Narcisos

Hayashi Fumiko

Tradução: Thais Diehl Bresolin

Primeira publicação da tradução: Nota do tradutor, vol. 2, no. 25, p. 139-167, 2022. Disponível em: Nota do tradutor. Acesso em: 31/10/2024

HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

Texto original: "Suisen". In: Bangiku, 1949. Disponível em: Nota do tradutor. Acesso em: 31/10/2024.

Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).

Nota: A versão disponibilizada aqui passou por revisão realizada pela tradutora, Thais Diehl Bresolin, e, portanto, não corresponde completamente à primeira versão publicada na Nota do tradutor.

Ele estava parado ao lado da cama de Tamae sem tirar o cigarro da boca, e ela se sentiu obrigada a desviar os olhos da revista e perguntar:

— Como foi?

Sakuo não era gentil para dizer como havia sido seu dia para a mãe. Mesmo com ela perguntando: “Como foi?”, ele deu um sorriso, puxou uma almofada com a ponta do pé e disse, mostrando a língua vermelha, ao soprar um círculo de fumaça:

— Você é uma mãe ingrata, então foi impossível.

— Como assim, sou ingrata? Sou sua mãe, então fale direito comigo. Se apresentou para o Sr. Tsuda?

— Sim. Ele mandou lembranças pra você.

Tamae se levantou e fitou o rosto de Sakuo por um breve momento.

— O que você quer dizer com mãe ingrata?

— Neste mundo existem filhos ingratos, não é? É o contrário disso. Estou dizendo que minha digníssima mãe é ingrata.

O peito de Tamae fervia ao ouvir palavras tão odiosas do seu próprio filho.

— Eu não tenho motivos para ouvir você me dizer que sou uma mãe ingrata. Me separei cedo do seu pai e o criei até hoje sozinha, não é mesmo? Você é parecido com o seu pai, e me maltrata como ele fazia. Já vai fazer vinte e dois anos, é melhor arrumar algum emprego e tomar jeito. Tudo sempre acaba dando errado, porque você é mal-educado. O Sr. Kamiyama também falou isso. Você foi pedir um emprego, mas ficou fumando todo arrogante, e ele soube imediatamente que não servia pro trabalho.

— Ah, é assim? Pra achar um emprego, eu só preciso ter boas maneiras? Mesmo que eu seja burro, vou conseguir, se tiver bons modos?

Sakuo, com seu cabelo intencionalmente longo nas têmporas, parecia um toureiro espanhol. Para Tamae, ele não se parecia nem um pouco com a criança que há pouco ia para a escola, mas ainda era difícil dizer que ele havia amadurecido completamente, com a macia penugem que crescia embaixo do seu nariz. Ela sentia como se um homem desconhecido estivesse sentado à sua cabeceira.

— Por que não consegue ser mais humilde? Não tem uma pessoa que goste de você.

— Já disse, é porque você me criou assim, então eu não tenho o que fazer. Se você criou o filho ideal, não tem do que reclamar, não é mesmo?

Os olhos de Tamae se encheram de lágrimas. Ela fitou o filho que havia cruzado as pernas, apoiando-se na parede, e que dizia coisas tão terríveis com tanta tranquilidade.

— Somos mãe e filho. Por que sempre preciso discutir com você desse jeito? O que foi que o Sr. Tsuda falou?

— Não falou nada. Só que não sabia o que fazer comigo, então disse pra eu tentar responder um teste, e eu respondi.

— E você está confiante?

— Não. As perguntas não faziam sentido, então nem tive vontade de escrever...

Um tímido sorriso transpareceu rapidamente no rosto de Sakuo, que enfiou o resto do cigarro no cinzeiro sujo.

— Seria bom se pelo menos você conseguisse responder o teste inteiro...

Tamae observou o semblante de seu filho imbecil, sentindo-se miserável por não duvidar de que ele se tornara um ser humano incapaz de subir na vida, e que seguiria para sempre assim.

— Seus modos não são bons, não conseguiu responder nada do teste. Realmente não há nada que o Sr. Tsuda possa fazer, não é?

— Bom, acho que é isso mesmo...

Tamae não queria mais abrir a boca. Há muito tempo, havia pensado em abandonar essa criança e, se houvesse se decidido por isso à época, provavelmente agora não estaria com esse problema.

— Como era o teste?

— Como era? Do tipo que tem coisas que não me interessam nem um pouco. Como a França solucionou sua crise? Qual é a idade de Truman? Eu nunca pensei sobre esse tipo de coisa, nem uma vez.

Tamae, desgostosa, colocou o quimono sujo por cima de sua felpuda roupa de dormir desgastada e levantou-se cambaleante. Ela foi ao banheiro encher a chaleira de água e, ao voltar, deparou-se com Sakuo remexendo dentro de sua bolsa.

— Está procurando alguma coisa?

— Quero um pouco de dinheiro.

— Procure o quanto quiser que não tenho. Você realmente virou uma pessoa ruim. Por favor, pare de fazer a sua mãe sofrer. Por que você quer tanto atormentar a sua mãe? Com que propósito?

Sakuo encontrou uma lixa de unhas dentro da bolsa e, enquanto lixava com violência as próprias unhas, disse:

— É brincadeira... Ninguém atormenta a própria mãe. Combinei que ia visitar o Sakurai hoje à noite, acho que um homem adulto não pode ir com só o dinheiro pra passagem de trem...

Tamae não falou mais nada. Colocou a chaleira no fogareiro elétrico, parou em frente ao espelho pendurado na coluna e observou fixamente seu rosto em silêncio. A velhice se aproximara desapercebida. Para Tamae, ter quarenta e três anos de idade era um tanto frustrante. Sentiu como se tivesse envelhecido desleixadamente. Ela não envelheceu por se devotar ao seu filho, mas, se apenas não tivesse tido esse filho, era possível que estivesse vivendo inesperadamente feliz agora mesmo. Ela não percebia que não adiantava espernear, não seria feliz novamente. Penteou o cabelo desarrumado e sem brilho. Seu cabelo estava ralo. Ao pensar que talvez fosse culpa da conduta licenciosa de sua juventude, Tamae passou um óleo lustroso e tentou ajeitar o cabelo para cobrir sua testa. Seu rosto bem definido com maçãs do rosto magras parecia, até certo ponto, jovem. Ela mudou de ideia e, como se fizesse uma cirurgia, penteou o cabelo para trás. Misteriosamente, envelheceu de súbito. Ela verteu a água fervida da chaleira em uma bacia, aqueceu uma toalha com o vapor e colocou-a sobre o rosto. Suas pálpebras tremiam embaixo da toalha quente.

— Mãe, você vai sair?

— Sim, vou dar uma saída para arranjar dinheiro.

— Vai para algum lugar em particular?

— Não, mas não tem outro jeito...

Tamae removeu a toalha e se olhou no espelho. A pele corada trazia vida ao seu rosto. Desejando que pudesse ter sempre essa cor, começou a espalhar generosamente pelo rosto todo um creme que cheirava a petróleo. Ela massageou repetidamente ao redor dos olhos com os dedos ossudos e seu rosto iluminou-se. Finalmente maquiada, soltou a franja novamente, passou ruge nas rugas ao redor dos olhos e se olhou de longe no espelho. Tamae não gostava da água morna suja e turva da bacia que parecia ressaltar sua pobreza. Mesmo o seu rosto maquiado era inesperadamente deselegante, talvez por fazer cinco dias que não ia ao banho público. O batom não se espalhava nos seus lábios duros e rachados, fazendo seu lábio inferior protuberante parecer até um sashimi de atum de cor desagradável.

— Hein, filho, acabaram-se as minhas forças para ajudá-lo, então, você não quer me deixar e dividir a casa com o Sakurai? A sua mãe cansou de verdade, você e eu parecemos ser inimigos de outras vidas que calharam de se reencontrar, não é? Você já é um homem feito, mas não faz menção de libertar a sua mãe! Não vou reclamar do que você fizer, então não quero que reclame do que eu fizer. Me preocupo com o seu corpo fraco, então se você ficar doente, pensarei nisso quando for a hora. Não quer ser independente? Eu acho que assim também seria melhor pra você...

— Então me tornei um estorvo para a minha digníssima mãe... Nem precisamos viver separados, se quiser, posso te chamar de irmã, como fazia antigamente...

Tamae aplicava desesperadamente uma camada pesada de batom enquanto observava os dentes brancos no seu sorriso dentro do espelho. Ela não respondeu.

— Eu não quero...

Tamae, observando seu rosto refletido no espelho com olhos de brilho malévolo, disse:

— Mas a sua mãe não tem mais paciência para viver em uma casa de um quarto com você. Não sou mais jovem para viver brigando. Veja bem, isso aqui não é “Uma Vida”, que você também leu, mas parece que você vai acabar me matando.

— Você só pode estar brincando. Você é muito presunçosa. E existe algum filho que mataria a própria mãe? Eu não penso em você nem um pouquinho... Não passo de um Cristo que tomou emprestado seu útero...

— Ah, é mesmo? Então, fique à vontade para criar asas e alçar voo da Maria. Porque não existe lei que me obrigue a sustentar você, que já é um adulto, até sabe-se lá quando.

Tamae vestiu calças pretas com um casaco verde igualmente puído. Nós pés ridiculamente finos, colocou meias de lã. Sentou-se, com as pernas para o lado, diante do forno elétrico e esticou as mãos sujas sobre o redemoinho de fogo para pintar as unhas de vermelho. Sakuo observava distraidamente as mãos de Tamae. Não passavam de mãos de um demônio. Seu coração ressentido de quem nunca ouviu uma palavra gentil sair da boca da mãe sentiu uma irresistível vontade de se rebelar e atormentá-la.

— Que mãos sujas, hein? Minha mãe já está velha.

— Que comentário desnecessário. Quem foi que fez minhas mãos ficarem assim? São mãos que colocaram lenha no fogo para alimentar você depois de voltar do trabalho.

— Hm... Se for assim, então não se sujaram muito, não é?

Ela acabou de pintar as unhas de vermelho, poliu o esmalte com um trapo para ficar brilhante e colocou novamente as mãos dentro da suja água morna. Com a pouca espuma que o sabão fazia, tentou lavar bem as mãos. Tamae, então, secou-as com a toalha e as esticou para examiná-las novamente.

— Viu, não é brincadeira. Mude-se. Estou profundamente cansada de você.

Sakuo fechou os olhos por um momento e bateu repetida e levemente a cabeça na parede. Tamae colocou o sobretudo nos ombros, serviu-se da água que restara na chaleira, misturando-a com o açúcar mascavo recebido do racionamento, e a bebeu.

— Minha digníssima mãe não pensou em mim com afeto nem uma vez que seja, não é?

Ela afastou rapidamente a mão que segurava o copo de seus lábios. Tamae observou o rosto do filho. Sua expressão era de extremo cansaço. O semblante dele lembrava um pouco seu ex-marido quando jovem.

— Ora, eu já te amei, sim. Mas, com a correria da vida, simplesmente nem sempre tive tempo de cuidar de você. Bem, eu te pari, é claro que eu gosto de você, Saku. Mas agora chegou a hora de nos separarmos. É o que eu penso... O Saku da mamãe é apenas aquele que era um pequeno menino. Você já está grande e vê a sua mãe como uma estranha com seus olhos de adulto... Eu e você, Saku, fomos uma família assim. Não quero acabar enterrada desse jeito e, além disso, sinto que já trabalhei o suficiente. Me senti sem esperanças quando me deparei com a sua crueldade. Saku, você é um pesado fardo para a sua mãe...

Sakuo ofereceu um cigarro antes de pegar o maço do bolso do sobretudo puído. Tamae pegou um e colocou entre os lábios. Sakuo também colocou um entre os lábios, acendendo-o com o fósforo, e logo após também o de Tamae.

— Está bem. Então só me resta ir pra casa da Eiko, tudo bem?

Ao ouvir o nome de Eiko, Tamae disse:

— Ah, não há outra solução? Se for o caso, faça isso. Quando a sua mãe para de alimentá-lo, você vai viver às custas da Eiko? Por que não consegue trabalhar como um adulto em vez de ficar apenas extorquindo mulheres? Mesmo que diga que a Eiko é louca por você, ela não é confiável e, o mais importante, ela não tem a sua idade, não é? Me disseram isso e fiquei envergonhada.


Tamae nascera em Taipei, Taiwan. Seu pai trabalhava em uma ferrovia e, por ser filha de um oficial do governo, recebeu uma educação rigorosa. Conheceu Ibe Naoki, que havia se hospedado durante mais ou menos um mês na casa de um conhecido de Tamae em Taipei, após ele deixar o seminário de Xiamen. Os dois fugiram juntos e vieram para Tóquio. Tamae tinha dezenove anos, e era a primavera do ano seguinte de sua formatura da escola feminina. Os dois alugaram uma modesta casa de quinze ienes por mês em Oimatsuchō, na região de Zōshigaya, onde Tamae teve Sakuo. Ibe tinha o desejo de ir para os Estados Unidos, mas tal viagem era inconcebível para uma família necessitada como a sua, que ele mal sustentava, mesmo auxiliando na edição de uma revista religiosa. Uma amiga da escola de Tamae, Ōkawa Tatsuko, foi à capital para estudar para o exame de admissão de uma escola de música. No tempo em que ela alugou o segundo andar da casa de Tamae, Ibe se aproximou de Tatsuko bem debaixo do seu nariz. Após cerca de dois meses, Tamae descobriu o relacionamento insólito dos dois e, furiosa, começou a pressionar diariamente a pacata Tatsuko a confessar. Tatsuko era uma mulher pacata. Desde que sua relação com Ibe havia sido revelada, ela perdera gradualmente a vitalidade de antes e a ambição pela escola de música acabara frustrada, e com seu estilo de vida ocioso, foi de mal a pior. Por não aguentar mais morar na mesma casa, Tatsuko se mudou para uma apertada casa de apenas três cômodos que encontrou em Dōzaka, Hongo. Embora ficasse em Dōzaka, era próxima ao Jizō-sama de Tabata, região que muitos funcionários de atacado atravessavam a caminho de Shitamachi. Ela se mudou enquanto Tamae não estava, mas Tamae acabou farejando a casa de Dōzaka, apareceu sem ser convidada, causando um grande alvoroço arrastando Tatsuko pelos cabelos. Não havia completado meio ano que Tatsuko havia se mudado para Dōzaka, quando se suicidou inalando gás naquela mesma casa. Logo depois, Ibe largou o emprego, partiu subitamente para Xiamen e, de lá, foi para a Malásia. Disseram que ele estava em um lugar chamado Kuala Lumpur. Isso foi em 1928. Tamae odiava Ibe e odiaria a falecida Tatsuko para sempre. Quando Tamae se lembrava do rosto alvo de Tatsuko com as sardas que rodeavam seus olhos e nariz, sabia que nunca conseguiria esquecer a imagem de sua morte com o cano de borracha do gás entre os lábios. Quando Tamae via as pequenas sardas ao redor dos olhos de Sakuo, por algum motivo, o ressentimento que sentia por Tatsuko passava para o filho e sentia repulsa dele.

Com a ajuda de um conhecido de Ibe, Tamae conseguiu um emprego de auxiliar de edição em uma revista religiosa, mas não era fácil para uma mãe solteira arcar com uma empregada. Ela também havia rompido a relação com os pais em Taipei e, por isso, Tamae levou uma arriscada vida, como se andasse na corda bamba, de um homem para outro.

Quando deixou de ser criança e virou adolescente, Sakuo começou a entender o mundo ao seu redor, julgando a vida de sua mãe um mistério que, do ponto de vista de um adolescente imaculado, era algo desagradável. Tamae fazia Sakuo chamá-la de irmã. Quando começaram a viver apenas os dois, sem empregada, Sakuo sempre praguejava quando sua mãe passava a noite fora. Os dois viveram aos insultos por um longo tempo. Por causa do descontentamento da vida em casa, Sakuo era tímido para conviver com uma multidão de seres humanos, como na escola, o que o fez negligenciar os estudos, mas quando finalmente se formou no ensino fundamental, matriculou-se no Instituto B, enquanto vivia como um parasita com Tamae. Porque seu corpo era fraco demais para a guerra, os dois mudaram de casa diversas vezes para fugir da lei de convocação, evitando que ele fosse escalado para trabalhar. Depois da guerra, Tamae alugou um quarto na casa de um conhecido em Kōenji, onde morou com Sakuo, mas ela se deslocava para trabalhar como camareira-chefe em um motel de Ikebukuro, emprego que encontrou através de uma vaga no jornal. Ela fez amizade com os contrabandistas que frequentavam o motel e começou a vender narcóticos importados com habilidade, guardando dinheiro aos poucos, porém, quando poupou uma quantia suficiente para finalmente respirar um pouco, Sakuo se apossou desse dinheiro, gastando até o último centavo e tornando penosa a relação entre mãe e filho. Às vezes, Tamae queria matar Sakuo. Não sabia se Ibe estava vivo ou morto, não sabia de seu paradeiro há vinte anos.

Nessa época, Sakuo arranjou uma namorada. Sakuo gabava-se descaradamente dessa dançarina casada para Tamae. Certo dia, por acaso, Tamae voltou mais cedo para casa e, ao encontrá-lo dormindo com essa mulher, agarrou os cabelos daquela que se deitava com seu filho e esbravejou palavras ríspidas, como fizera naquele passado distante com Tatsuko. Por medo da ameaçadora Tamae, a mulher não voltou outra vez, mas Sakuo atormentou a mãe dizendo que ela se separara do marido e que o pressionava para morarem juntos. Sakuo não gostava dessa mulher ao ponto de amá-la. Simplesmente a escolheu porque era cômodo estar com uma mulher que o sustentava. Sakuo fora criado por uma mãe excêntrica e não sabia o que era o verdadeiro amor. Desde cedo, exibia a natureza indolente de um velho, sempre esperando que uma mulher entregasse-lhe tudo de mão beijada para sustentar sua personalidade preguiçosa.

— Mãe, se você quer se separar de mim, pode ir em frente. Mas eu não posso fazer isso hoje. Preciso ir até a casa da Eiko perguntar a ela, não é tão simples assim.

Tamae começou a antecipar a liberdade que teria sozinha ao separar-se de Sakuo. Também não seria mais preciso se encontrar secretamente com Tomita e pagar a cara conta do hotel. Ela queria tentar remodelar nem que fosse uma parte dos ares daquele quarto. A sujeira varrida da varanda formava uma montanha no apertado jardim. Um gato vira-lata frequentemente entrava no meio do lixo, esparramando-o. Na frente do apertado jardim, havia uma sebe de ciprestes-sawara seca, e foi por essa cerca quebrada que um ladrão entrou uma vez, fugindo com o único par de sapatos de Tamae. Por ser tão desleixada, fora proibida de utilizar a cozinha do proprietário. Tamae dormira esses últimos dois ou três dias por conta do resfriado. Talvez por causa de sua idade, não tinha energia para fazer nada e apenas dormia. Já era a época do Ano Novo, porém, este era o único lugar que não demonstrava o menor sinal disso e Tamae não pensava nem em comemorar com um mochi.

Ela planejava sair e, embora estivesse arrumada, sentiu-se envergonhada de usar os tamancos no caminho enlameado à cidade depois da chuva de ontem.

— Saku, não tem mesmo vontade de trabalhar?

Sakuo balançava os ombros e assobiava baixinho.

— Não quero trabalhar. Ninguém gosta disso. É um tédio viver desse jeito. Mas, é verdade, vou me sentir triste se não puder ficar ao seu lado ou do da Eiko. É melhor do que não ter com quem brigar, né? — disse, deixando uma risada escapar.

— Se tem interesse pelo comércio paralelo, posso pedir pro Tomita. Quer tentar?

Sakuo continuou balançando os ombros e os joelhos por um tempo.

— Tentei vender canetas-tinteiro com o Sakurai em Shibuya, com a ajuda do irmão dele, mas não vendi nada e me senti ridículo. Não sirvo pra vendedor, por isso, não vendi nada. Pedi pra Eiko e ela conseguiu vender seis, mas é claro que uma mulher bonita como ela conseguiria.

Tamae achou engraçado o descaramento de Sakuo ao se gabar de estar com uma mulher que considerava bonita.

— Ah é? Então a Eiko é bonita? O que aquela gordinha tem de bom? Ela não parece uma bolha?

— Para mim, ela é linda, então tudo bem. Ela tem a pele macia e linda, e o ventre lisinho.

— Você pensa assim porque ela é a sua primeira mulher.

— Então, quando você era jovem, não era tão bonita assim...

Boquiaberta, Tamae abriu a varanda. O tempo abrira. Havia esquentado tanto que uma névoa parecia dançar acima do escuro solo das plantações. As roupas de baixo vermelhas que Tamae havia pendurado no beiral para secar pendiam retorcidas como a casca de um caqui. Estavam levemente sujas, pois haviam sido deixadas ali há alguns dias.


Ao entardecer, Tamae e Sakuo saíram. Tamae seguiu na direção oposta de Sakuo, para Kichijōji. Saindo da rua larga do exército, pegou um atalho pelo parque para a Casa Yuki. Logo pediu para o servente ligar para a casa de Tomita, mas recebeu a resposta de que ele havia partido em uma viagem de trabalho há poucos dias e que não voltaria até o terceiro dia de janeiro. Como haviam combinado de se encontrar mais uma vez antes de acabar o ano na Casa Yuki, Tamae achou estranho e ligou ela mesma para o escritório de Kayabachō. A resposta de uma funcionária foi que Tomita não ia trabalhar há quatro ou cinco dias por conta de um resfriado. Ela não sabia em quem acreditar, mas sentiu uma raiva insuportável por isso estar acontecendo justamente no final do ano. Então, foi até a casa de Tomita em Shimorenjaku e, até escurecer, ficou perto da esquina, observando quem saía do portão. Quando uma jovem com roupa de trabalho saiu, Tamae perguntou com um tom de voz que se usaria em uma empresa:

— Eu vim da empresa em busca do Sr. Tomita. Ele se encontra?

— Ah, o chefe saiu de viagem. Ele foi a trabalho e volta apenas no segundo dia de janeiro.

— Nossa, e agora? Eu vim falar de uma tarefa urgente da empresa, mas, então, será que essa viagem não é, de fato, de negócios?

— Pois é. Que estranho. Espere um pouco, vou confirmar com a senhora — disse voltando em direção ao portão.

Tamae virou-se rapidamente e andou apressada para a estação pelo caminho que cheirava à água do pequeno rio turvo. E mudou de ideia quando desceu em Kōenji. Veio-lhe repentinamente à cabeça visitar a casa do Sr. Kamiyama e lá o encontrou à mesa de jantar com o rosto ainda corado do banho. Kamiyama bebia e comia ovas de arenque.

— Ei, senhora, quer? — ele ofereceu um copo.

A esposa de Kamiyama havia ido a pouco ao salão de beleza fazer um permanente e usava um penteado alto que parecia refrescar sua nuca.

— Não importa quando eu venha, aqui sempre há diversão. Que inveja. Você é feliz, hein, Atsuko?

Atsuko, a esposa de Kamiyama, estudou com Tamae na escola feminina em Taipei, mas elas ficaram próximas na época em que moraram em Kōenji depois da guerra. Kamiyama trabalhava em uma revista de economia em Marunouchi. Ele tentou ajudar Sakuo de algum jeito, mas acabou se espantando com a atitude extraordinariamente insolente dele e, depois, nunca mais disse que ajudaria o garoto. Atsuko sabia há muito tempo que a colega Ōkawa Tatsuko havia se suicidado por causa de Tamae e evitava se aproximar demais da obstinada amiga, mas também não conseguia ser fria ao ver a miséria dela à sua frente. A família de Atsuko a chamava de Imperatriz, porque ela era parecida com a Sua Majestade. Tamae já havia aceitado algumas taças servidas por Kamiyama.

— Tamae, você ainda não está velha, por que não se casou antes?

— Porque eu tenho um filho.

— Mas isso não importa, não é?

— É, mas a índole do meu filho é muito ruim. Ele está sempre cuidando do que eu faço pra me destruir.

— Não diga uma coisa tão besta. É lógico que um filho quer a felicidade da mãe.

— É, mas comigo é diferente. Ele é perverso.

Tamae não queria voltar para sua casa escura e gelada. Ela só pensava em coisas boas quando sonhava acordada na cama, mas quando voltava à realidade, não havia nada de interessante em lugar algum. Quando uma jovem mulher andando alegremente com um homem exibia-se, Tamae sentia uma inveja como se tivessem a mesma idade. Seja como for, ela já não tinha aquela juventude. Por que ela envelhecera e decaíra desse jeito? Nem mesmo ela entendia. Apenas sentia raiva por sua vida ter sido arruinada graças a Sakuo. Os pensamentos dos seres humanos são muito variados, mas no fim, todos seguem apenas o caminho da avareza. Sentada diante da alegre mesa de jantar da casa dos Kamiyama, Tamae esperava, se tudo corresse bem, receber um convite do gentil casal para ficar para o jantar. Se voltasse para casa depois de jantar aqui, apenas chegaria e dormiria. Ainda assim, esta noite ela sentia muita saudade de Tomita, quem acabara não encontrando. Talvez o relacionamento deles já tivesse acabado. Uma vez Tomita disse que o corpo dela estava esquelético. A pele de seu braço flácido não voltava rapidamente ao lugar depois de apertada com força e, por um instante, a pele beliscada ficava enrugada como uma borracha velha. Ela pensava em fortalecer seu corpo de algum jeito, mas logo os dias se tornavam preguiçosos, ocupados com as coisas da vida e as discussões com Sakuo. Ela jantou e deixou a casa dos Kamiyama por volta das nove horas da noite. O casal não a acompanhou até a porta, pois ela havia se convidado descaradamente. Tamae andou tranquilamente pelo caminho largo que cortava o bairro e continuava pela floresta de cedros. O vento frio da geada soprava cada vez mais forte e inúmeras pequenas estrelas brilhavam no céu limpo. Um homem alto seguia Tamae apressado. Tamae possuía alguma esperança. Fantasiava presunçosa com a possibilidade de ser parada. Andava calmamente, como se estivesse absorta em pensamentos. Ao chegar na frente do correio, o homem que a seguia subitamente passou para o seu lado, observou rapidamente seu rosto ao passarem embaixo de um poste de luz e continuou se afastando apressado. Era um homem jovem. Tamae se sentiu como se tivesse sido traída.

Ao chegar em casa, ela abriu a porta de vidro dos fundos e viu o fogareiro elétrico brilhando como um hitotsume-kozō em meio à escuridão. Sakuo estava enfiado no futon.

— É você, Saku?

— Sim.

— Por que você voltou?

— A Eiko disse que não podia hoje.

Ao ligar o interruptor da lâmpada, viu os olhos inchados de tanto chorar de Sakuo.

— Que perigo. É melhor colocar nem que seja uma chaleira no fogareiro.

— Mãe, tem um cigarro?

— Não tenho. Logo você querendo fumar? Você nem trabalha.

Com frio, Tamae tirou o sobretudo e enfiou-se do jeito que estava no fino futon deixado por arrumar.

— Na volta, passei na casa do Sakurai e ele me perguntou se eu não queria ir pra Hokkaidō. Disse que tem vaga pra trabalhar no escritório de uma mina de carvão. Também disse que tem uma residência pros empregados e que a divisão de mantimentos é boa.

— Mas que notícia boa. Você devia ir. E o seu currículo?

— É só eu inventar alguma coisa...

— Seu corpo deve se fortalecer se for pra um lugar desses. Onde é que fica?

— Bihoro.

— Ah, com o frio que vai fazer, pode ser difícil pra alguém com doença de pulmão.

— Você vai ficar feliz se eu for pra lá, né? Vai se livrar deste problema aqui...

— Isso mesmo, você está absolutamente certo, Saku... A sua mãe vai ficar aliviada, porque é uma mulher horrível.

O barulho das peças de mahjong que vinha dos fundos irritava Tamae.

— Ir pra Bihoro é o mesmo que morrer...

— Não é assim. Ao contrário, talvez seja melhor morar lá do que em Tóquio e, por favor, me chame se tiver uma boa oportunidade. Estou profundamente aborrecida com esta cidade.

O carro do corpo dos bombeiros, que vinha do outro lado de uma plantação, uivava sua sirene fazendo “uuuuuh” e o chão tremia com sua passagem.

— Hein, meu filho.

— Que foi?

— Estou muito sozinha. Você não entende a solidão da sua mãe, mas hoje eu fiquei muito aborrecida. Sou uma mulher determinada, então passei por muitas dificuldades, mas não gosto mais de viver... Estou ficando cada vez mais desprezível e não tenho a energia de antigamente. Você é um homem, então entende como os homens se sentem, Saku, e os homens não têm coração.

— Finalmente percebeu isso?

— Ah, percebi. Será que homens e mulheres só ficam juntos quando jovens? Será que é isso? O teu pai te abandonou e foi pra onde ele queria ir. Ele se apaixona fácil por mulheres e é irresponsável, estou profundamente infeliz com a humanidade.

— Se tiver dinheiro tá tudo bem. Deus fez os humanos inventarem essa maravilha. Qualquer problema se resolve com dinheiro. A Eiko disse que se separaria do marido agora mesmo se ela tivesse dinheiro.

Tamae espalmou os dedos como um leque e examinou atentamente as unhas pintadas de vermelho. As mãos com pequenas rugas levemente sujas eram uma imagem que ela não mostraria para homem nenhum.

— Eu não sei se você é, de fato, bom ou ruim, Saku.

— Eu sou ruim.

— Não é bem assim. Você só tem vinte e dois anos e não acumulou muitas experiências negativas. Não quer nem enganar uma jovenzinha rica?

— Bem, eu odeio jovenzinhas.

— Você acha isso porque ainda não esteve com uma.

— Como você é malvada.

— Sou mesmo.

Tamae sentia que não importava qual era o mal que ela havia feito. Agora, depois de uma década, não tinha mais energias para esse tipo de coisa. Ela sentia que as pessoas ainda se perdiam nas suas morais hipócritas. Dentro dessa hipocrisia, os seres humanos lutavam com a ferocidade de um leão para obter os engodos: controle, poder e riquezas. Nessa força para lutar pela vida desses seres humanos, há paz e harmonia que se esvaem como vapor. Há risadas. Mas não havia nenhuma esperança para Tamae e seu filho neste momento. Nem mesmo uma relação entre mãe e filho.

— Você quer ir?

Sakuo nem respondeu. Ele observava o teto em silêncio. Tamae tentou pensar até quando dormira ao lado do filho. Ela não tocava na pele de Sakuo desde que ele tinha seis anos. Sakuo sempre dormira sozinho e sem reclamar. Ele não conhecia a felicidade comum, mas também não conhecia as boas maneiras básicas. Ela também nunca levou Sakuo a um passeio. Por causa disso, com dezesseis ou dezessete anos, ele mostrou precocemente indícios de se divertir com o próprio corpo. Tamae fingia ignorância, porque os humanos que não tinham nada com o que se divertir acabavam assim naturalmente. Esta noite também, Tamae sequer perguntou onde Sakuo havia jantado.


Depois de dois dias, Sakuo realmente começou os preparativos para ir para Hokkaidō. Ele recebeu três mil ienes de Eiko, como um presente de despedida pela separação dos dois.

— Quando você vai?

— No trem noturno do dia trinta. Vou com o Sakurai. Não vou mais voltar.

— Sim, fique bem também...

Pela primeira vez, Tamae foi tomada pelas lágrimas. Não chorava porque queria impedi-lo, pois foi tomada por lágrimas genuínas, que vinham do fundo do coração de, até mesmo, uma pessoa como ela.

Na noite da partida, eles andaram pelo bairro de Ginza, movimentado com o fim de ano.

— As mulheres são tão lindas.

— Tem muita mulher bonita em Hokkaidō.

— As mulheres da capital são boas. Por isso, todas devem conseguir seu homem, né?

Tamae e Sakuo andavam lado a lado e conversavam como se fossem bons amigos.

— Já deve estar fazendo frio de nevar, né?

— Só vou saber indo ver. Mesmo assim, aposto que tem um fogão de carvão, deve ser uma maravilha.

— Eu nasci em Taiwan e não conheço frio além do de Tóquio, mas não é romântico estar em um lugar onde neva bastante?

— Romântico? Você não pensaria assim morando lá... O que você vai fazer agora, mãe?

— Vou continuar envelhecendo cada vez mais. Não dá pra voltar a ser como era antes. Sofro de asma durante os longos invernos, então posso acabar indo de vez, inesperadamente.

Sakuo comprou duas caixas de cigarro Hikari em uma tabacaria e colocou uma nas mãos de Tamae.

— Você não consegue mais arranjar um homem, né?

— Não mesmo. Já é impossível, não posso mais gerar frutos. Você ainda tem tempo?

Sakuo espiou o relógio dentro de uma loja de acessórios ocidentais.

— Não tem problema. Ainda tenho duas horas.

— Tudo bem se eu não te acompanhar?

— Ah, é melhor assim. A Eiko vem se despedir de mim, então é melhor assim.

— Você não se despediu da Eiko?

— Sim, fui hoje de manhã. Combinamos que ela vai me esperar naquela Colombin.

Tamae parou em cima dos tamancos. Ela não queria ver Eiko. De repente, diversos pensamentos correram para seu peito.

— Hein, se, por acaso, acontecer algo comigo, não precisa voltar... Eu sou assim, pode ser que eu até queira morrer. Mesmo assim, você não precisa voltar, Saku.

Sakuo concordou com o queixo. Mesmo sendo seu filho, para Tamae, ele parecia miserável usando uma boina empoeirada e carcomida. Ela pensou que pelo menos era bom para Sakuo ter uma mulher de quem se despedir em Tóquio, mesmo que fosse casada, e segurou a mão dele. Ao contrário do que ela esperava, Sakuo segurou a mão de Tamae sem força e logo a soltou.

— Não vamos nos encontrar por um tempo, mas se cuide. Eu não sou uma boa correspondente, então não vou mandar cartas.

Na frente de uma cafeteria cujo cheiro de café permeava a rua ladeada de árvores, com seu embrulho dependurado como estava, Sakuo desapareceu rapidamente na escuridão. Tamae virou-se poucas vezes, mas logo perdeu de vista as costas dele no meio da névoa noturna.

Agora completamente sozinha, Tamae respirou profundamente e endireitou os ombros. O movimento de pedestres no fim de ano era grande até nas ruas traseiras. A loja com salmões prateados dependurados sob uma luz azul e os manequins exibindo ambas as mãos sobre um veludo preto não chegavam aos seus olhos vagos. Ela sentiu como se a cidade no fim de ano não tivesse mudado nada de antigamente. Sem nenhum motivo em particular, Tamae pensou em si mesma dando seu último suspiro em algum lugar daquela cidade violenta. Apenas assim teria um momento final de sua juventude. Veio-lhe à mente que sua vida tinha sido apagada, como uma vela é apagada pelo vento. Uma jovem com o cabelo arrumado tradicionalmente e duas ou três crianças brincavam de peteca em algazarra nesta noite de dezembro. A peteca desaparecia e voltava a aparecer brilhando à luz da lâmpada. Ao sair à rua de Yonchōme, Tamae ouviu a voz de uma funcionária perguntando às pessoas que se amontoavam na frente da confeitaria Morinaga:

— Sim, este é aquele Morinaga Velvet de antigamente. Gostariam de levar um pacote?

Ao ouvir isso, ela pegou rapidamente um cintilante embrulho de celofane por entre a multidão e colocou-o no bolso. Sentiu um prazer extraordinário. Em uma loja de cerâmicas, Tamae misturou-se à multidão e furtou um belo pote para shoyu no estilo kutani. Gostava mais do peso que faziam no seu bolso que de não ter sido descoberta por ninguém. Sentiu-se como se andasse mascarada. De repente, percebeu que viver também podia ser divertido. Como se tivesse rejuvenescido repentinamente por ter se separado de seu filho e se tornado livre, Tamae pegou um doce do saco de celofane e o colocou na boca, seguindo pela penumbra de Sukiyabashi. A melodia de uma doce canção da moda soava de um anúncio. O atarefado letreiro eletrônico do Jornal Asahi corria para a direita brilhando ao céu os dizeres: “dissolução da Dieta”.

Notas