. E os aguapés (ylang-ylang) que pairavam o dia todo sobre as águas, certamente buscavam seu abrigo noturno às margens. O silêncio era tamanho que dava para ouvir o estridente som dos remos das pequenas embarcações (tanbagan) quando saíam das margens do rio. Chuá, chuá. Como se penetrasse no mais íntimo da alma daqueles que o ouvem, o som dos remos sobre as águas convidava a uma solidão e saudade insuportáveis. De vez em quando, as árvores murmurantes nos arredores da casa se moviam de um lado para o outro. –– Tamae estava deitada de bruços, dentro do mosquiteiro branco, completamente nua. Colocando os pés sobre a almofada que parecia um longo travesseiro, esticada como uma rã, seu corpo era massageado pelas mulheres javanesas. Enquanto passava o óleo de coco por todo o corpo de Tamae, a massagista, com suas mãos firmes, esfregava suas costas com movimentos circulares gentis como se escrevera um ideograma japonês. Pressionando o rosto contra uma toalha grande, Tamae pensava na filha a qual abandonara. Pensava também no quão longe era o local para onde tinha ido. E sentia que não conseguiria mais voltar ao Japão se continuasse assim. Talvez pelo calor angustiante ou pelo fato de as rãs não pararem de coaxar, Tamae não conseguia organizar os pensamentos e eles tão pouco lhe chegavam à mente. “Será que estava chovendo quando partimos do porto de Hiroshima?...” Sua figura galante na viagem de quatro meses atrás, agora lhe parecia uma outra pessoa. Será que já era quase noite quando o navio adentrou o Rio Barito ?... Ao longo da margem coberta por manguezais, a embarcação ia deslizando lentamente pelas águas barrentas. De uma realidade para a outra, sem o amor do próximo, aquela estação do ano, estranha e incompleta, girava incessantemente como um pião dentro das lembranças de Tamae. Havia se passado quatro meses desde que partira do Japão. Ao chegar a este lugar chamado Banjarmasin, no sul de Bornéu, a chuva não dava trégua uma tarde sequer. Uma chuva grossa como barbante. Por se tratar de um lugar quente, a chuva, como que num ímpeto, fazia subir um vapor e tornava esbranquiçado tudo ao seu redor. As mulheres que lá tinham ido trabalhar, eram, em sua maioria, as que haviam chegado no limite do sofrimento em sua terra. Apenas Tamae, movida pelo impulso dos acontecimentos e convidada por alguém, acabou parando naquele lugar. Tamae era a filha de uma cabeleireira. Seu irmão mais velho saiu para uma expedição militar assim que a guerra sino-japonesa começou, mas acabou morrendo durante uma missão em Wú sōng. Como o outro irmão mais velho tinha medo da guerra, ele mesmo tomou a iniciativa de trabalhar em uma indústria bélica, se mudando para Mito. Nesta época, Tamae era uma estudante em uma escola para meninas. Porém, quando as aulas foram canceladas e todos os alunos tiveram que ir da escola direto para as fábricas, Tamae foi ficando entediada e quando faltava apenas mais um ano para se formar, sem dizer nada à mãe, largou os estudos e foi trabalhar como garçonete em um restaurante da estação de Ueno. Lá, ela conhece Matsuya, que era uma espécie de cozinheiro neste local. Os dois passam a se encontrar às escondidas em uma pensão próxima aos arredores da estação de Ueno e, Tamae, acabou engravidando. Até mais ou menos o sexto mês, Tamae não fazia ideia de que estava grávida. Só quando Matsuya lhe disse que ela estava esquisita, é que Tamae percebe, pela primeira vez, que não estava em sua melhor condição física. Para ela, que só tinha 17 anos, a mudança em seu corpo não era um motivo de grande preocupação. Ao deixar a casa dos pais para morar com Matsuya, pela primeira vez, Tamae foi aos poucos percebendo que seu destino não era dos melhores e começou a sentir-se melancólica. Aos 18, em uma pequena maternidade em Matsubachō, Tamae dá à luz uma menina. Assim que a bebê nasceu, sem nem consultar Tamae, que ainda estava internada na maternidade, Matsuya entregou a menina para uma família do bairro de Oji, em Tóquio. Tamae, que ainda era bem jovem, não possuía tanto remorso em relação a bebê, mas entregá-la nas mãos de terceiros lhe parecia, de certa forma, um tanto quanto deprimente. Desde que saíra da casa dos pais, Tamae não recebia comida direito e, hoje, vivia daquilo que Matsuya conseguia arranjar para ela. Para ela, era um tédio passar as horas em casa sem fazer nada, enquanto Matsuya saía para trabalhar. Sendo assim, um dia, Tamae foi até uma agência de trabalhos na vizinhança e conheceu a dona de uma pousada em Atami. Habilmente persuadida pela dona da pousada, que lhe dizia que, ao invés de viver uma vida monótona no pequeno Japão, ela deveria tentar a vida em algum lugar do Pacífico, Tamae, de repente, ficou com vontade de tentar. Com os 2500 ienes que ganhara da mulher para as despesas com os preparativos da viagem, Tamae enviou mil ienes para sua mãe, deixou os outros mil na pensão onde morava Matsuya e sem dizer nada a ninguém, partiu em direção à Hiroshima junto com outras cinco mulheres na mesma condição que ela.

Cada uma das cinco mulheres tinha uma história de vida diferente para contar. Na viagem de navio de aproximadamente três semanas, Tamae teve que ouvir as mesmas histórias das mulheres todos os dias desde que saíram de Hiroshima. Dentre as cinco, Tamae era a mais jovem e a mulher mais velha estava com seus trinta e poucos anos. O grupo consistia em oito pessoas: Sra. Fukui, dona da pensão, Tamae e as cinco mulheres e um homem de óculos, que veio de Bornéu para buscá-las, chamado Sakata. A cada dia ficava mais quente em alto mar e as mulheres não aguentavam mais a monótona vida dentro do navio. Aos poucos, começavam a sentir uma certa saudade de casa. Como a frente do navio era um hospital, durante o dia, não só os soldados de Sawayama que lá se encontravam, mas também Tamae e suas companheiras tinham que ficar no porão. Para irem ao banheiro que ficava no convés, tinham que vestir uma bata de enfermeiro branca e imunda. À noite, o símbolo da cruz vermelha brilhava nas laterais do navio. As mulheres e soldados passavam o dia todo nos fundos do navio, sem fazer nada. Tamae, deitada sobre um cobertor fino e sujo, lia uma revista que pegara emprestado de um soldado. Quando enjoava da leitura, ela abria sua sacola e de lá tirava alguma coisa para beliscar. Quando enjoava de comer, Tamae simplesmente fechava os olhos e pensava na criança dada em adoção e em Matsuya. E quando pensava na imagem de Matsuya procurando por ela, lágrimas escorriam sobre sua face. Ela pensava em voltar pra Tóquio. O combinado tinha sido passar dois anos em Bornéu. Ela pensava em voltar ao Japão e visitar Matsuya, mas como ele a receberia dois anos depois? Matsuya temia ser recrutado pelo exército japonês e, caso isso acontecesse, ele dizia que iria fugir. Mas quando o assunto era comida, “– Gente como nós, no final das contas, não tem para onde ir mesmo!” – dizia, rindo ironicamente.

Os acontecimentos dos últimos quatro meses pareciam vagos e distantes e Tamae só conseguia pensar no Japão como um sonho longe e antigo. Já em Bornéu, nos primeiros dois ou três dias, Tamae foi tomada por uma autorreprovação insuportável. Tudo que havia sido prometido em Tóquio era diferente. Ela tinha sido levada à Bornéu por causa de seu corpo. Em todos os quartos havia um tatami esfarrapado e uma mesa mal pintada. Para os oficiais de alta patente que vinham de fora, havia quartos com um espaço ornamentado em estilo japonês. Neste espaço, havia uma flâmula pendurada com a imagem do Monte Fuji e um estranho enfeite que em muito lembrava um leão sagrado. Deslocado naquele clima tropical exuberante, o deformado quarto japonês parecia pobre.

Quando a massagista javanesa foi embora, Tamae se levantou, foi ao local de banho e jogou várias vasilhas de água sobre si mesma. Dentro daquela casa onde não parece existir nem o dia e nem a noite, um grupo de oficiais, soldados e civis contratados pelo exército constantemente passava por ali. Um servente veio chamar Tamae várias vezes. Com uma grande indignação, Tamae imaginava como iria aguentar dois anos naquele trabalho. Mas ainda assim, se sentava em frente ao espelho, e começava a se maquiar. Sumiko, uma colega de trabalho que dividia o quarto com ela, estava tirando uma semana de folga e lá dormia. Dizendo que não se sentia bem, ela ficou trancada no quarto e não atendeu nenhum cliente. Enxotando os mosquitos com seu leque feito de fibra de coco, Sumiko estava na varanda escura e parecia pensativa. Quando Tamae sentou-se em frente ao espelho, Sumiko entrou no quarto e disse: “– Ei, não quer vir andar de barco comigo pra se refrescar um pouco?” A corrente do Rio Barito estava exatamente no delta de Banjarmasin e o Rio Martapura estava fluindo bem no centro da cidade. Indo até as margens, tem vários barquinhos atracados e como se fossem os táxis de 1 iene de Tóquio, a qualquer hora do dia eles navegam pelas águas para quem quiser. “– Vai ser refrescante só de pegar essa brisa!” “– Ai, não... vamos levar bronca de novo! Como é uma área militar, a gente não pode fazer o que bem quer!” “Não tô nem aí! Quem briga com a gente também não está fazendo o que bem quer?” Sumiko amarrou seu sarong e vestiu uma blusa de tecido fino. Com uma cor estranha e os lábios desagradavelmente inchados, talvez por culpa da luz opaca, seu rosto parecia deprimido. Sobrancelhas e olhos se destacavam, como se estivessem molhados. Tamae, vestindo uma camisa, sentou-se no pequeno tapete e acendeu um cigarro. O rosto maquiado parecia mostrar os impulsos de um coração vibrante. Talvez por ter encontrado um homem de quem gostara, tanto sua maquiagem quanto a postura eram bem adultas. Ou, quem sabe, ela também, como tais mulheres, tivesse acumulado a experiência e habilidade de distinguir bem dentre os homens, mas ela parecia um ou dois anos mais velha. Tamae vestiu uma blusa preta de tecido fino. Sentindo-se importante como se tivesse se tornado uma mulher respeitável, ela olhava para o espelho. “– Ei... não quer ir no rio comigo um pouquinho? Está escuro. Ninguém vai saber.” “– Tô pensando... É que o Ma está vindo.” “– Ele vai esperar por você. Sozinha é muito triste. Me faz companhia por uns minutos. Afinal... estamos todas no mesmo barco...” “– Tá bom, tá bom. Já entendi.” Calçando as sandálias de couro, as duas desceram da varanda e foram para a grama. No escuro céu, as negras palmeiras viajantes faziam lembrar que elas tinham vindo para uma terra muito distante. Quando voltaram para a margem, a maré já tinha subido. E a lama já tinha chegado até a rua. As duas caminharam por dentro do matagal bem alto. “– Tanbagaaan!” – Sumiko chamou o barco. Da sombra negra das árvores que cresciam sobre as águas, um barqueiro respondeu com uma voz abafada: “– Oooi!” Havia o som de um remo se movendo enquanto a embarcação deslizava até onde elas estavam. As duas pularam dentro do barquinho e por alguns instantes, aquele barco fino e longo com uma cobertura, mais parecia uma rede, balançando de um lado para o outro. Fora d’água, o intenso silêncio da noite caía sobre eles. As margens escuras do rio continuavam a ficar cada vez mais longe naquela neblina noturna. “– Quero voltar pro Japão!!”, diz Sumiko de repente. “ Tô com saudade de casa! diz ela. Como foi algo repentino, Tamae mal conseguiu responder, mas de alguma forma, aquele sentimento de Sumiko também começava a pressioná-la. Quando o barco chegou no meio do rio, o barqueiro, atento aos pedidos das duas, parou de remar e deixou o barco ser levado pela corrente. Nas casas em ambos os lados do rio, a fragrância das lamparinas de óleo de coco movia-se junto aos vagalumes. Tamae deitou-se no tapete de palha do barco. A fragrância das flores brancas, pairando na brisa gentil, espalhava seu perfume pela superfície do rio. “– Canta pra gente!” – brincou Tamae, chamando o barqueiro. O barqueiro soltou uma risada tímida, mas em uma voz inesperadamente jovial, começou a cantarolar umas cantigas nativas de quatro versos. Era uma bela e suave voz que ecoou por sobre as águas. “– Mesmo que eu não tivesse nada, só queria mesmo voltar ao Japão. Talvez a gente até sinta saudades de Bornéu, mas pelo menos uma vez eu queria voltar para Tóquio.” Mesmo dizendo isso, na realidade, Tamae não desejava voltar tanto assim. “– Eu, não. Eu quero voltar nem que seja nadando. É uma pena que eu tenha vindo parar num lugar desses. A madame diz que eu tenho os nervos fracos, mas não é isso... Mesmo quando eu estava de cama com dengue, eu sempre pensei que não queria morrer num lugar desses. Se não existisse guerra, a gente poderia voltar logo...” “– Você tá assim porque ele morreu, né? Por isso você está assim desiludida.” Dentre os clientes, havia um soldado do qual Sumiko gostava, mas há um mês, chegou a notícia de que ele tinha se ferido e morrido em uma base petrolífera no interior de Murung Pudak. De repente, já não se ouvia mais a voz do barqueiro cantando. E, agora, novamente, o barulho dos seus remos. Tamae queria passar a noite no barco. Queria tanto poder dormir direto, sem ser interrompida por ninguém.

Talvez fosse umas nove da noite quando as duas voltaram para o quarto. Quando Tamae foi para o salão principal, como de costume, estavam vários grupos de soldados bêbados, entoando hinos militares e discutindo por algo. Sumiko não saiu do quarto. Depois de ser obrigada a beber uns dois ou três copos de conhaque, ela já voltava ao seu estado normal e animado. Não havia nada o que pensar. Algo dourado e resplandecente como éter, parecia transpirar pelos poros do seu corpo. E, sem temer o lugar que fosse, movida por uma forte paixão, ela se deixou levar. A história de seus quatro meses em Bornéu sumiria como num piscar de olhos. Quando naturalmente ela sentiu aquela calma de que tudo de si já estava destruído, ela podia estar onde quer que fosse. Já não havia mais pudor. Ela tinha a confiança de que faria qualquer homem ajoelhar-se à sua frente. Tampouco a vida atual era tediosa para ela. Tarde da noite, Manabe veio de carro das minas de diamantes de Martapura para encontrar Tamae. Ao ficarem a sós naquele quarto estreito, Tamae, vestindo apenas uma blusa, ficou em pé na frente do ventilador. Como uma criança, ela abria os braços e tagarelava, ainda um pouco alta. Manabe tirou seu uniforme de verão, colocou-o sobre a mesa e deslizou o corpo até o mosquiteiro. No corredor, como de costume, ouvia-se palavras de baixo calão, vinda dos clientes que brigavam pelas mulheres. Tamae, como sempre, estava na frente do ventilador de baixa potência. Com gestos infantis, como se quisesse mostrar deliberadamente seu corpo branco e rechonchudo, Tamae cantarolou uma canção cujas palavras eram ininteligíveis. “ Por que você não vem pra cá?” “Porque tá calor!” “– Vai sentir mais calor ainda depois de ficar na frente do ventilador! Vem cá!” Tamae, simplesmente virou o ventilador em direção ao mosquiteiro e foi para a cama de Manabe. E como uma mania, Tamae costumava deitar sua cabeça na altura do peito de Manabe, mordendo os dedos da mão direita. Foram incontáveis as veze que os dois se deitaram na cama desta maneira, mas sem que houvessem mantido uma relação sexual uma vez sequer. Embora no meio de uma guerra selvagem, ele simplesmente abraçou Tamae. E ao amanhecer, ambos olhavam um para o outro com uma sensação de frescor. “– Você não gosta de mim. É o que eu acho. Você não tem um coração humano.” “– Que isso! Eu venho justamente porque gosto de você! Talvez você ache estranho, mas o fato de eu ter te encontrado em um lugar como este, é o meu destino. Se os olhares de todos não estivessem brilhando e não houvesse guerra, eu queria me casar com você, mas... não há o que fazer. Por qualquer coisinha, nós seríamos separados e enviados para um lugar distante um do outro.” “ Não seria melhor se a gente se casasse em alto e bom som?” “ Sim, mas... estamos em um campo de batalha e o exército está aqui! Eu mesmo, se não pertencesse ao exército, seria simples, mas não há nada o que fazer.” “É... é isso mesmo. E você tem uma esposa e um filho. E não deveria ser infiel a eles.” Manabe permaneceu em silêncio. Após alguns instantes, tirou do bolso um pequeno embrulho que mais parecia o de um remédio: – Esse diamante, fui eu que achei. Se um dia você voltar ao Japão, eu quero que você faça dele um anel.” – disse ele colocando o diamante bruto reluzente na palma da mão suada de Tamae. O diamante brilhava como se estivesse molhado. Talvez por estar deitado, para Manabe, as palmeiras nativas quando vistas por entre a claridade que entrava pela janela se expandiam como em um afresco. Na atmosfera matinal desta pantanosa região, tudo parecia encharcado pelo orvalho noturno. Tamae segurou o diamante e, por instantes, ficou fascinada por seu brilho. O diamante por si só parecia um objeto bastante trivial. “ A qualidade dos diamantes de Bornéu não é lá essas coisas, mas acho que deve ficar perfeito no seu dedo.” “ Por quanto será que consigo vendê-lo?Se alguém ficasse parado na entrada de uma fábrica em algum lugar do Japão, provavelmente veria muitas meninas com aquela feição comum de Tamae. Naquele rosto reto não havia nada de especial, a não ser pelos lábios pequenos e o olhar tenro por detrás daquelas pálpebras finas. Era um rosto comum, daqueles que as pessoas pensavam já ter visto em algum lugar. Quando Tamae, sempre prática, perguntou por quanto poderia vender aquele diamante, aquilo estragou a alegria de Manabe por uns instantes. “– Bom, talvez por uns 5 ou 6 mil ienes!”, disse ele, de maneira calculista, só para surpreendê-la. “– Nossa... essa pedra é tão cara assim? Estou surpresa! Então, esse diamante será uma fortuna para mim! Sério que ele vale tanto assim?” – Tamae olhava com mais cobiça ainda para o diamante. Manabe olhou distraidamente pela janela e Tamae o abraçou por trás e encheu sua face suada de beijos. Tendo se formado em metalúrgica pela Universidade Imperial, na época da ocupação do sul de Bornéu, Manabe havia sido enviado por uma empresa industrial de mineração como um funcionário comum do exército. Tendo vivido em um pequeno alojamento de oficiais em Martapura nos últimos dois anos, Manabe encontrara Tamae em um jantar oferecido por um oficial japonês. Tamae logo gostou de Manabe. Tanto que um dia, ela fingiu ser uma nativa indonésia, andou por quatro quilômetros e foi até a casa onde Manabe vivia. Manabe, no início, achou que ela fosse uma interesseira, mas havia algo na paixão avassaladora de Tamae que ia atraindo-o pouco a pouco. Ainda assim, ele achava um incômodo que seu lado perfeccionista não o deixasse chegar as vias de fato. Usar o corpo de Tamae como uma noite de consolação, significaria, em termos Zen budistas, experimentar o desgosto final de um desejo carnal. Uma vez que a chama momentânea da luxúria tivesse passado, a paz de espírito na manhã seguinte traria um grande alento para Manabe. Se a determinação começa a se perder, eu acabo por me tornar um homem comum e assim, despertam os desejos dos três venenos e cinco desejos. Pensamentos homicidas, criminosos, pensamentos de fornicação, de avareza, de calúnia, prevaricação, de mentiras bem contadas, de falsidade, ira, reclamações, orgulho, de cobiça, inveja... Assim estavam cravados no íntimo de Manabe, os mandamentos do terceiro discípulo do mestre Musō, os quais ele lera na época de estudante. Romper violentamente com todas as conexões com o mundo e buscar de toda o coração os segredos de sua própria alma. Este era o degrau mais elevado do esforço espiritual. Misturar todo o tipo de conhecimento de maneira confusa, com um amor impuro de conhecimento. Este era o degrau do meio. Mas, escurecer a luz da própria alma, adorar ignorantemente a saliva de Buda – este era o degrau mais baixo. Ainda que Manabe decidisse comprar Tamae por uma noite com a desculpa de que aquilo ali, afinal de contas era um campo de guerra, sua moral não o permitiria pensar tão longe assim. E quando ele se questionava se o seu caso com Tamae era correto ou não, via que isso também era o mesmo que escurecer o brilho de sua própria alma. Realmente havia inibições em um campo de batalha. Os olhares de inúmeros japoneses nele também era algo intimidador. E para o Manabe, estudante do governo, pendia em frente aos seus olhos a palavra: “honra”. Ainda assim, como era agradável aquela voz feminina doce e carinhosa que susssurrava apenas para ele nas noites solitárias em uma terra desconhecida. Havia um homem na mesma residência na qual Manabe morava que ao invés de escrever um diário, escrevia uma carta para sua esposa todos os dias. Manabe achava invejável a saudade genuína daquele jovem. Ser parte de uma tropa era avançar galantemente até conquistar um território, sem tempo de pensar em nada. Porém, uma vez que o território era ocupado, e eles ali se assentavam, a regra de honra das tropas tornava-se covarde em frente a paz e a calma começava a desaparecer. Quanto mais calmos os arredores, as regras dos militares começavam a desmoronar. Passavam a ficar turvas. Com Manabe, também era assim. Enquanto estava correndo de um lado para o outro nas minas dos territórios ocupados, ele estava dando a vida pelo país, mas quando aos poucos os resultados começavam a surgir, Manabe ficava entediado e era assolado por pensamentos de um tédio insuportável e por um sentimento de incapacidade. Seja quando ficou vagamente apaixonado pelo caminhar da servente da tribo Dayak que em muito lembrava as japonesas ou quando de algum modo buscava em meio as mulheres javanesas ou malaias por aquelas com o corpo mais belo, enquanto peneiravam as areias que continham diamantes. Trabalhar nas minas sob as ordens do exército significava não ter descanso, mas aquele brilho líquido que só o diamante possui, sempre fazia Manabe pensar na pele macia de uma mulher. Mais do que o lado prático dos diamantes, que eram usados em muitos dos maquinários, Manabe sentia prazer em imaginá-los como um adorno em belas mulheres. Amarelo, lavanda, roxo, azul-cobalto, rosa… do trabalho de milhares de peões, assim, aos poucos, os diversos tipos de diamantes emergiam das areias. Aqueles diamantes que apareciam aos poucos, acabavam desaparecendo nos arsenais do Japão. A beleza reluzente do diamante, ao se afastar da área de mineração, era como se estrelas cadentes tivessem se tornado pedras e dissipassem como o orvalho, tornando-se ao final, o orvalho fugaz do campo de batalha. Uma vez, Manabe enviara um maravilhoso diamante azul-cobalto para sua esposa. Dias depois de receber o diamante, ela o doou ao governo. Depois, chegou uma carta sem noção, dizendo que ele deveria elogiá-la pela atitude patriota e por ter percebido os desejos mais profundos de seu marido. Manabe estava certo de que uma pedra tão bela como aquela era uma raridade e dificilmente seria encontrada de novo. Por isso mesmo, sentiu raiva e remorso pela atitude insensata da esposa. Chegava a ser patético pensar na falta de noção que sua esposa tinha com joias, tratando-as como se fossem incontáveis letras saídas de uma máquina de escrever. As mulheres japonesas não conheciam a real beleza de uma joia nem seu valor no mundo. Nos dedos das mulheres japonesas, castigados pelo trabalho insano do dia a dia, talvez a beleza de um diamante fosse algo demasiado assustador. O território conquistado às custas de uma carnificina em prol dos conquistadores ignorantes que desprezavam o povo local como uma raça inferior e os quais não conseguiam perceber as falhas de seu próprio governo. Havia algo em comum entre isso e a ignorância da mulher japonesa que não conhece o valor de um diamante. Nestes dias de estagnação do regime militar, Manabe sentia isso. Ser perguntado por Tamae quanto custava aquele diamante, era agora, pelo contrário, algo bastante agradável para Manabe.

Tamae mandou a servente à feira para comprar para eles vinte churrasquinhos de frango apimentado e, assim, comeu junto com Manabe dentro do mosquiteiro. Hoje também está quente. Aquele céu vasto, de cor azul cobalto, típico dos países do sudeste asiático, era tão claro que se chegava senti-lo como agulhas espetando os olhos. A seca cidade de Banjarmasin, onde não havia um transporte público a não ser carro ou bicicleta, era abafada e deserta durante o dia todo. De uma margem a outra, na superfície enlamaçada do rio, havia movimentação e barulho das pequenas embarcações que mais pareciam brinquedos ou caixinhas viradas. Seus guarda-sóis em forma de tigela, tão grandes, que podia-se vislumbrar as mãos trabalhando no remo sob eles, deslizavam como as muitas flores à deriva, no riacho. Em meio ao alvoroço de embarcações, uma enorme quantidade de plantas aquáticas acotoveladas uma as outras eram empurradas rio acima pela maré. O fluir das plantas aquáticas era tão denso a ponto de nem conseguir ver a água e, ao observá-la por alguns instantes, se criava a ilusão de que o barco deslizava pelos trilhos. Dava a impressão de o próprio planeta terra estar se movendo. A parte da frente das casas às margens do rio funcionava como loja. Dava até para parar o barco na frente do armarinho e fazer compras. As pessoas podiam até pechinchar arroz e artigos diversos à beira do rio. As próprias embarcações vendiam artigos como café e maços de cigarro bem arrumados enquanto remavam lentamente pelo tráfego fluvial. Crianças nuas nadavam, separando as raízes dos aguapés (iron-iron). Neste rio, pelo menos, o homem e a natureza, indiferentes à guerra, divertiam-se uns com os outros, como cachorrinhos, criando juntos um mundo natural adorável. Para os habitantes de Bornéu, não deveria haver nada mais perturbador do que esta guerra.

A única água potável aqui era a da chuva, que fazia com que as pessoas tivessem preguiça de escovar os dentes. Manabe também tinha os dentes amarelados por causa da nicotina. “– Então...sabia que a Sumiko queria voltar pra Tóquio a nado? O que você acha? E você? Você deve querer encontrar com sua mãe...” “– Bom, de vez em quando eu até sonho com ela, mas uma vez que se está aqui, não há o que fazer. A Sumiko, eu já acho que vai enlouquecer. Não sei, mas é estranho... desde a morte daquele soldado, ela não serve para absolutamente nada. Talvez ela esteja pensando tanto nele que...” “– Sei lá...deve ser o clima de Banjar. quente e não dá nem tempo de esfriar a cabeça!” Tamae, sem modos, colocou as duas pernas no peito de Manabe e com a cabeça pendurada para fora da cama, enquanto fumava um cigarro, como se fosse uma acrobacia. Talvez por estar ligado a noite toda e estar sem força, o ventilador girava suas lâminas lentamente com um som como se estivesse arrastando latas. “ Ela perdeu bastante peso, não? Sei lá... parece bem solitária.” “Verdade. Mas ultimamente ela ficou até mais esperta e bonita! Ela diz que tem vinte e sete anos...” “– Tudo isso?” “– Pois é, ela nasceu em Kobe, trabalhou de garçonete, de gueixa...enfim, já fez várias coisas!” “– Nossa...nem parece!” “– Sabe, na noite passada nós andamos de tanbagan. Sumiko estava chorando e dizendo que queria voltar para o Japão.” Ao ouvir que Sumiko tinha chorado, Manabe sentiu pena dela. Um lugar quente como aquele era demais para alguém conseguir suportar. Não importa o que falassem. O lugar era quente. Empurrando o corpo de Tamae para o lado, do nada, Manabe se levantou e saiu de dentro do mosquiteiro. Quando olhou no espelho, percebeu que sua barba tinha crescido em questão de uma noite. Seu rosto oleoso estava marrom e sujo. Vestindo seu uniforme de verão pegajoso de suor, Manabe beijou a testa de Tamae através do mosquiteiro branco e disse: “– Eu volto em breve. Se cuida, tá?” Havia um cheiro de perfume azedo. Deitada, Tamae observava Manabe ir embora. Depois de algum tempo, ao longe, ouviu-se o barulho de um motor de carro antigo e Manabe partiu, tocando a buzina. Tamae, então, tirou de debaixo do travesseiro o pacote com o diamante e o observava atentamente, agora, em um lugar com claridade. De repente, do nada, veio à sua mente o rosto do bebê do qual ela fora separada. O amarelo da pedra do diamante brilhava de forma gélida. Era a primeira vez em sua vida que Tamae tinha um diamante. E isso lhe causava uma sensação delicada. Ao colocar em seu dedo, o diamante parecia um pouco solitário naquele dedo atarracado e com covinhas. Em seu coração, Tamae sinceramente achava que a cor escarlate de um rubi ficaria melhor nela. “– Esse tipo de pedra valia tanto assim? Apesar do alto valor, era pouco atraente. A madame sempre chamava um joalheiro para avaliar suas joias. Será que eu deveria vender esta pedra para ela?” – pensava Tamae. –– “Tamae, aconteceu uma desgraça!” disse Masaki colocando o rosto na janela. “–A...a Sumiko acabou fazendo aquilo!!” “– Hã? O que é que ela fez? perguntou Tamae, pegando o pacote do diamante enquanto descia da cama. “– Isso aqui!” – respondeu Masaki, colocando a língua para fora e pendurando os braços para baixo. “– Quando foi isso, meu Deus?” – desse jeito, ela calçou as sandálias e foi com Masaki até o quarto das duas. Um médico do exército e dois ou três soldados das forças terrestres também estavam ali. Tamae entrou no quarto e por alguns instantes ficou observando aquela terrível cena. Ao olhar o cadáver, Tamae sentiu um desejo de viver fervendo dentro de si. Como uma corrente elétrica, o desejo correu pelos ombros nus, braços, panturrilhas, aquecendo e anestesiando Tamae. “– Deve ter sido hoje pela manhã.” “– Ela fez na sala de banho.” As outras mulheres e a dona da estação de conforto estavam ao redor do corpo, tagarelando e fazendo uma algazarra. Quando o médico e os soldados partiram, Sakata deu instruções para o servente e, assim, o corpo de Sumiko, que parecia ter murchado de tristeza, foi enrolado em um lençol e colocado no canto do quarto. O pé descalço do cadáver parecia terrivelmente plano e inchado. Sakata, então, tentou juntar as mãos de Sumiko e colocá-las sobre o peito, mas essas mãos já não se moviam livremente. Na cabeceira, o yukata de Sumiko estava pendurado. “– Ela está exatamente como ontem à noite.” – observar Sumiko deitada ali, vestida com o seu sarong de chita e sua blusa branca de voile, com os olhos entreabertos e a língua para fora, era insuportável para Tamae. –– De repente, decidiram dar um dia de folga para Tamae e suas colegas. Depois de prontas as marmitas, elas partiram de carro para a Praia de Takisung. O carro, emprestado pela administração civil, veio até eles com um motorista malaio. Se ele não estivesse fumando cigarros de fibra de coco e fazendo uma fumaça fedorenta, realmente teria sido um passeio agradável. Tamae sentia um peso em seu peito. Sentia remorso por sua insensatez em não perceber o sofrimento mortal de Sumiko até o último momento em que se despediram na noite anterior. Embora Sumiko estivesse morta, não havia ninguém chorando ou chateado com isso. A coisa mais estranha, porém, foi a madame dizendo: “– Ela está melhor agora”– enquanto tentava enxugar uma lágrima com o lenço. “– A dona estava chorando por ela, né?” – lembrou Masaki dentro do carro. “– Aquilo foi só pra ela se distrair” – tal comentário impiedoso veio de Shizuko, cujo apelido era Kuroko, devido a seu corpo grande e sua pele escura. –– Já era a hora do almoço quando chegaram nas colinas onde ficava o pasanggrahan (albergue). Embora fosse um pouco enlamaçado e de cor avermelhada, quando as mulheres viram a expansão ilimitada do mar, ficaram muito animadas e começaram a bater papo. Aos olhos das mulheres que achavam que o mar era azul, aquela cor avermelhada da praia de Takisung, só servia para lembrá-las ainda mais sobre as vicissitudes da vida. Tamae descascou um ovo cozido e comeu. A triste imagem de Sumiko vêm à mente. “– Será que sou uma mulher má?” Consternada, ela contemplava seus sentimentos recentes meio esquecidos na distância do céu vazio. No piso de madeira antigo da sala daquela pensão caindo aos pedaços, as mulheres abriram suas marmitas. O zelador, um homem da tribo Dusun, veio servir um café morno. “– Tão tranquilo, né? Te faz até perguntar onde é a guerra.” – disse Masaki, uma mulher já madura, vestindo um quimono e que mais fazia lembrar uma garçonete dos restaurantes de Asakusa e arredores. Masaki, contemplava o mar enquanto acendia um cigarro. “– A Sumiko queria muito voltar pro Japão. Na noite passada, nós andamos de Tanbagan, mas...aquela seria a última vez. –– Ela não precisava ter morrido!” “– Verdade... Tamae, você ainda é uma criança e por isso não sabe, mas o soldado da Sumiko foi morto em Murung Pudak. Você não sabia, né? Ele foi mandado para o presídio de segurança máxima por causa da Sumiko. Os dois estavam tão apaixonados que pensavam em fugir e se disfarçar de nativos. No pior dos casos, esse soldado recebe a pena de morte. Então, a pessoa que Sumiko mais amava morreu e, para ela, já não havia mais graça em viver sob este céu. Ela costumava dizer que se ele estivesse em um local até onde ela pudesse chegar, ela ficaria em paz. Além disso, ela tinha problemas de pulmão e aquele era o seu destino. O destino de Sumiko. esclareceu Shizuko. Um vento pesado, carregado de umidade começava a soprar. Ao longe, sob a sombra das árvores tropicais, o carro estava protegido contra o vento. As crianças do vilarejo, correndo pelo terreno arenoso, vieram ver o carro. Dava a impressão de serem pequenas. A silhueta delas correndo enquanto resistiam ao vento, em muito lembrava os camarões.

Notas