Consolação

Hayashi Fumiko

Tradução: Thais Diehl Bresolin

Primeira publicação da tradução: Nikkei Bungaku, no. 69, mar. 2022. Texto indisponível virtualmente.

HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

Texto original: "Nagusame". In: Ryojô no umi, Tóquio: Shinchôsha, 1946. Disponível em: Aozorabunko. Acesso em: 09/11/2024.

Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).

Nota: A versão disponibilizada aqui passou por revisão realizada pela tradutora, Thais Diehl Bresolin, e, portanto, não corresponde completamente à primeira versão publicada na Nikkei Bungaku.

Sumário

I

Até mesmo a bela cidade de Tóquio mudara drasticamente com a violenta transformação que acontecera ao longo de meses. Como um sonho não concretizado, o funcionamento da querida capital desolada partiu-se em pedacinhos. Afetadas pelas lembranças dolorosas e cruéis da longa guerra, as pessoas andavam distraídas, amarguradas e abatidas. Até as expressões faciais dos mais jovens ficaram marcadas por rugas.

Era óbvio que, por causa da guerra, uma grande parcela das casas havia deixado de existir, mas sobretudo, comer tornou-se um ato extremamente sofrido. Ainda era possível comprar uma sardinha juntando dinheiro para isso, porém uma pequena já chegava a custar quarenta sen... Algo completamente absurdo. Porém, aquela dolorosa guerra já havia terminado, e, aos poucos, a ordem era restaurada. No entanto, entre as casas que haviam desaparecido estava a de Jūkichi em Asakusa. Depois que ela queimara, ele fora separado de sua neta Kiyoko, ficando completamente sozinho. Ele até havia ido à casa do irmão mais novo em Shizuoka, mas este tinha muitos filhos e passava bastante necessidade por causa disso, então Jūkichi retornou para Tóquio depois de duas semanas. Logo após, a guerra chegou ao fim.

Mesmo sem ter onde morar, Jūkichi ficou aliviado com o término da guerra. Antes da enorme derrota naquele conflito incoerente que se prolongava, o Japão foi atingido por um verdadeiro kamikaze, e tal qual uma árvore que é sacudida, derrubou diversas folhas miseráveis. Uma delas era Jūkichi, que não tinha outra opção a não ser continuar vivendo, atônito, nesta época.

Jūkichi observava há algum tempo os arredores em frente à estação de Yotsuya. Diferente de Shitamachi, havia lugares que resistiram ao incêndio aqui e ali, cercados por árvores exuberantes. O prédio do Palácio Imperial parecia embaçado no meio da névoa além da fileira de árvores. Jūkichi achava as casas lindas. Ao ver uma de pé, arrumada e limpa, inevitavelmente pensava que era o maior luxo do ser humano. Dentro de uma delas havia uma mulher. Pela cabeça de Jūkichi, passava vividamente a imagem das mulheres que pareciam dizer “Que bom que a minha casa não queimou”, enquanto desfaziam alegremente as malas que mandaram trazer do local para onde os civis haviam sido evacuados.

Jūkichi pegou a bituca de cigarro que havia recolhido no dia anterior no Parque Hibiya e colocou-a na piteira de bambu. Agora acesa, a fumaça da bituca, que provavelmente fora descartada por um estrangeiro, pairava no ar com um agradável aroma. Jūkichi havia se tornado especialista em recolher bitucas e conseguia apanhar cinco ou seis delas enquanto andava por uma rua movimentada. Observando o que restara das casas incendiadas em Yamanote, Jūkichi pensava em Kiyoko. Queria encontrá-la mais que tudo. Eles haviam se separado na noite do dia nove de março.

Ela era uma jovem baixa, porém robusta, e encantadora quando sorria mostrando os pequenos dentes brancos e limpos. Tinha apenas dezesseis anos, então, Jūkichi não tinha esperanças de que tivesse sobrevivido. Porque além de não ter informações sobre a neta, havia muitos cadáveres nos arredores do Parque Sumida, para onde ela havia fugido.

Um trem caindo aos pedaços passou rapidamente. Um jipe veloz passou rapidamente. O crepúsculo se aproximava da cidade incendiada. A névoa seca cobria-a como se fosse neblina e, contrastando com os destroços de tijolo vermelho e concreto cinza, transformou-a em uma linda vista.

Jūkichi estava com fome, por isso seus olhos pareciam dançar, tremendo enquanto ele fumava. Andar era excruciante, mas ele não podia parar. Se não pegasse a comida racionada na casa de um amigo perto do quinto dia, o sem-teto Jūkichi não poderia comer. Mesmo agora, o amigo vivia em um abrigo subterrâneo em Tansumachi, Yotsuya. A vida embaixo da terra havia deteriorado o corpo da família inteira, mas eles não tinham dinheiro para construir nem um casebre, por isso não havia outra opção a não ser levarem aquela vida, esparramados dentro do buraco. Antigamente, o amigo fora marceneiro especializado em tansu, mas fora convocado para trabalhar em uma fábrica de aviões em Ōta e, quando a guerra acabou, voltou para sua família completamente mudada pela vida no buraco. Jūkichi também fora marceneiro antigamente. Os dois gostavam de pescar, e os convites para pescarias que se prolongavam por mais de um dia eram frequentes.

II

— Você está aí, Tōsa?

— Ah, é o Jūkichi?

De dentro do buraco surgiu o rosto vermelho de Tōsaburō. Ele era robusto e jovem o bastante para ser filho de Jūkichi. Tōsaburō era realmente muito mais jovem que o amigo, mas também parecia mentira que Jūkichi tinha apenas cinquenta e seis anos de idade. Murchara tanto que parecia um idoso de setenta anos. O pouco que restara do seu cabelo estava imundo e ele também perdera os dentes da frente, o que deixava o seu queixo pontudo, parecido com um cachorro velho. Como era de se esperar de um marceneiro, a parte mais vivaz de Jūkichi eram suas palmas grandes, mas com exceção das mãos, seu corpo estava completamente emaciado.

— A coisa não está boa, então estava bebendo um pouco.

— Nossa... Quanta coragem. É uma bebida ilegal?

— Ah, algo assim. Comprei um litro por oitenta ienes. Dizem que foi barato.

O buraco media cerca de cinco metros quadrados e estava bagunçado e tão abarrotado de embrulhos que não havia lugar para se sentarem. As paredes de madeira estavam podres e cobertas por um pó branco, parecia ser possível abrir um buraco apenas ao pressionar o dedo contra elas.

— Este mundo ficou completamente insuportável. Um pouco menos de quatro quilos de batata já custam quinze ienes, mas é assim que o mundo gira.

— De fato. Mas, Tōsa, antigamente é que era bom. Eu trabalhava na Kin’ichi e, na volta, passava no mercado para comprar uma cavala e umas bananas por dez sen. Dava pra comer até arrotar... Até parece que fomos atacados por um enorme monstro. O mundo mudou tanto que a situação está extraordinariamente incompreensível, foi como se um monstro tivesse surgido do nada. Você ainda tem a sua esposa e os seus filhos, mas eu fui separado da Kiyoko e não tenho mais nada. Preciso simplesmente continuar vivendo, mas é engraçado... Nem passou pela minha cabeça querer morrer. Nem cheguei a cogitar que estando tão sozinho seria melhor morrer de uma vez. Sou muito grato por não ter pensado nesse tipo de coisa. Só como batatas cozidas ao vapor e me deito para dormir, e isso não parece ser suficiente para dizer que o ser humano é superior aos outros seres, não é mesmo?

— Pois é, nós dois estamos vivos. Isso também é um mistério. Bom, beba um pouco. Beber dá energia, assim não há desculpa para não viver. Porque escapei são e salvo a muito custo e sigo vivendo dentro deste buraco.

—É isso mesmo. Ah, que trago dos bons. Quanto custa uma dose? Parece até que está dançando sobre a língua. Está formigando e ficando anestesiada, Tōsa. É uma bebida das boas. O álcool é o melhor remédio. Quanto será que custa uma dose? Salvou o meu dia.

Jūkichi colocou as bitucas que havia recolhido em cima da mesa. Tōsaburō logo aceitou e acendeu uma.

— Sua esposa e os outros...

— Foram comprar peixe em Funabashi.

— Que bom que vocês têm dinheiro.

— Não temos dinheiro. Teria sido bom se tivesse durado mais um mês, mas já torramos tudo.

Tōsaburō queimava pedaços de madeira no braseiro e oferecia, de tempos em tempos, a bebida para Jūkichi. De barriga vazia, Jūkichi logo ficou bêbado.

— Como era bom antigamente...

— É mesmo.

— Aquele tempo não volta mais.

— Não volta mais mesmo. Todos juntaram suas forças e acabaram mal. Eu fui enganado pelos jornais. Porque só repetiam que a gente estava vencendo, vencendo, vencendo. Se atreveram a escrever isso todos os dias, como se estivessem carimbando a gloriosa vitória na guerra. Eu caí direitinho nessa mentira.

— Ah, como saquê é bom. Ultimamente eu não tenho bebido um saquê tão especial, já que levo uma vida solitária. Tsc, pensei que não ia nem conseguir vir pegar a minha parte da comida. Não entra mais dinheiro, nem tenho o que vestir, se pelo menos a Kiyoko estivesse aqui, eu ainda ia dar conta de um jeito ou de outro.

— A Kiyo era bonita. Era boazinha. Ela lembra muito a foto daquela antiga gueixa Manryū, de Akasaka. Sua neta era cheinha e tinha uma boa aparência. Mas deve ter morrido, já que não voltou até agora.

— Mas não parece que ela morreu. Por isso ainda não notifiquei a morte dela para o responsável pelo registro familiar. Eu sinto que ela deve estar viva. Outro dia, em Nihonbashi, vi uma jovenzinha em cima de um jipe. Foi só de passagem, mas era igualzinha à Kiyoko. A diferença era que estava vestindo uma roupa marrom, mas, na noite de março, ela vestia uma calça de trabalho roxa. É, com certeza não era ela, mas às vezes penso que a Kiyoko não consegue mais o que comer e que deve estar se virando pra ganhar a vida, talvez dançando. Ela gosta de diversão, já que nasceu em Asakusa... Falando nisso, a gente não vai pescar faz muito tempo, né? Quero ir pescar em algum lugar, Tōsa...

— Pois é, precisamos dar um jeito de ir pelo menos uma vez! Diferente de você, consegui levar meu equipamento de pesca na fuga, então não o perdi no incêndio.

Jūkichi estava bêbado e em êxtase. Apesar de ter comido soja torrada como aperitivo, quando fechava os olhos, um embaçado arco-íris, como uma visão fantástica do Palácio do Rei Dragão, dissipava-se como névoa. Ainda assim, ruminando como um boi sobre a sua longa vida, Jūkichi acabou não aguentando a amargura e começou a cantar baixinho.

— Até que está de bom humor.

— Ah, estou me sentindo terrivelmente bem agora. Como é bom ter amigos... Me sinto tão bem que fiquei triste.

Jūkichi secou uma lágrima com o punho. Lembrou de Kiyoko súbita e intensamente. Sufocado pela miséria que o fazia ir de um lado para outro sem moradia, fez uma profunda reverência sobre a mesa.

III

Levando nas costas um furoshiki com sua porção de batatas e arroz, mais três sardinhas recebidas da esposa do amigo que voltara de Funabashi, Jūkichi partiu para o breu da cidade. A luz elétrica, a coisa mais bonita que restara da civilização, tremeluzia aqui e ali entre as ruínas. De algum lugar, ouvia-se o barulho de um trem a vapor. Seu apito enchia de melancolia o escuro céu dos campos queimados. A cidade noturna de Tóquio, como se dissesse que se aglutinaria a este cenário desolado pela eternidade, estava cercada por silêncio, sendo possível ouvir ocasionalmente apenas um trem ou um carro. Dentro da densa névoa noturna, Jūkichi andou cambaleante até Yotsuya-Mitsuke.

— Ei, senhor, você derrubou algo.

Jūkichi virou a cabeça espantado. Um homem com ares de estudante acendia um cigarro. Jūkichi sentiu uma repentina vontade de fumar. Era uma pena que ele havia deixado as bitucas em Tansumachi, mas não podia fazer nada a respeito.

— Muito obrigado...

Jūkichi parou e ficou observando o estudante acender o cigarro. Ele invejava a condição social daquele que acendia, com um tinido, um cigarro novo firmemente enrolado, mas não podia fazer nada a respeito. Jūkichi havia perdido a chance de receber os cigarros do racionamento, por isso, um cigarro novo enrolado no papel o fascinava há muito tempo.

— Está uma bela noite, senhor.

O estudante se surpreendeu e, como se olhasse através de Jūkichi, respondeu:

— Você está de bom humor.

— Eu bebi. He he he...

— Tem algum lugar para beber por aqui?

— Não, não. Bebi na casa de um amigo...

— É mesmo? Que inveja.

O estudante não estava interessado em um homem atordoado pela bebida, então deu mais uma ou duas tragadas que fizeram o cigarro brilhar vermelho, colocou as mãos nos bolsos do sobretudo e saiu andando apressado em direção a Ichigaya.

Jūkichi derrubou as batatas novamente. Por algum motivo, não tinha forças para recolhê-las. Já sentia que pouco importava. Estava cansado de absolutamente tudo. Mesmo assim, ele queria tanto fumar. Queria fumar expirando um denso redemoinho de fumaça.

Um bonde passou com um estrondo ao lado de Jūkichi.

— É, eu disse que vendia as botas se ganhasse mil ienes por elas.

— Você recebeu de graça das forças armadas, imagina vender por mil ienes...

— Quero vender o mais caro que conseguir, exatamente porque recebi de graça.

Duas jovens mulheres conversavam enquanto caminhavam. Cada uma carregava um grande embrulho. Andar tinha se tornado penoso para Jūkichi. O sereno ficava cada vez mais gelado, e ele recuperava a sobriedade. Jūkichi encontrou um lugar que parecia um pouco mais quente, as ruínas de um muro de pedra, e largou sua bagagem ali. Quando seus ombros ficaram leves, ele recuperou o bom humor. Que sensação boa é estar com o corpo leve novamente. Ele não tinha como não ficar irritado carregando um embrulho pesado nas costas. Começando a pegar no sono, Jūkichi abraçou os joelhos. Veio-lhe à mente uma imagem antiquada de Kiyoko vestindo um hakama vermelho e com um laço preso no cabelo.

Ouvia-se o som de um lindo piano vindo de um rádio em algum lugar. Mesmo neste cenário noturno desolado, a atmosfera da capital de outrora pairava dentro da névoa. A beleza derrotada do país derrotado surgiu por um instante, como uma lufada de vento. Todas as coisas que a metrópole possuía foram suprimidas simultaneamente à derrota. Como se uma longa cobra fosse transformada em uma lagarta. Essa aparência extremamente miserável da capital tinha mais força para conseguir convencer os cidadãos do que a eloquência de centenas de parlamentares. Com o movimento, com a música, com a derrota, a cidade avançava noite adentro.

Pouco tempo depois, Jūkichi recebeu outra visita.

— Ei, velho, não tá se sentindo muito bem, né?

Um menino de onze ou doze anos, vestindo largas roupas de civil, parou em frente a Jūkichi.

— Estou me sentindo muito bem.

— Tá bêbado?

— Não estou bêbado nem nada assim.

— Que velho idiota.

— Sou um velho idiota.

— Corvo reclamão.

— Sim, cá, cá.

O jovem pôs o pé em cima do ombro de Jūkichi, como se colocasse o sapato para ser engraxado. Jūkichi ergueu os olhos apaticamente e retirou o pé do jovem sem falar uma palavra.

— Está subnutrido, né, velho...

— Pare de brincadeiras. Estão te esperando em casa.

— Eu não tenho casa. Pegou fogo.

— Ah, então a sua também pegou fogo?

— Sim, o fogo queimou tudo com vontade, só sobrou cinzas...

— Onde foi isso?

— Em Ginza.

— Ah, Ginza...

O jovem apanhou o embrulho de Jūkichi e saiu correndo apressadamente em direção à escuridão. Jūkichi acompanhou-o com os olhos, calado. Perguntou-se se aquela criança não tinha um cigarro consigo, porque queria ter pedido pelo menos uma tragada.

Começou a ventar um pouco. Era possível ver uma única lâmpada vermelha dentro da neblina noturna. Jūkichi se levantou. Não queria andar, mas se não andasse, o destino pareceria longínquo.

Jūkichi tirou a carteira do bolso da frente e, embaixo da lâmpada, retirou duas notas de dez sen. Tinha a consciência que precisava voltar para Asakusa. Ele se sentia nauseado por estar com o estômago vazio. Então pegou os petiscos de soja torrada que havia escondido no bolso e depositou-os na boca. Mastigando a soja, ficou feliz por pelo menos estar vivo. Tantas pessoas haviam morrido em Asakusa que ele ficara horrorizado. Nem mesmo o Grande Terremoto de Kantō matou tantas pessoas queimadas. Jūkichi ficou feliz, como se satisfeito consigo, por estar vivo. Ele se sentiu aliviado por não estar mais chovendo fogo todos os dias e todas as noites daqueles aviões enormes. Sem um único inimigo, ele não via motivo para guerrear com um avião tão grande. Sem conhecer o estrangeiro, ele não via motivo para que fosse necessário transformar tantos jovens em soldados. Ele sentia falta da antiga cidade de Tóquio. Lembrou que havia um açougue chamado Mikawaya perto de Yatsuya-Mitsuke. Antigamente também havia um restaurante de enguias chamado Sanukiya. Agora, Jūkichi andava por essa rua, destruída pelos bombardeios sem deixar nenhum vestígio do passado.

Sentindo falta da linda neta, que lembrava a gueixa Manryū como Tōsaburō falara, Jūkichi sentiu a solidão tão pungente que estava prestes a se render ao desespero.

Sua cabeça calva encontrou o chão com um baque pesado, como se fosse de metal. Jūkichi estreitou os olhos fazendo uma cara estranha como se fosse cair no riso. Uma luz ofuscava tanto que chegava a ser vergonhoso. Algo pesado passou com um forte e estridente rangido por cima das suas pernas bem esticadas. Seu corpo inteiro ficou quente como fogo e Jūkichi gemeu. A dor incompreensível que repentinamente corria pelo seu corpo logo silenciou-se e deu lugar a um prazer indescritível que o preencheu por completo. O solo cheirava a querosene. Jūkichi esforçava-se desesperadamente, implorando por um pouco de compaixão. À medida que o sangue se esvaia do seu corpo, ele perdia a consciência. Até os trilhos do trem começaram a reluzir, em testemunho à poça de sangue.

Ele estava tão gravemente ferido quanto um soldado que lutara até o fim dentro da trincheira, mas Jūkichi tocou a mão de Kiyoko e ouviu sua doce voz.

— Que bobo, vovô, dormir num lugar destes. Vamos voltar logo para casa e comer uma comida quentinha...

— A nossa casa pegou fogo faz muito tempo. Sua idiota, ficou perambulando por aí. Me deixou preocupado...

Acima dos seus ouvidos, sons de agitação. Ouviam-se vozes de pessoas ao longe, que mais pareciam cigarras em um dia de verão.

O tempo passava devagar, a noite começava a embranquecer pouco a pouco, mas a capital ainda não se movimentava. A luz da lua, que se intensificava conforme a madrugada avançava, iluminava tudo, e os arredores já estavam brancos como a neve. No solo levemente inclinado da valeta, seus pés com o chinelo furado saíam para fora do tapete de palha que o cobria. Parecia uma morte trágica: Jūkichi foi coberto com o rosto virado para cima como se tivesse sofrido uma morte honrada. Não foi uma morte cruel, foi uma morte verdadeiramente feliz. Dentro da infinidade da natureza, Jūkichi permaneceu esticado por um longo tempo, imóvel como uma pedra.

Em breve, ao amanhecer, a cidade começaria a repetir os acontecimentos de ontem e seria possível ouvir o apito do trem a vapor mais uma vez.

Algum dia desses, Tōsaburō vai sair para pescar sozinho.

Notas