A vocação da mulher
Tradução: Rafael Silva Rufino de Sousa
Revisão e cotejo: Felipe Chaves Gonçalves Pinto
HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto
Texto original: "Fujin no tenshoku". In: Sekai fujin, no. 1, Tóquio, 1907. Disponível em: Aozorabunko. Acesso em: 10/10/2024.
Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).
Sumário
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Senhorita Eiko Fukuda. Sempre ouvimos de muitos estudiosos, homens letrados, pregadores e oradores, que deveríamos respeitar as mulheres e proteger a sua vocação. Mas o que é exatamente essa vocação? A menos que isto esteja claramente definido, por mais gentis, castas e obedientes que sejam as mulheres de hoje, será muito difícil proteger essa vocação. Portanto, gostaria de reservar um momento para uma reflexão sobre a vocação das mulheres e dedicá-la à Mulheres do Mundo, como referência para as gerações futuras.
Algumas pessoas dizem que a vocação da mulher é casar-se e servir ao marido. Em minha opinião, se o casamento é uma vocação, deve ser uma vocação não só para as mulheres mas também para os homens. Portanto, acredito que não deva se chamar de vocação feminina, mas sim de vocação humana, de vocação animal. Então, é dito que a mulher deve servir ao marido, mas se considera-se que esta é de fato uma vocação da mulher, acredito ser extremamente difícil descobrir a razão disto. Ao investigar a história da sociedade humana, houve uma época em que as mulheres eram as chefes das famílias em um sistema conhecido como matrilinear. Naquela época não havia maridos específicos para as mulheres e elas tinham tantos filhos que era difícil dizer quem eram seus pais. Gostaria de pedir ao Sr. Ishikawa Kyokuzan que discuta esse assunto em detalhes em uma seção separada de seu artigo. De qualquer forma, fica claro que, em épocas como estas, não se pode dizer que a vocação da mulher seja apenas servir ao marido. Em outras palavras, o fato de as mulheres terem começado a pertencer e servir aos seus maridos é um fenômeno relativamente moderno, com apenas alguns milhares de anos. Se fosse para chamar isso de vocação, seria justo dizer que a vocação dos homens japoneses seria aposentar-se quando envelhecessem. Afinal, há séculos existe o costume em que os homens japoneses entregam a chefia de suas famílias aos parentes e se aposentam ao atingir a velhice. Sobre isso, eu penso que o costume da aposentadoria é apenas um fenômeno temporário na sociedade humana. Isso não aconteceu num passado distante, e mesmo agora é como se isso não tivesse acontecido. O fato de uma mulher servir o seu marido é, afinal de contas, apenas um fenómeno temporário; também não aconteceu num passado distante e, embora possa permanecer durante algum tempo no presente, está fadado a desaparecer no futuro. Chamar isso de vocação e querer vinculá-la às mulheres é apenas o egoísmo dos homens que estão em uma situação inconveniente.
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Algumas pessoas também dizem que a vocação da mulher é ser guardiã do lar. Isso é o mesmo que dizer que a vocação de um cachorro é ser guardião de um portão. Os cães viviam originalmente nas montanhas e nos campos e levavam uma vida livre e independente. Nessa época, não havia portões para proteger. Foi só depois de terem sido finalmente subjugados pelos humanos e reduzidos à condição de animal de criação que lhes foi dada a tarefa de guardar o portão pela primeira vez. Por que deveríamos chamar isso de vocação do cachorro? É também assim que as mulheres são guardiãs do lar. Somente quando se é oprimida por um homem e se torna escrava dele que você é forçada a assumir um papel incômodo. Chamar isso de vocação é de fato uma grande audácia.
Há quem diga também que a vocação da mulher é cozinhar e costurar. Esta é quase a mesma teoria do ponto anterior, e pode-se dizer que é uma história realmente risível. Na antiga era feudal, os samurais diziam que cultivar arroz era a vocação do camponês. O trabalho árduo envolvia arar os campos, plantar mudas, colher adubo e cultivar o arroz. Deixar isso nas mãos dos camponeses chamando de sua vocação, enquanto os samurais, armados com suas espadas grandes e pequenas, vestindo suas armaduras, vagavam sem fazer nada se alimentando do arroz que os camponeses produziam, deve ter sido extremamente conveniente para os guerreiros. Da mesma forma, todas as tarefas incômodas da vida cotidiana como lavar, limpar, cozinhar e costurar, devem ser deixadas nas mãos das mulheres, pois essa é a sua vocação. Deve ser muito conveniente para o homem poder ir e vir quando quiser e fazer o que quiser. Ainda assim, como uma mulher inocente uma vez disse, a não ser que a comida seja feita pela mão mais gentil da mais amável das esposas, não será suficiente para satisfazer um homem. Por isso sempre acreditamos que tarefas como cozinhar eram a vocação natural das mulheres. Isto deve ser chamado, sem dúvida, de uma atitude extremamente admirável. Como eu também sou homem, devo expressar minha infinita gratidão às mulheres tão admiravelmente virtuosas. Não há do que reclamar, mas há algo estranho nisso. Este tipo de virtude admirável existe apenas do lado das mulheres, mas não do lado dos homens. Na minha opinião, a não ser que a comida seja feita pela mão mais gentil do mais amável dos maridos, não será suficiente para satisfazer uma mulher. Portanto, acredito que pelo menos um de nós deve começar a dizer que, entre outras coisas, cozinhar é vocação dos homens. No entanto, se olharmos para o que nunca aconteceu antes no mundo, podemos ver que esta teoria da culinária como vocação, no final das contas, é uma questão de egoísmo dos homens que aplicam isso nas mulheres. Assim, a mulher, como que para agradar os homens, acaba se tornando uma pessoa que aceita inconscientemente a vontade de um homem, e finalmente chega ao ponto em que ela expressa isso por si mesma.
Na minha opinião, mesmo que coletar água fosse considerada uma vocação feminina, com o desenvolvimento do sistema de abastecimento de água, em que basta girar uma torneira para que a água jorre abundantemente em qualquer casa, a vocação das mulheres praticamente deixaria de existir, não é mesmo?. Além disso, se cozinhar arroz também fosse considerado uma vocação feminina, o método de cozinhar arroz seria igualmente aperfeiçoado e tornar-se-ia antieconômico construir um fogão separado em cada casa. Assim, se houvesse um dia em que 100 ou 200 casas, ou quem sabe uma cidade ou uma vila inteira se juntassem e construíssem uma grande cozinha comunitária de arroz e centenas de esposas se revezassem no preparo de arroz, elas seriam forçadas a cumprir seu chamado apenas uma vez a cada 100 dias. Dito isto, pode-se dizer que é uma vocação feminina muito leve. Em outras palavras, cozinhar, assim como costurar, é em grande parte uma vocação para máquinas, não uma vocação para humanos. Hoje, devido à imperfeição das organizações sociais, tais tarefas triviais acabam sendo obra de humanos, mas em uma sociedade futura que progride, a maioria das tarefas enfadonhas se tornarão trabalho de máquinas e os humanos terão apenas que passar por um pequeno esforço para usar os dispositivos. No entanto, esta pequena quantidade de trabalho não se limita ao que as mulheres devem fazer ou ao que os homens devem fazer, mas qualquer pessoa pode fazê-lo simplesmente de acordo com a conveniência, por isso quase não existe vocação para as mulheres.
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Se eu disser algo assim, os críticos certamente me reprovarão dizendo: “por mais que você queira eliminar a vocação feminina com suas ideias excêntricas, quando se trata de gravidez, parto e criação dos filhos, você não poderá evitar admitir que essas não são vocações femininas”. Essa é a verdade. Isto não é algo que possa ser feito por uma máquina, nem por homens, até eu só posso admitir que esta é a vocação de uma fêmea de alta classe. No entanto, eu, por apenas uma palavra, não consigo encontrar razões, como muitos críticos, para afirmar que as mulheres não são adequadas para desempenhar várias funções na política ou na sociedade, ou que não são aptas para as ciências e artes elevadas e profundas. A gravidez, o parto e a criação dos filhos são os principais deveres das mulheres, e até 80 a 90 por cento do trabalho reprodutivo cabe às mulheres, enquanto 80 a 90 por cento de outras tarefas cabem aos homens. Contudo, os negócios da vida numa sociedade civilizada não estão divididos em dois tipos: negócios reprodutivos e outros negócios diversos. Na minha opinião, existem três tipos de trabalho: trabalho reprodutivo, trabalhos do dia a dia e outros trabalhos nobres. Portanto, enquanto as mulheres, por uma questão de natureza fisiológica, deveriam partilhar 80 a 90 por cento do trabalho reprodutivo, os homens deveriam partilhar 80 a 90 por cento do trabalho do dia a dia (ou seja, alimentação direta, vestuário e abrigo). E quanto aos trabalhos nobres, homens e mulheres deveriam fazer cada um de acordo com sua aptidão. Por exemplo, os homens devem cultivar arroz, as mulheres devem ter filhos e tanto os homens como as mulheres devem usar o seu tempo livre para estudar literatura, arte, música, religião, filosofia, ciência, etc. Os críticos ainda podem dizer que, mesmo que aceitem minhas palavras, as mulheres provavelmente não terão muita energia sobrando, considerando que precisam dar à luz e criar filhos. Hoje em dia é assim. Contudo, as mulheres de hoje não têm energia sobrando para além de gerar e criar os seus filhos, tal como os agricultores de hoje não têm energia sobrando para além de cultivar arroz. Se acreditarmos que em uma futura sociedade em progresso, o uso de maquinário sofisticado e a união de muitas pessoas irá proporcionar aos trabalhadores agrícolas mais tempo de lazer, devemos acreditar que o trabalho reprodutivo também deverá ser realizado com equipamentos cuidadosos e com a ajuda de muitas pessoas, para que as mulheres que o realizam tenham bastante tempo e energia livres. Tente imaginar isso. Temos aqui uma mulher que, devido ao seu trabalho reprodutivo, está por um tempo isenta de todos os outros deveres. Ela também já está dispensada de cuidar do filho já um pouco mais velho, e sempre foi auxiliada por seus muitos amigos, homens e mulheres. Em particular, durante o parto, ela recebeu instalações e cuidados de enfermagem suficientes e, mesmo após o parto, recebeu muita ajuda na amamentação, além de outras coisas. Assim, uma vez que o período de amamentação tenha passado, o cuidado do bebé é normalmente dividido entre muitas pessoas, e esta mulher, mesmo que tenha cinco ou seis filhos, não deve se preocupar em não ter tempo ou energia para se dedicar a atividades nobres. Os críticos ainda podem dizer que deve-se esperar ter muitos amigos dispostos a oferecer ajuda. Na minha opinião, nem todas as mulheres têm muitos filhos. Algumas dão à luz apenas um ou dois filhos e outras não dão à luz nenhum. Portanto, é natural que estas mulheres utilizem os recursos que lhes restam para ajudar outras mulheres que têm muitos filhos. No entanto, no mundo de hoje, as pessoas estão tão ocupadas com as suas próprias vidas que não se importam com os outros. Em uma sociedade futura que progride, onde todos possam ter um certo conforto na vida, superando a competição entre as pessoas e a separação entre as casas, a natureza da humanidade certamente surgirá espontaneamente, e não é difícil imaginar que mulheres com mais recursos ajudarão aquelas que têm mais filhos. Além disso, do ponto de vista dos homens, é natural que, ao delegar o importante papel da reprodução às mulheres, se deva ajudá-las o máximo possível com os recursos disponíveis, minimizando assim seu esforço e sofrimento.
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Em suma, a vocação especial da mulher é simplesmente a gravidez, o parto e a amamentação. Além disso, não é de forma alguma algo que exija toda a força da vida de uma mulher. Além desta vocação especial, as mulheres também são obrigadas a cumprir as vocações dos seres humanos comuns juntamente com os homens. No entanto, nem eu posso deixar de reconhecer as diferenças gritantes entre o temperamento dos homens e das mulheres. É um fato inegável que as mulheres, como resultado inevitável da divisão do trabalho reprodutivo, tendem a diferir dos homens em certos aspectos fisiológicos. Embora eu acredite que a grande diferença de temperamento observada entre homens e mulheres seja um fenômeno temporário originado pelas instituições e costumes sociais, não posso deixar de reconhecer que deve haver, de alguma forma, certas diferenças fundamentais entre os sexos. Portanto, os homens ficam com os trabalhos do dia a dia, as mulheres com os trabalhos reprodutivos e ambos podem desfrutar de outros trabalhos nobres. Sempre me ocorreu que as mulheres com base em seu temperamento natural tendem mais para a arte ou para a música do que os homens, demonstrando assim uma diferença de gosto. A este respeito, então, porque não dizer que a vocação das mulheres está nas artes ou na música? No entanto, isto é algo que só deve ser dito após o desenvolvimento natural de uma sociedade livre no futuro, e não devemos fazer previsões ou afirmá-lo levianamente hoje. Em particular, creio que é verdadeiramente um pecado imperdoável quando os homens, com os seus preconceitos masculinos (mesmo que não estejam conscientes dos seus próprios preconceitos), fazem suposições sobre a vocação das mulheres. O que a Srta. Fukuda pensa sobre isso?
Primeiro de Janeiro de 1907, no. 1