A linguagem da rebelião

Takeda Rintarô

Tradução: Rafael Silva Rufino de Sousa

Revisão e cotejo: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

Texto original: "Hangyaku no roretsu". Hangyaku no roretsu, Tóquio: Kaizôsha, 1930. Disponível em: Aozorabunko. Acesso em: 16/12/2024.

Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).

Sumário

1

Ele tira suas roupas de detento. Mas não tinha o que vestir. Quando foi trazido estava vestido com um quimono de algodão com estampa listrada. Não tem como andar com isso debaixo do sol escaldante de agosto. Pensou bem e acabou vestindo o juban. Para calçar ele comprou um par de sandálias de palha de três sen.

Assim, Senkichi saiu pelo portão lateral da prisão S às 5 da manhã. Ele tinha raiva, logo, foi caminhando sem olhar para trás. A rua branca entre os campos de arroz se estende até a estação. Atrás dele, a prisão que possuía enormes muros de concreto foi ficando distante.

Ele tinha tempo até o horário de embarcar no trem. Com os quatro ienes e dez centavos recebidos como recompensa pelos três meses de detenção, ele comprou um daifuku mochi  em frente à estação. A pasta de feijão estava azeda, como se fosse de ontem à noite. Mas ele movia energicamente as bochechas, bebia o chá e engolia audivelmente.

Ao desembarcar do trem, o caminho até a aldeia era longo. As luzes da noite se acendem. O odor das folhas de arroz se destaca e chega até seu nariz. Nessa volta para casa estranhamente ele não encontrou ninguém voltando do trabalho. Ele foi até a casa da sua sobrinha que era cercada por pés de milho. A montanha ao fundo já estava escura como breu

Na varanda da casa de sua sobrinha, sua filha Umeko estava chorando. Sob a luz amarela da lâmpada do cômodo, Umeko parecia miserável. Ele pensou na maneira como ela era tratada por sua sobrinha avarenta. Senkichi imediatamente jogou a roupa que trazia junto consigo, e pegou a filha em um dos braços. Ela se assustou e chorou ainda mais. 

Ele discutiu com os sobrinhos até tarde da noite. A sobrinha havia pedido um iene e cinquenta centavos para custear a criação da menina. Senkichi perguntou se ela era estúpida. Mesmo gastando trinta sen em um mês, não daria um iene no total, ele gritou. E então ele jogou nela uma nota de um iene fedendo a gordura. A sobrinha catou a nota, e guardou dentro da faixa que estava sempre presa à sua cintura. 

O que fazer quando o dia amanhecer? O Senkichi não tinha mais terras para cultivar. Sua cabana também foi levada. Esse é o resultado de enfrentar os homens da aldeia. Para aqueles que não podiam permanecer na aldeia, não havia outra opção senão ir para a cidade “X”. Nas cidades grandes as pessoas se concentram em todos os cantos. E, seguindo o pensamento de Senkichi “É possível viver prosperamente”. Por que então se encolher em uma aldeia tão mesquinha e limitada?

A manhã chegou. Senkichi vestiu sua roupa amarelada que não era lavada desde o ano passado. Por cima da roupa amarrou uma faixa preta que usou para carregar Umeko.

— Não voltaremos para essa aldeia nunca mais. 

Sua sobrinha gritou de dentro da fumaça da fornalha

— Suma daqui. Sua cara me enoja.

Na delegacia local, já sabiam que Senkichi havia voltado. Os agentes policiais ainda se lembravam de quando foram lançados dentro de um lago por Senkichi ao tentarem contê-lo depois de ele ter invadido a casa do proprietário de terras aos berros. Como retaliação, não bastou tê-lo enviado à prisão S por três meses. Eles incitaram os jovens da aldeia: “Precisamos dar uma boa lição nesse socialista que ousa desafiar os patrões”. Os jovens do vilarejo armaram uma emboscada para Senkichi.

Eles atacaram Senkichi ao lado do lago. O vapor matinal ainda pairava sobre a água. Umeko foi lançada para baixo do pé de caqui. A menina se molhou com o orvalho da grama. Os jovens gritaram enraivecidos inúmeras vezes. E toda vez que isso acontecia se ouviam os gemidos de sofrimento de Senkichi. A água do lago se movimentava fazendo várias ondulações. Quando os jovens se foram, Senkichi foi para debaixo da árvore de caqui. A água pingava pela sua roupa, e pequenas plantas aquáticas se espalhavam desde suas bochechas pálidas até os lábios que tremiam descontroladamente. Ele se despiu e caiu ao lado de sua filha. E então, pai e filha se puseram a chorar.

2

O Takeda, escritor desse pequeno texto, ouviu essa história através da Umeko. No entanto, ela só tinha quatro anos na época. Por isso, o que foi contado acima não deve ter sido o que a menina realmente viu. A história que seu pai Senkichi a contou incontáveis vezes enquanto estava embriagado certamente tomou uma forma muito clara na cabeça dela. Eles partiram para a cidade “X”. E então passaram-se quinze anos. Quinze anos é tempo suficiente para vários acontecimentos na vida do pobre. Mas, infelizmente, isso ficará a cargo da imaginação deste igualmente pobre escritor, e lidarei somente com os pontos importantes para a história. Tal como Umeko me contou.

3

Senkichi passou por inúmeras profissões. Primeiramente foi condutor de riquixá, na época em que ainda não conhecia claramente as ruas da cidade. Ele lucrou mesmo com as pernas debilitadas. Então, a polícia trouxe a notícia até a casa do seu chefe: devido a uma disputa com o senhor de terras sobre a renda de arrendamento na aldeia ele foi rotulado de socialista. O chefe decidiu demitir Senkichi, o ajudante. Naquela noite, Senkichi tinha finalmente conseguido transportar um passageiro que estava indo para os distritos de prostituição. Era uma noite clara e gelada. Ele recebeu vinte sen e voltou. Quando foi comer um udon para aquecer seu peito naquela noite gelada, percebeu que o dinheiro que havia colocado na tigela não estava mais lá. Senkichi ficou imóvel por um tempo, contemplando as negras águas do rio, em cima daquela ponte às duas da manhã. Senkichi voltou para o segundo andar da casa do chefe e dormiu de estômago vazio ao lado da já adormecida Umeko. Sem saber que teria que partir no dia seguinte

Depois disso se tornou um trabalhador de limpeza urbana, ficando coberto pelo mau cheiro. Passou a trabalhar como vendedor ambulante de remédios de rua, andando e tocando acordeão. Quando voltava para casa Umeko se divertia com o instrumento que ressoava como uma buzina. Em seguida, passou a trabalhar descarregando cargas do canal e levando até os depósitos. Enquanto estava com um pesado fardo sobre os ombros e a cabeça levemente abaixada, uma grande mão se estendeu diante dos olhos de Senkichi lhe entregando o pagamento do dia. Ele se assustou, pôs a carga no chão, limpou o suor com a toalha que estava em seus ombros e viu que diante dele estava o supervisor. Ele disse para Senkichi desistir do trabalho e partir imediatamente. Umeko que estava na beira do rio de onde a grama brotava esparsamente, observava seu pai dando explicações. A zona de entretenimento S foi planejada. Senkichi então virou trabalhador da construção civil. Sob o céu de outono ele colocava terra na vagoneta e a fazia correr. O contratante dizia “Que me importa se é um ex-presidiário ou um idealista? Não se preocupe com isso. Apenas trabalhe! Trabalhe! Não vou fazer nada de ruim com você.” Mas, a construção da zona de entretenimento foi cancelada e o contratante fugiu sem pagar aos operários. Umeko completou sete anos e tinha que ir à escola. 

Senkichi sempre carregava um rótulo que o acompanhava aonde quer que fosse. Por alguma razão, ele é um idealista. Ele tinha uma condenação anterior por socar um policial de proteção civil. Assim, aos poucos ele foi ficando cada vez mais embrutecido. Olho por olho, dente por dente. Ele pensou em retribuir a forma como foi tratado. Era só conseguir um pouco de dinheiro que ia beber. Ele não sossegava enquanto não bebia. E amaldiçoava o senhor de terras e os policiais. Devido a vida pobre era difícil evitar falar mal dos ricos. Mas nessas horas, a única que o ouvia atentamente era apenas Umeko. A criança estava calada sentada em frente ao seu pai. 

Em uma manhã de um dia de outono, Umeko saiu para ir à escola, mas voltou para casa logo depois. Naquela época, Senkichi trabalhava como pintor. Embora ele tenha nascido camponês, sua caligrafia era ótima. E isso lhe foi útil. Quando avistou Umeko, Senkichi que estava escrevendo em uma grande placa, gritou lá de cima da escada “O que houve? Já terminou as aulas?” Então a Umeko explicou que ao ir à escola normalmente, o professor a repreendeu por não estar vestindo um hakama. Hoje era o dia do aniversário do imperador. “O professor me chamou de infiel.” Senkichi desceu da escada. “Quem diabos ele pensa que é? Vou agora mesmo falar com esse professor. Que merda é essa de chamar pobre de infiél? Se precisam de hakama ou de quimono bom, que comprem e deem pra gente!”, ele disse. No final das contas perdeu o emprego. Umeko foi extremamente maltratada na escola. 

Quando foi para o segundo ano, ela começou a aprender a fazer balões ensinada pela senhora com quem morava. Ela colocava pedaços de papel vermelho, roxo, amarelo, azul e branco, parecidos com pétalas de flores, sobre a mesa baixa. Todo dia ela preparava cola e fazia os balões. Quando caía a noite, ela embrulhava em um furoshiki azul-marinho os seus balões junto com os que a senhora preparou e atravessava a colina, caminhando por um longo caminho até a loja de balões no distrito dos atacadistas. No entanto, meninas de oito ou nove anos normalmente preferem brincar com os balões a fazê-los. 

E ela também fazia decorações em pentes de celuloide. Ela usava uma cola ocidental chamada cola árabe. Usa-se uma pinça para segurar o pequeno enfeite de metal. Quando esse método não funcionava, ela atravessava alças de barbante em sacos de papel. Quando Senkichi perdia o emprego, ele também ajudava a garota nesse trabalho menos lucrativo.

4

Me alonguei um pouco nisso. Vou escrever de forma mais simples. Uma mera lista de situações assim não desperta muito o interesse do leitor. De qualquer forma, sob a influência desse tipo de pai e de sua vida, ela gradualmente aprendeu a linguagem da rebelião. Essa linguagem tornou-se claramente um discurso quando ela passou a trabalhar em uma fábrica de fósforos.

5

Vários baldes estão alinhados a fim de tornar macio o osso de boi usado para fazer escovas de dente. O osso de boi é amarelo e fedido. Senkichi trabalhava com isso. O setor de desbaste inicial. O pó branco e áspero o cobria da cabeça aos ombros. Naquele ano muitos foram os artigos de jornal sobre disputas trabalhistas. Os artesãos (Senkichi chamava os trabalhadores dessa forma) liam esses artigos com afinco. Esse era o único assunto discutido durante os intervalos de almoço. “A Fundição E está em greve, exigindo um aumento de 20 sen na diária. Nós também precisamos conseguir um aumento de pelo menos 20 ou 30 sen, não é?” Alguns voluntários se reuniram e começaram a estudar por que as greves ocorriam entre trabalhadores de outras fábricas em condições semelhantes. Como resultado, essa fábrica também decidiu entrar em greve. Foi feita até a exigência de construir não apenas um portão frontal, mas também um portão traseiro, pois muitos trabalhadores precisam fazer um desvio desnecessário. Primeiro eles começaram sabotando o trabalho. Depois solicitaram o apoio da filial da fraternidade sindical. Foi a primeira experiência do “idealista” Senkichi em uma greve. Ele lutou bravamente. A disputa durou muito tempo. Ele foi derrubado muitas vezes. Mesmo assim ele permaneceu implacável e ficou a frente de todos com a intenção de derrotar o inimigo. A maioria das solicitações passou e tudo foi resolvido.

Senkichi tornou-se presidente da filial da fábrica. Ele ficou satisfeito como uma criança. E assim prosseguiu em uma vida relativamente tranquila. Ele alugou uma casa térrea em um beco entre a loja de vidros e a loja de tamancos. E Umeko também cresceu o suficiente para trabalhar na fábrica de fósforos. Havia sempre espiões indo e vindo. No entanto, agora parecia que eles tinham um pouco mais de respeito por Senkichi. Eles brincavam com a jovem Umeko e contavam piadas com ele.

6

O movimento trabalhista japonês gradativamente passou de algo que ocorre espontaneamente para algo que ocorre de forma consciente. O movimento de até então foi reformulado. Os líderes passaram a pensar sobre vários problemas difíceis. Após a primeira greve, mesmo na filial sindical da fábrica de escovas de dente M, que até então havia permanecido tranquila, segundo Senkichi, surgiram jovens que começaram a expressar argumentos complicados. Para Senkichi, era algo “insuportável”. Mas ele disse “Não quero que as pessoas esqueçam quem eu era durante aquela greve”. Os jovens não mostravam qualquer consideração por esse veterano. Vou me aposentar. E então ele se tornou um membro comum do sindicato. De alguma forma, ele sentia que agir com base em teorias precisas e seguir regras era algo sufocante. Ele queria resistir de uma forma mais parecida com uma festa, em meio à euforia.

7

A água suja do riacho fluía. Uma pequena ponte de madeira se estendia entre as margens. Ao leste havia uma antiga delegacia de polícia. Atravessando o rio, exatamente do outro lado, haviam quatro ou cinco escritórios de escrivães. Pouco tempo depois, Senkichi, alugando a fachada de uma casa comercial fechada, por alí ficou. Sem perceber, ele também se tornou um escrivão. Sem dúvida, ele contou com a ajuda de algum espião com quem ele tornou-se estranhamente amigável. Com sua boa caligrafia, ele aguardava clientes e fazia a redação de formulários e documentos por eles. Ele ficava lá até o fim da tarde e depois voltava para a sua casa, situada entre a loja de vidro usado e a loja de tamancos. Às vezes, a casa estava sem luzes acesas e o jantar ainda não estava pronto. Umeko, que trabalha na fábrica de fósforos, não se comportava como uma moça, pois às vezes não voltava para casa nem mesmo quando já era hora de sair. Um espião chamado Fujimoto que ainda hoje periodicamente visitava Senkichi, foi vê-lo no escritório de escrivão, e depois de terem falado de diversos assuntos ele disse “Melhor tomar cuidado com a Umeko. Algum inseto pode estar zanzando perto dela”. 

Inseto? Com frequência um jovem rapaz ia visitar Umeko em sua casa. Senkichi frequentemente falava com ele, de forma animada, sobre o seu antigo eu “idealista”. Ele dizia “Não consigo assistir o movimento dos jovens de hoje. É muito perigoso.” Falando dessa forma e vivendo tranquilamente seus dias, um sentimento de aversão ao poder organizacional dos jovens começou a surgir. Era um estranho fenômeno. – Será que aquele jovem que vem visitar era um inseto? – Ele pensou.

Nesse momento, esse inseto, aquele jovem, estava encostado na parede de tijolos, esperando que Umeko saísse da fábrica. Eles tinham vários assuntos para conversar. Eles caminhavam pelo antigo e depredado muro da fábrica de fósforos. Ainda fazia frio. Ventava e o xale que Umeko trazia nos ombros tremulava. Quando a conversa parou Umeko, de repente, disse

— Não seria isso um encontro secreto de amantes? Parece que estamos envolvidos em alguma atividade como namorados.

E então eles riram jovialmente. Nessa noite ela voltou para casa mais tarde. A cola, grudada em sua bochecha e ombro direito, parecia estar fria e dura. Quando esfregava as mãos, a cola se desfazia caindo em pedaços pretos junto com a sujeira.

Os dois foram juntos colar um pôster. Por causa do vento estava difícil fixar o pôster que pedia a dissolução do parlamento. Por mais que se aplicasse cola ela desprendia. Os jovens estenderam um manto para tentar evitar a ventania. A pequena Umeko estava embrulhada, junto ao pôster, nesse manto. 

— É como se realmente fossemos amantes. Tenho certeza que é assim quando se trata de amor.

8

À medida que o verão se aproximava o pai começou a ralhar cada vez mais com a filha. Ele só vivia pela memória daquela greve. Ele começou a pensar que aquele jovem que a visitava estava a seduzindo para o mal caminho. O mal caminho ― Ele fazia referência a forma como os movimentos trabalhistas funcionavam ultimamente. Ela olhou atentamente para o rosto de Senkichi que parecia estranhamente reacionário e viu a velhice começando a aparecer em sua expressão.

― Não é nada disso Nada disso mesmo.

Se ela não negasse , não saberia o que seu pai diria a Fujimoto, que costuma visitá-los vindo do outro lado do rio. Umeko sentiu-se triste por ter que se preocupar com isso. Não foi este pai quem havia lhe ensinado as noções da linguagem da rebelião? A semente plantada nesta época está tentando brotar. Foi ela quem liderou a criação de uma organização das corajosas operárias da seção de impressão da fábrica de fósforos.


A cor do anoitecer ficava cada vez mais escura. O canal borbulhava com pequenas bolhas, e o céu estava pesadamente nublado. Quando Senkichi estava se preparando para fechar a loja e voltar para a casa, chegou um pedido. Ele preencheu a notificação de construção e cobrou nove sen por cada folha. O cliente, distraído, havia esquecido o seu carimbo. Ele saiu apressado para buscá-lo. Ele botou a notificação em cima da mesa e ficou esperando distraidamente o cliente voltar. Há um mosquito zumbindo na casa. Naquele momento, uma mulher pequena estava sendo arrastada por dois homens de terno, vindo do sul, do outro lado do rio. Os olhos de Senkichi, que a observava com indiferença, de repente brilharam intensamente, e ele se levantou. Era uma cena estranha. Umeko havia sido capturada por um espião! A garota, ao atravessar o rio, reconheceu o seu pai. Ela fez uma reverência para ele e desapareceu na polícia. Ele ficou perplexo. No fundo ele queria que a filha permanecesse intocada. Mas, havia um inseto. Um inseto. – “Por favor. Por favor”.

Naquele momento, o cliente que havia retornado dizia repetidamente, enquanto estendia um carimbo por trás dele.

Manhã de 19 de setembro de 1929

Notas