A realidade da subjugação

Ôsugi Sakae

Tradução: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

Revisão e cotejo: Jessica Maki Kimura

HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

Texto original: "Seifuku no jijitsu". In: Kindai shisô, no. junho, Tóquio, 1913. Disponível em: Aozorabunko. Acesso em: 25/09/2024.

Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).

Na coletânea das obras de ChogyûXY, retirada de alguma obra de BrandesXY, encontrei a seguinte passagem:

Os nomes das, pelo menos, quatro grandes nações da Europa são, como um todo, nomes estrangeiros. O nome da França veio dos Francos que viviam na costa oeste do rio Reno e que não tinham conexão alguma com os ancestrais deste país, os antigos celtas. O nome da Inglaterra veio das tribos Anglo-saxãs que vieram de um território da antiga Alemanha e que não tinham nenhuma relação sanguínea com os povos deste país. O nome da Rússia tem origem na corruptela da palavra Ruotsi da língua de um dos povos que viviam mais ao norte, um dos grupos étnicos Escandinavos. O nome da Prússia veio de uma tribo bárbara eslava chamada Prússia e, por volta do fim do século XII, passou a ser domínio alemão.

Esta realidade, por vezes, terá alguma relação com o que registrarei aqui, outras vezes, talvez, nem tanto. Contudo, para mim, depois de ter lido esta passagem, passei a ter uma forte impressão de que isso se trata de uma profunda realidade social.

A subjugação! Foi o que bradei. A sociedade, pelo menos o que é entendido hoje por sociedade, começou em subjugação.

Marx e Engels, no início do Manifesto comunista, diziam: “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias têm sido a história das lutas de classes”. Mas antes, ou até mesmo concomitantemente, a essa luta de classes houveram as lutas de tribos. É, portanto, aí que a realidade da subjugação se manifesta.


Enquanto a espécie humana ainda se encontrava no limiar entre o animal racional e o irracional, cogita-se que ela provavelmente vivia em algum lugar dos trópicos. E muitos fatos apontam para o sul da Ásia como o local que presenciou a origem da espécie humana.

Os humanos desse primeiro momento, enquanto viviam como animais [irracionais] em uma terra de grande fartura natural e clima quente, conseguiram se multiplicar muito rapidamente ao empregar algumas modificações no meio em que viviam e por possuírem inteligência suficiente para enganar ou se proteger de predadores. Foi assim, então, que as populações de grupos que surgiram destes relacionamentos consanguíneos cresceram e começaram a migrar para todas as direções em decorrência dos encontros e colisões. Desta maneira, durante muito tempo, a paz, harmonia e conforto mútuo continuaram a reinar. Esse período é conhecido, desde muito, como a Idade de Ouro.

Alguns destes grupos, indo cada vez mais longe, migraram até mesmo para ilhas e, ao não terem atritos com outros grupos, consequentemente, não tiveram nenhuma preocupação quanto a isto e continuaram levando sua existência pura como meio-humano e meio-besta. As comunidades originárias que ainda temos pelo mundo são um exemplo destes povos. No entanto, os grupos que não se afastaram tanto assim do centro, ao crescerem em um ritmo muito acelerado, começaram a ter atritos e conflitos entre si. É, então, neste ponto que a paz que até então reinava e a vida em liberdade que levavam como meio-humanos e meio-bestas chegam ao seu fim e muitas civilizações começam a surgir. A História tem seu início.


Durante esse tempo, cada um destes grupos, tendo perdido as tradições e os traços de sua origem em comum, passaram a ter religião, costumes e línguas diferentes, além de formarem grupos étnicos completamente diversos. E então sempre que estes grupos entravam em contato ocorriam colisões violentas e guerras e, assim, tornavam-se inimigos brutais.

Essa tendência proporcionou um estímulo poderoso para as invenções, principalmente aquelas voltadas para a produção de métodos de ataque e defesa. Desde sempre as guerras são decididas não pela coragem e bravura individual, mas sim pelo maior ou menor grau de desenvolvimento bélico. Destarte, o espírito de guerra se desenvolveu. Ambiciosos chefes de tribos começaram uma violenta disputa de conquista.

Gumplowicz e RatzenhoferXY argumentam habilidosamente que é através dos conflitos entre estes grupos étnicos diversos que a sociedade é criada. O primeiro passo nestes conflitos é a conquista de uma tribo pela outra. A tribo que tem maior poder bélico e possui melhores estratégias de guerra toma a vitória para si e torna-se a conquistadora. À outra tribo, por sua vez, é relegado o status de conquistada.

Através desta conquista duas tribos completamente diversas vão passar a ter um contato muito próximo. No entanto, a assimilação dessas tribos é impossível. A sociedade acabará, por assim dizer, dividida em dois pólos. Os conquistadores sempre vão desprezar os conquistados. Vão escravizá-los de todas as formas possíveis. Os conquistados, sem outra escolha, se submetem aos conquistadores, mas não reconhecem nada mais além da violência destes últimos. Assim, estas duas tribos hostis e antagônicas uma à outra formam os dois pólos da sociedade.

No entanto, a desigualdade entre estas duas tribos vai muito além da desigualdade de status. Como já disse, estas duas tribos são, em primeiro lugar, completamente diferentes. Eles usam línguas diversas. Adoram a um deus diferente. Tem um estilo e uma forma de adorar diversas. Possuem modos, costumes e instituições diferentes. A tribo conquistada preferiria ser exterminada a perder qualquer uma destas características. Os conquistadores desejavam o desprezo absoluto por tudo que seus súditos possuíam. No entanto, não conseguiam assimilá-los em seus domínios.

Por esta razão, ao invés da harmonia destes dois extremos, surgiram vários sistemas de sociedade que visavam a efetivação da verdadeira subjugação do conquistado pelo conquistador.


As dificuldades de usar constantemente da força militar contra todas as ações dos conquistados, as despesas e os fracassos parciais tornaram-se finalmente um grande fardo para o conquistador. Em um primeiro momento, estavam tão orgulhosos de sua vitória que puniam severamente todos os rebeldes que se opusessem ao poder na medida que fossem encontrados, mas, com o tempo, controlar um por um destes revoltados se transformou em fastidiosa tarefa e uma forma de governo coletivo fez-se necessária.

Em outras palavras, a fim de manter sob controle os crimes que eram cometidos mais comumente foi inventada uma lei geral. Quando perceberam que este novo método era altamente econômico, estenderam o alcance desta lei geral às outras áreas mais amplas de atos. Assim foi lançada a base para o que hoje conhecemos como Estado de Direito. Então, se essa lei não fosse violada, uma certa liberdade seria concedida aos conquistados. Trocando em miúdos, passou a ser reconhecido que a observação destas leis é um dever dos subjugados ao tempo em que qualquer ato que não seja contra esta lei é considerado um direito.

Concomitantemente, ocorreu a chamada educação da classe conquistadora. Para manter a desigualdade de status entre as duas classes, a noção de que a classe conquistada é inferior em todos os aspectos deve, por todos os meios, ser incutida na mente da própria classe conquistada. Se as classes conquistadas começarem a abrigar nem que seja a mínima dúvida quanto a isso, causaria uma grande perturbação à paz e à ordem da sociedade. Para impor esta noção, várias políticas foram levadas a cabo. Diversos meios e estratégias de engano sistemático, que são a origem e a base da chamada educação nacional, foram colocados em prática.

No entanto, isto não é suficiente para governar. Originariamente, algumas tribos foram conquistadas por acaso ou porque eram belicamente fracas. Em outro aspecto, os conquistados podem até mesmo terem sido melhores, superiores. Portanto, os conquistadores devem pedir auxílio a alguns dos conquistados para escapar da dificuldade de governar um povo cujos interesses são muito diferentes dos seus próprios. Alguns dos conquistados, ao ganhar alguns poucos privilégios, responderam facilmente ao pedido de auxílio. Ou seja, os intelectuais que pertenciam à classe dos conquistados se juntaram à classe dos conquistadores e cooperaram em seu empreendimento conquistador. E, assim, os direitos e deveres tornam-se um pouco mais recíprocos entre as duas classes, ou, para ser mais claro, torna-se um pouco mais recíproco entre a classe dos conquistadores e a essa pequena parcela da classe conquistada.

Esta reciprocidade era o meio perfeito para enganar a classe conquistada que ainda não tinha caído completamente na desigualdade. Em outras palavras, os intelectuais diziam: “Observem! Agora Nossa tribo não é mais somente a tribo da classe dos conquistadores! Eles já reconheceram o seu erro e concederam a nós, os conquistados, o sufrágio! Todos os homens são iguais perante a lei!”.

Além disso, várias circunstâncias forçam o conquistador a fazer concessões e o conquistado a cair em um orgulho e uma resignação vazios. Então, entre as duas classes, é estabelecido gradualmente um compromisso superficial.

Não tenho muito tempo para falar detalhadamente sobre a realidade dessa subjugação no presente momento. Mas o que disse acima é um fato que provavelmente nenhum sociólogo honesto pode negar.


A História é complexa. Mas existe uma simplicidade que torna esta complexidade consistente. Por exemplo, existem várias formas de subjugação. Mas desde sempre, em todas as sociedades, existe nas extremidades uma classe de conquistados e uma classe de conquistadores.

Parafraseando o Manifesto Comunista, diria: “O homem livre e o escravo na Grécia, a nobreza e a plebe em Roma, na Idade Média os senhores feudais e os servos, os sindicalizados e as mãos de obra contratada”. E até mesmo na era moderna a sociedade foi dividida em dois pólos, os conquistadores, capitalistas, e os conquistados, trabalhadores.

A sociedade progrediu. Portanto, os meios de subjugação também se desenvolveram. Os métodos de violência e engano eram cada vez mais habilmente organizados.

Governo! Lei! Religião! Educação! Moralidade! Exército! Polícia! Tribunais! Congresso! Ciência! Filosofia! Literatura! E todas as outras instituições sociais!!

As pessoas das outras classes que estão entre estes dois extremos, os conquistadores e os conquistados, à semelhança dos intelectuais de outra hora, consciente ou inconscientemente, acabam tornando-se cúmplices e apoiadores deste sistema de violência e engano.

Essa realidade da subjugação, tanto no passado quanto no presente, em um futuro próximo e até mesmo daqui milhares ou centenas de milhares anos, é a realidade fundamental das sociedades humanas. Enquanto não tomarmos clara consciência desta realidade não nos será permitido compreender corretamente nenhum aspecto dos fatos sociais.

Ó homens das letras e artes, que se vangloriam de sua sensibilidade e inteligência e clamam pela supremacia do poder individual! A partir do momento que vossa sensibilidade e inteligência não tocam na questão desta realidade da subjugação, tampouco se rebelam contra esta, todas as obras que os senhores produzem não passam de brincadeira, não passam de passatempo. Isto não passa de uma resignação, quando tentamos esquecer o peso desta realidade que nos oprime mesmo no dia a dia. Um elemento poderoso para a enganação sistemática.

A estética estanque que, por diversão, nos deixa anestesiados já não nos diz mais respeito. Aspiramos uma estética dinâmica que ao mesmo tempo que nos conduza ao êxtase nos leve também ao entusiasmo. A arte que demandamos é uma arte que se oponha a esta realidade, uma arte criativa e permeada por uma estética do ódio, uma estética da rebelião.

Notas