Um mundo só meu
Tradução: Felipe Chaves Gonçalves Pinto
Revisão e cotejo: Texto ainda não revisado e/ou cotejado (versão provisória)
HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto
Texto original: "Jibun dake no sekai". Manuscrito, 20 de setembro de 1921. Disponível em: Aozorabunko. Acesso em: 17/11/2024.
Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).
Este texto não foi escrito para leitores, mas sim enquanto anotação pessoal. No entanto, pode ser que também sirva como referência para alguém. Quando terminei de traduzir este livro (O único e sua propriedade), senti como se tivesse concluído uma tarefa realmente expressiva. Embora para as outras pessoas isso possa não parecer nada demais, para mim soa como algo significativo.
Demorei até agora para finalmente terminar de traduzir um livro que comecei a ler há dez anos. Desde o momento em que comecei a lê-lo, a intenção de traduzi-lo já estava em mim, mas eu não fazia ideia de quando poderia iniciar ou concluir a tradução, e, claro, mesmo que conseguisse terminá-la, nem sabia se seria possível publicá-la. Além disso, era extremamente duvidoso se eu seria capaz de traduzir satisfatoriamente um livro tão difícil. Agora, ao pensar que “finalmente concluí a tarefa”, sinto-me um tanto alegre.
Não me atrevo a afirmar que esta seja uma tradução completa. Afinal, trata-se de uma tradução indireta e com muitos desafios. Em primeiro lugar, isso se deve à minha própria formação cultural, mas também à minha condição financeira que, de maneira alguma, me permite focar neste trabalho com tranquilidade. Embora seja uma desculpa apática, é a realidade. Eu posso fazer apenas o que está ao meu alcance. No entanto, o forte desejo de ler este livro meticulosamente, palavra por palavra (algo que, levando essa vida de “vender o almoço para pagar a janta”, só consigo fazer através da tradução) me impulsionou desde o início. Por isso, contive repetidamente os sentimentos de desânimo que surgiam e, enfim, consegui levar o trabalho até o fim.
Mesmo agora, quando penso sobre o assunto, acho que desde jovem, talvez por ter sido obrigado a enfrentar dificuldades cedo, fui uma criança precoce e inconvenientemente madura. Além disso, minha saúde nunca foi robusta, o que me tornava bastante taciturno — desde os meus doze ou treze anos, eu já tinha internalizado a ideia de que o mundo não era um lugar agradável, mas algo a ser evitado. Por isso, ao contrário dos meninos da minha idade, eu não gostava muito de esportes ou brincadeiras — passava o tempo calado, imerso em pensamentos, e tampouco gostava de ir à escola. Assim, nunca tive a ambição ou o sonho de ser um heroi ou um grande político, como talvez fosse comum aos outros garotos — aliás, quase nunca pensava de maneira concreta em “o que” eu queria ser. Então, o que se passava em minha cabeça? Nada que pudesse ser de fato útil: “O que é o mundo afinal?”, “O que é o ser humano?”, “Como é que alguém pode viver da melhor forma como ser humano?”, “Será que Deus existe mesmo?”, “Por que a vida existe?” (etc). — isto é, perguntas puramente metafísicas. Minha leitura favorita aos quatorze ou quinze anos (um livro que ainda pego de vez em quando) era o Tsurezuregusa, o que dá uma ideia do meu estado de espírito na época. Quando comecei a aprender inglês e, na escola, estudava o vol. 4 do Union Reader, acabei me aproximando do cristianismo, trocando as obras literárias que havia lido até então por livros religiosos — foi assim que, até cerca dos dezenove anos, fui cristão. Porém, à medida que minha razão despertava e o desejo de conhecimento se intensificava, já não me satisfazia com a simples religião e, então, comecei a ler todos os livros que encontrava, mesmo que nem sempre os compreendesse bem — foi nesse período que uma profunda revolução espiritual ocorreu no Japão. Ou seja, a young generation da época passou a ser batizada pelo espírito moderno — que, sem dúvida, era o naturalismo. A influência dessa mentalidade nos jovens japoneses foi verdadeiramente imensa.
Por ora, vou me abster de discutir aqui o valor disso, mas, basicamente, aqueles que não receberam o batismo desse espírito são pessoas deixadas para trás pelo “Modern Spirit”. Portanto, não é nada surpreendente que os jovens nascidos em uma época posterior tenham sido chamados de “pré-naturalistas”, por exemplo. De qualquer forma, feliz ou infelizmente, é fato que passei por essa grande onda. Em seguida, surgiram várias reações contra o naturalismo — a mais notável foi a ascensão do idealismo da escola Shirakaba, centralizada em Mushanokôji. Entre a luta desses dois estados de espírito, outra corrente oculta, o romantismo, permaneceu como uma força subjacente. Recentemente, o espírito do socialismo começou a ganhar destaque. Esse socialismo remonta, talvez, à influência inicial da escola francesa no começo da Era Meiji. No entanto, no Japão contemporâneo, ele é um tipo peculiar de filho disforme, nascido do idealismo cristão como mãe e do naturalismo como pai. Ele é, verdadeiramente, o “Antipode antipodes” do “Romantic Spirit”.
Eu pretendia falar apenas sobre mim, mas acabei me desviando. No entanto, é um fato que minha mente foi influenciada por esses vários espíritos e que esses mesmos espíritos encenaram várias “Dramatic Scenes” dentro de mim enquanto indivíduo.
De todo modo, fui arrastado pela correnteza do espírito da época e li desordenadamente uma grande variedade de livros — embora gostasse de obras literárias, eu tinha mais interesse em livros de caráter filosófico. No entanto, olhando para trás, percebo que era bastante ingênuo naquela época. Pensava seriamente: “desta vez, quero ler aquele livro e realmente compreender algo como ‘a verdade’, ou resolver, mesmo que um pouco, ‘os mistérios do universo’”. Porém, não importa qual livro eu lesse, talvez por causa da minha falta de inteligência, no final, a única coisa que conseguia entender era que não entendia nada.
No entanto, para alguém como eu, enquanto minha postura em relação à vida não estiver claramente definida, não consigo me motivar a fazer absolutamente nada. E, no final das contas, como a postura fundamental de meu espírito estava instável, é natural que eu não conseguisse realizar coisa alguma. Passei minha vida todo esse tempo preocupado apenas com a vontade de resolver isso o mais rápido possível.
Ou seja, foi ao ler Stirner que finalmente defini minha postura. Foi como se eu tivesse assumido uma posição. Naquele momento, senti como se tivesse despertado. Percebi quão tolo havia sido ao me preocupar inutilmente com coisas que estavam além do meu controle. Entre todos os livros que já li, provavelmente nenhum outro teve um impacto tão profundo em mim como este. Depois disso, li e o reli várias vezes. De fato, quando comecei a lê-lo pela primeira vez, fiquei um pouco perdido, sem conseguir compreender de imediato. No entanto, como o prefácio da tradução inglesa já avisava que o livro era difícil de entender, decidi ser paciente e continuar lendo e aos poucos, comecei a compreender o que Stirner dizia. Tudo o que eu vinha matutando confusamente até então foi explicado de forma tão clara que parecia estar vendo cada ideia diante de mim. Durante a leitura, experimentei inúmeras vezes aquela sensação de pensar “ah, é isso!”. Então finalmente, comecei a sentir que podia encontrar a tranquilidade. Tive uma clara consciência da verdadeira essência do “Eu”. Compreendi profundamente que, se todos os seres humanos tomassem essa consciência como ponto de partida, certamente cometeriam muito menos erros.
Após ler Stirner, comecei a abordar os livros de filosofia de uma maneira completamente diferente do que fazia antes. Isto é, passei a encará-los da mesma forma que outras obras literárias, lendo-os com o mesmo espírito com que se lê um romance. Antes disso, já considerava a Bíblia como uma espécie de romance antigo, mas ainda tinha a ilusão de que os livros de filosofia escondiam algum tipo de “verdade” especial, como um truque mágico revelado por meio de um conhecimento superior. No entanto, esse sonho ilusório foi completamente desfeito de uma só vez.
Normalmente, as pessoas que criticam Stirner dizem que, após destruir todos os ídolos, ele acabou por erigir o “eu” como um novo “ídolo”. De fato, talvez se possa dizer isso. No entanto, ao observar como ele distingue claramente o “Eu” que prega dos chamados “Eu Absoluto” de Fichte ou do “Grande Átma” frequentemente mencionado pelos budistas, fica evidente que o “eu” de Stirner é algo que se move constantemente dentro de cada indivíduo, um “eu momentâneo de carne e osso”. Portanto, não é algo fixo ou imutável. Mesmo que fosse elevado ao status de “ídolo”, cada pessoa poderia moldar seu conteúdo livremente conforme quisesse, tornando-o um “ídolo” que não impede ninguém. Além disso, Stirner não se opõe particularmente à tendência humana de criar ídolos. O ponto central de sua crítica está em alertar contra a ilusão de tomar esses “ídolos” como se fossem criadores, invertendo a relação entre sujeito e objeto: é contra isto sua admoestação.
A doutrina de Stirner — não importa se a chamamos de filosofia dogmática ou mero raciocínio — pode, talvez, ser descrita como uma filosofia do desengano. Isso porque ela não reconhece nenhum valor além do próprio eu. Isto é, afirma unicamente a existência do eu e nega todo o valor das existências externas. Negar o valor de qualquer coisa fora de si mesmo pode, afinal, ser entendido como um desengano. Não se busca nada além do próprio eu. Trata-se de um subjetivismo extremo, onde todo valor surge exclusivamente do julgamento individual. Esse subjetivismo, no entanto, é obra de um “nada criativo”, que muda e se transforma a cada instante e, portanto, sendo algo tão intangível e vasto, seu nome pouco importa. A essência do Eu é percebida por meio da autoconsciência de cada indivíduo — ou seja, através de um despertar e nada mais. Nem mesmo os raios X ou a radiografia podem penetrar e revelar a forma do “Eu”.
Esse estado de autoconsciência se assemelha, de certa forma, ao estado de iluminação mencionado no Zen, onde se fala sobre a “Verdadeira Natureza”. Embora eu praticamente não tenha conhecimento sobre o budismo, ao ler os textos do Zen após estudar Stirner, sinto que consigo compreendê-los com certa facilidade. Ainda que haja algumas diferenças, pode-se comparar o “nada criativo” ao conceito de vacuidade expresso em “Sunyata”. No entanto, no budismo, parece que há toda uma elaboração detalhada, como na filosofia Prajna, que complexifica e explora a ideia de “vacuidade” em suas nuances, criando algo que poderia ser chamado de uma filosofia abstrata do vazio. Por outro lado, Stirner resolve a questão de forma simples com a ideia de “inefabilidade”. Ele explica que, quando a reflexão intelectual tenta transformar isso em um pensamento elaborado, o conceito já deixa de ser aquilo que era.
Segundo Stirner, o primeiro princípio é que cada indivíduo deve tomar plena consciência de seu próprio eu. Isso equivale a possuir a si mesmo. E possuir a si mesmo significa, ao mesmo tempo, possuir tudo. Pois, “todas as coisas são nada diante de mim”.
Um detalhe que me chamou a atenção: a palavra “proprietário” (Eigner) usada por Stirner parece ser uma invenção própria. No entanto, ao ler o Zhuangzi (um dos meus livros favoritos desde muito tempo), aparece a expressão “Único Proprietário”. Essa expressão poderia ser utilizada sem problemas como tradução de Eigner. Mas o que significa “Único Proprietário”? De acordo com o texto:
Possuir terras é deter algo grandioso. Quem possui algo grandioso não deve tratá-lo como algo comum. Aquele que administra sem ser dominado pelas coisas materiais é capaz de governar todas elas. Entender que governar as coisas não significa ser dominado por elas não se limita a governar o povo de um reino. Significa, também, transcender os limites do mundo, viajar pelos nove continentes, ir e vir autonomamente. Esse estado é chamado de “Único Proprietário”. Aqueles que alcançam esse estado são considerados os mais nobres.
Nietzsche pregava o conceito de “Além-homem”. Para Stirner, no entanto, não havia necessidade de algo como o “Além-homem”. Este, tal qual o “Humano demasiadamente humano” ou o "Verdadeiro Homem”, era apenas mais uma ilusão inútil para ele. Para Stirner, basta ser “eu mesmo, de carne e osso”. (Compare com o conceito budista de “Este corpo mesmo é o Buda”). Cada pessoa já nasce completa enquanto pessoa, cresce como essa mesma pessoa e morre como ela, e isso é suficiente. Não há necessidade de se tornar um “Verdadeiro Homem”, um "Além-homem”, um “cachorro” ou um “Buda”. Tampouco é necessário atender a ordens de outros para “tornar-se algo”.
É impossível determinar até que ponto Stirner, durante sua vida, incorporou sua própria filosofia na prática cotidiana. E, olhando agora, não há como nós, especialmente as gerações posteriores, sabermos disso. Além disso, é extremamente duvidoso que seu estado de União de Egoístas, como ele sugeriu, possam ser plenamente realizados neste mundo. No entanto, é inegável que sua filosofia permite que cada indivíduo tome consciência de seu próprio Eu. Posso dizer que, pelo menos para mim, esse foi o caso. E, se pessoas com essa consciência individual se reunirem e forem capazes de compreender as perspectivas uns dos outros, talvez seja possível alcançar as associações mais livres de “proprietários” previstas por Stirner. Essas associações seriam um estado em que os “egoísmos” são mutuamente reconhecidos e aceitos. Apenas aqueles que veem benefício em se unir a outros deveriam fazê-lo, e aqueles que não reconhecem tal necessidade não precisam, de forma alguma, se forçar a participar. Trata-se de uma associação espontânea de indivíduos, sem qualquer poder de governança que a controle. Se tal sistema funcionaria bem ou não é outra questão, mas, para mim, parece o tipo de organização mais adequado e desejável.
É um estado em que ninguém governa ou dá ordens a ninguém. Cada um faz apenas o que é capaz de fazer. Vive-se conforme a própria natureza e inclinação. O que não se pode fazer, deixa-se para que outros façam. Trata-se de estar claramente ciente dos limites de suas próprias capacidades e dos limites das capacidades dos outros. Basta que cada um evite imitar de forma equivocada, intrometer-se desnecessariamente ou vangloriar-se sem motivo. A ideia é “Faça o que você gosta de fazer, porque eu farei o que gosto de fazer”. Não se trata de coisas do tipo “por que você está fazendo isso?”; “qual é o propósito disso?”; “você deveria parar com isso”; “isso nunca foi feito antes”; “a sociedade não aceita isso”; “isso não é moral” (etc.)
Não se deve buscar em outros o padrão pelo qual viver. Cada pessoa deve viver conforme a sua própria medida. Não existe outra moral ou padrão além disso. Não será mais necessário recorrer a máximas de santos e sábios ou a passagens de sutras para justificar suas ações. Regras e costumes podem ser escolhidos conforme o que for mais conveniente em determinado momento. No mundo, não existe sequer um padrão objetivo que seja absoluto e imutável. As pessoas devem ser o mais flexíveis possível umas com as outras.
Pode-se dizer, sem dúvida, que é uma espécie de utilitarismo. Contudo, o nome não importa. Para aqueles que não conseguem ficar tranquilos sem dar um nome às coisas, podem chamá-lo como quiserem.
O livro O Único e sua Propriedade foi praticamente ignorado na história da filosofia até agora. Recentemente, dei uma olhada na tradução do Sr. Suita da obra Die Philosophie im deutschen Geistesleben des XIX (História do Pensamento Alemão no Século XIX), de Windelband, e mesmo ali ele é mencionado apenas de passagem, como uma obra “peculiar” escrita por um dos membros da ala esquerda hegeliana. Se esta obra não tem valor como filosofia, talvez possamos chamá-la de romance do “Eu”. Um romance em dois volumes que descreve como o “Eu” foi perseguido e oprimido por inúmeras forças durante tanto tempo e como, graças ao poder de Stirner, conseguiu finalmente retornar à sua essência original. Ou ainda, poderíamos considerá-la um poema lírico filosófico que exalta o “Eu” ao extremo. Se há quem pense que romances e poesias não têm qualquer relação com o mundo real, deixemos que continuem a pensar assim. Ainda há muito o que dizer, mas deixarei para outra oportunidade.
20 de setembro de 1921