Manifesto
Tradução: Fabio Pomponio Saldanha, Felipe Chaves Gonçalves Pinto, Gustavo Perez Katague
Revisão e cotejo: João Marcelo Amaral Reimão Monzani
HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto
Primeira publicação da tradução: Revista Magma, vol. 28, no. 18, p. 217-222, 2023. Disponível em: Revista Magma. Acesso em: 19/09/2024
Texto original: "Sengen hitotsu". In: Kaizô, Tóquio, 1922. Disponível em: Aozorabunko. Acesso em: 19/09/2024.
Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).
O fenômeno que mais deve chamar atenção no Japão contemporâneo, um fenômeno surgido da união entre pensamento e vida real e que sempre traz à tona, na sua forma mais pura, a unicidade da vida humana é o fato de que o movimento em torno das questões sociais – seja enquanto (caracterização de) problemas, seja como (apresentação de) soluções – afasta-se se das mãos dos chamados estudiosos1, ou ainda também dos pensadores2, passando gradativamente para a mão dos trabalhadores. Os que aqui me refiro enquanto trabalhadores são as pessoas designadas como Quarto Estado3, a quem são endereçadas as questões trabalhistas, que, por sua vez, deveriam ocupar a posição mais importante nas questões sociais. De forma ainda mais precisa, refiro-me às pessoas do Quarto Estado que vivem na cidade.
Se aquilo que penso não contém erros, os trabalhadores aos quais anteriormente me referi, até o momento atual, consentiam com um certo privilégio aos estudiosos e pensadores de modo que esses deveriam guiá-los. O pensamento e a teoria destes eram imbuídas com uma falsa crença de que seriam capazes de direcionar os trabalhadores para condições melhores de vida. E assim devia parecer à primeira vista. Isso porque os trabalhadores não conseguiam se expressar na época em que os debates eram realizados antes de suas implementações, tendo que, mesmo sem se dar conta, invariavelmente ser dependentes de seus porta-vozes. Não apenas isso foi inevitável, como acreditava-se que esta era a melhor forma possível de proceder. Mesmo que os estudiosos e os pensadores estejam saindo de uma fase em que acreditavam, de maneira orgulhosa e vazia, ser os precursores e os líderes dos trabalhadores para um momento de compreensão de que eles não passam, na realidade, de meros porta-vozes, ainda assim não é como se tivessem abandonado a crença de que a solução radical para a questão trabalhista devesse partir de suas próprias mãos. Os trabalhadores aceitavam essa crença como se estivessem enfeitiçados, mas a libertação desta superstição parece estar a ponto de se concretizar.
Os trabalhadores passaram a ter consciência de que a renovação da vida humana não é nada além da ação prática enraizada na vida como algo não desconectado daquilo que está enraizado na ação real. Já que tanto esta vida, quanto a ação prática, eram ausentes nos estudiosos e nos pensadores, logo se tornara perceptível que a solução dos problemas viria somente da força trabalhadora. Os trabalhadores perceberam que a vida que tinham diante dos próprios olhos poderia ser caracterizada como um pensamento, assim como uma força. Dessa forma, trabalhadores prudentes estão se livrando do hábito de deixar seu destino nas mãos daqueles que falam sobre suas vidas, apesar de viverem uma vida em todo diversa. Estes passam a olhar de maneira suspeita para as ações dos chamados ativistas sociais e dos sociólogos. Mesmo que ainda de maneira não tão pública, tal atitude se movimenta dentro de seus próprios corações, de maneira ainda não tão perceptível. Por isso, parece que, nem as pessoas em geral, evidentemente, mas até mesmo os intelectuais que deveriam perceber este fato antes de todos, permanecem não enxergando nada. Não perceber, contudo, é um grande erro de diagnóstico. O fato de os trabalhadores terem começado a se mover nessa direção, por mais tênue que ainda seja esse movimento, é mais significativo para o Japão do que qualquer outra irrupção que tenha surgido recentemente, isso porque o que está sinalizado aí é que o inevitável está acontecendo. Isto é, o curso dos fatos que deve ser seguido teve seu início, algo que sofisma nenhum conseguiria negar. O poder estatal e a autoridade acadêmica não conseguiriam impedir essa movimentação. Mesmo que a vida como se concebia antes, agora, acabe caindo em um estado confuso devido a estes fatos, nada disso seria capaz de ofuscar o aparecimento daquilo que surgirá.
Quando conheci o Sr. Kawakami Hajime4 (e, por se tratar de um tópico pessoal, apesar de existir a chance de acabar sendo injusto no que direi, deixarei um pouco de lado as cortesias costumeiras) registrei na memória a seguinte fala dele: “Não consigo sentir nada além de desprezo por aqueles que, tendo um certo tipo de relação com a Filosofia ou as Artes, têm orgulho em se descrever como filósofos e artistas. Eles desconhecem o que quer que seja a atualidade. Se o sabem e, mesmo assim, seguem imersos na filosofia e nas artes, são incompetentes que pertencem ao passado, deixados para trás pelo presente. Não é que seja imperdoável que digam 'Lidamos com a Filosofia e as Artes porque não podemos fazer outra coisa. Por favor, deixem-nos em nosso canto'. No entanto, ao afirmarem com tanta veemência e convicção suas posições de filósofos e artistas, o que fica aparente é o seu completo desconhecimento do que elas significam”. Naquela época, eu não pude aceitar acriticamente suas palavras. Assim, respondi da seguinte maneira a suas colocações: “Se os filósofos e artistas são imbecis que pertencem ao passado, também o são os pensadores que não viveram o cotidiano do trabalhador. Em resumo, a diferença é pouco significativa.” O Sr. Kawakami, então, retrucou: “Isso é verdade. É exatamente por isto que não acho que tenho a melhor das vidas enquanto pesquisador de questões sociais. Continuo empregado enquanto me sinto culpado perante algumas pessoas. Eu sempre tive um profundo apego às artes e até mesmo já pensei que realizar algum trabalho relacionado às artes poderia ter sido o melhor dos mundos para mim. Entretanto, minhas necessidades internas procuravam um caminho diferente do que o que eu buscava.” Com isso, cubro quase em sua totalidade o essencial de nossa conversa, mas quando nos encontramos mais uma vez, o Sr. Kawakami, entre risos, disse: “Uma certa pessoa me falou que eu digo as coisas que digo enquanto estou debaixo de um kotatsu e ela acertou em cheio. Você certamente também é do tipo de pessoa que diz as coisas enquanto está do lado de um aquecedor, não é?” — eu não pude deixar de concordar. Quando tivemos esta conversa, o Sr. Kawakami certamente possuía pensamentos bem diversos dos meus, mas as minhas próprias ideias na época divergiam muito das ideias que tenho atualmente. Se ele tivesse me dirigido tais palavras hoje, eu, muito provavelmente, teria concordado com todas elas, mas em um sentido diferente. Atualmente, é da seguinte maneira que eu interpreto as palavras do Sr. Kawakami: “Tanto eu quanto o Sr. Kawakami somos similares na medida em que ambos, em escalas distintas, vivemos em esferas muito diversas das do Quarto Estado. Tal qual o Sr. Kawakami, eu, a bem da verdade, também não possuo nenhum ponto de contato com o Quarto Estado. Se eu por acaso pensar que posso sugerir algo para o Quarto Estado, isso não passaria de falácia de minha parte e, por outro lado, se o Quarto Estado por acaso sentir que foi afetado por algumas de minhas palavras, isso não passaria também de um erro de cálculo deles. Nós que nascemos e fomos criados sob um pensamento e um meio totalmente diverso daquele em que o Quarto Estado foi criado só podemos, em resumo, negociar com as pessoas que não pertencem ao Quarto Estado. Não estamos dizendo as coisas diante de um aquecedor, não é isso. Nós, de fato, não estamos dizendo absolutamente nada.”
Nós nem sequer somos lá grandes coisas. Se considerarmos, por exemplo, as palavras de alguém tão ilustre como Kropotkin, é exatamente isso que verificamos. Independentemente do poder do discurso de Kropotkin para o despertar dos trabalhadores e para a ascensão global do Quarto Estado, uma vez que ele não era um trabalhador, ele não pôde viver a vida de um, pensar como um ou mesmo trabalhar como um trabalhador. O que julgam que ofereceu para o Quarto Estado não passa daquilo que o Quarto Estado já tinha desde o início. O Quarto Estado certamente iria expressá-lo em algum momento e se, por acaso, isso foi expresso primeiro por Kropotkin — apesar de ainda não estar pronto para assim o sê-lo — pode ser que o resultado seja, ao contrário, desastroso. Em algum momento o Quarto Estado certamente iria marchar para onde deveria seguir mesmo sem a existência de Kropotkin. Nisso, marchariam muito mais sólida e naturalmente. Os trabalhadores sequer precisam de pensadores como Kropotkin e Marx. Na realidade, seguir sem estes pensadores pode mesmo se converter em uma forma de expressão mais completa, autônoma e instintiva.
De acordo com o que acredito, podemos falar das principais contribuições de, por exemplo, Kropotkin e Marx nos seguintes termos: Kropotkin deu à classe a qual ele pertencia, que não era o Quarto Estado (por mais que Kropotkin não gostasse da ideia, ele invariavelmente pertencia a uma classe diversa desde seu nascimento), conceitos e determinações. O Capital, de Marx, também se enquadra no mesmo caso. Quais seriam as ligações entre os trabalhadores e O Capital? A contribuição mais significativa de Marx enquanto pensador foi a de fechar os olhos idealistas que, assim como ele, provém de instituições como as universidades, que são estruturantes de uma nação capitalista. O Quarto Estado segue o caminho que deve seguir sem a existência dessas pessoas.
De agora em diante, com a partilha igualitária da herança dos impérios capitalistas entre o Quarto Estado, talvez os trabalhadores venham a compreender os profundos princípios de vidaxx de Kropotkin, Marx e outros. E, a partir disso, talvez a revolução poderá ser concretizada. Entretanto, quando isso ocorrer, não conseguirei deixar de questionar a verdadeira essência dessa revolução. Apesar de a Revolução Francesa ter irrompido como uma revolução em prol do povo, ao fim, os seus resultados naturalmente serviram aos interesses do Terceiro Estadoxx, dado seu vínculo a pensamentos como os de Rousseau e Voltaire, e o povo de fato, ou seja, o Quarto Estado, até hoje acabou sendo deixado de lado na mesma condição de antes. Essa lástima parece existir até mesmo observando a situação da Rússia atual
Embora eles digam, como pretexto, ter realizado a revolução final tendo o povo como base, relata-se que os camponeses, grande maioria do povo na Rússia, foram excluídos, ou talvez sejam indiferentes, até mesmo hostis aos seus frutos. Não há opção senão interromper um movimento de renovação concretizado por motivações ou ideias que não sejam geradas pelo Quarto Estado verdadeiro e que tomem outros rumos que não sejam o do objetivo original. De forma similar, mesmo supondo que as pessoas que realizam o movimento, estimuladas pela opinião de pensadores e estudiosos atuais, afirmem elas próprias pertencer ao Quarto Estado, na realidade, não passam de filhos ilegítimos do Quarto Estado e da classe dominante atual.
De um jeito ou de outro, o fenômeno de o Quarto Estado começar a pensar e a operar por si próprio propicia uma grande questão que os pensadores e estudiosos devem considerar. Pessoas que posam como líderes, iluministasxx, agitadores, chefes, e que não tentam pensar nisso suficientemente devem ser colocadas em posição de escárnio. O Quarto Estado iniciou uma devolução de compaixão, simpatia e afeição vindas das demais classes sociais. Recusar ou encorajar tal atitude se vincula inteiramente ao propósito do próprio Quarto Estado.
Eu nasci, fui criado e educado em uma classe social que não a do Quarto Estado. Logo, faço parte dos seres que não possuem vínculos com o Quarto Estado. Eu não consigo de forma alguma me tornar um membro da classe emergentexx, assim, nem mesmo espero ser tido como um. Não posso cometer essa falsidade estúpida de defender, argumentar ou militar em prol do Quarto Estado. Não importa por quais mudanças minha vida passe no futuro, no fim, o fato inegável de eu ser fruto de até então membros de uma classe dominante se assemelha ao fato de que um negro não perderá sua negritude mesmo que seja inúmeras vezes cuidadosamente lavado com sabãoxx. Consequentemente, a minha atribuição não pode ser outra que não a de continuamente chamar a atenção das pessoas externas ao Quarto Estado. Há algo no mundo chamado de literatura dos trabalhadoresxx que está ganhando ênfase, assim como uma crítica que a enfatiza e a defende. Dotados de formas de expressão, concepções e escritas inventadas por pessoas de outras classes sociais que não as do Quarto Estado, eles retratam o que viria a ser a vida dos trabalhadores de forma desconexa. Dotados de métodos de investigação, ideologia e lógica inventadas por pessoas de outras classes sociais que não as do Quarto Estado, eles encaram obras literárias e classificam o que é ou não literatura dos trabalhadores. Eu definitivamente não consigo tomar uma atitude como essa.
Se a chamada luta de classes está no cerne da vida moderna, se é seu alfa e ômegaxx, então acredito que as minhas observações anteriores são razoáveis. Não importa o quão notáveis sejam os estudiosos, os pensadores, os ativistas e os líderes, é claramente uma afronta se estes pensarem que podem contribuir com algo para o Quarto Estado sem ter o que haver com aqueles que são os trabalhadores incluídos nele. Os esforços vãos dessas pessoas não seriam somente uma perturbação para o Quarto Estado?