Digressões a caminho da morte

Kan'no Sugako

Tradução: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

Primeira publicação da tradução: Pinto, F.C.G. A terra do sol negro: a representação da melancolia em escritos carcerários japoneses, vl. 2. Dissertação de Mestrado, USP, p. 19-49, 2024. Disponivel em: Banco de dados USP. Acesso em: 07/11/2024.

Texto original: Shide no michikusa. Manuscrito, Tóquio, 1911. Original ainda não disponível para consulta.

Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).

Sumário



O que aqui vai escrito é o registro profundamente sincero, sem adornos, dissimulações ou fingimentos do dia de hoje em que recebi a sentença de morte até o dia em que subirei no cadafalso.

18 de janeiro de 1911 (Meiji, 44),
(Presídio Feminino de Tóquio)

Dia 18 de janeiro de 1911 (Meiji, 44), nublado

Há muito já estava preparada para a pena capital, minha única preocupação dia e noite era saber, isto sim, quantos dos meus 25 companheiros de acusação poderiam ser salvos. Embarcaram-me na carruagem da prisão antes do meio-dia, da janela conseguia ver, sob uma réstia de sol iluminando o percurso pela cidade, pessoas com espadas e solenemente em guarda. Pareciam pressentir o veredicto do julgamento. Eu esperava, impaciente, a abertura da corte que teria início à uma da tarde.

Chegou a hora. Subimos para o segundo andar, passamos pelo terceiro e descemos mais uma vez para o segundo. Não só os corredores que percorremos até o tribunal da Suprema Corte estavam, como esperado, fortemente vigiados, mas também a corte em si durante o julgamento. A Suprema Corte estava entupida de gente, de advogados aos repórteres até os observadores e demais pessoas, todos, sem exceção, se espremiam uns aos outros com força.

Eu que tenho vertigens com facilidade, após subir incontáveis degraus e naquele tribunal asfixiante e de ar saturado, me senti tonta, mas, após me acalmar um pouco, olhei meus companheiros de acusação e todos eles, com uma aflição estampada no rosto, guardavam silêncio como se temessem até mesmo sorrirem um para o outro.

[Uma alcateia de leões
famintos, garras aparadas e presas cerradas:
25 bodes expiatórios
como nunca se viu]

Pouco depois, os juízes apareceram no tribunal entrando pela porta principal da esquerda. Morte ou vida? O destino de 26 pessoas, por fim, se aproximava eminentemente. Muitos dos réus certamente tinham o peito a manear.

Assim que o escrivão, como de costume, terminou de ler os nomes dos réus, Tsuru, o presidente do júri, após algumas palavras de aviso, começou a ler, entre um copo de água e outro para umidificar a garganta, os longos argumentos por trás da sentença postergando, assim, o veredicto para o fim.

Na medida em que lia, na medida em que escutávamos o que era lido, ficava cada vez mais escancarada a escandalosa manipulação e distorção dos fatos com que buscava arbitrariamente imputar ao Artigo 73 até mesmo os que eram creditados como inocentes; minha aflição, diante disto, pouco a pouco foi crescendo e por fim submergiu meu peito como se fosse um tsunami. Ainda assim, até que ele chegasse ao veredicto final, eu rezei para que a sentença fosse branda, nem que seja para uma única pessoa sequer. Mas, ah!, já não havia mais nada que pudesse ser feito... Exceto por Nitta, condenado a onze anos, e por Niimura Zenbei, condenado a oito, a cada um de nós dos outros vinte e quatro só uma coisa: a execução!

Na realidade, desde o início eu temia por este desfecho, mas a investigação do tribunal, inesperadamente, seguiu tão meticulosamente que cheguei a ter a esperança de que talvez pudéssemos receber um julgamento, relativamente, justo. Ao escutar o inesperado veredicto fui atacada por uma fúria e uma indignação tão grande que o sangue ferveu, furioso, como fogo por todo meu corpo. Minha frágil carne trepidava.

Ah!, meus pobres amigos!, meus pobres companheiros! Mais da metade deles foram envolvidos nesse infortúnio por causa de cinco ou seis de nós. Acabaram por nos acompanhar neste inacreditável abate só porque estavam envolvidos conosco. Foram lançados a morte só porque eram anarquistas.

Ah!, meus pobres amigos!, meus pobres companheiros!

Eu não era a única chocada com a grande imprevisibilidade dos acontecimentos. Todos os advogados, os guardas da prisão, os policiais que estavam presentes durante estes dezesseis dias de julgamentos, todos que sabiam a realidade dos fatos, certamente ficaram chocados com a escandalosa injustiça deste veredicto. O choque estampando no rosto de todos era claro e translúcido como a água. Paralisados por uma inelutável indignação e sem articular voz ou palavras, ficaram em silêncio, um sorriso frio se desenhou nos lábios dos réus.

Ah!, Sagrado tribunal! Justo tribunal! Governo japonês! País civilizado do oriente!

Execute como bem entender sua tirania!  Que haja a injusta brutalidade!

Não precisamos ir muito longe atrás de precedentes, temos fresco em nossas memórias o Caso da Bandeira Vermelha. O que mais poderíamos esperar após este despotismo, este injusto veredicto do tribunal?

Encravem em suas memórias, meus companheiros!, camaradas de todo o mundo!

Eu queria consolar meus companheiros de julgamento. Mas, era tamanha a minha indignação que, de pronto, não consegui achar nenhuma palavra apropriada. Só consegui repetir sozinha “que ultrajante e injusto julgamento!”.

E então, de repente, um chapéu de palha trançado foi colocado sobre minha cabeça. Fui a primeira a ser retirada da corte pois seguíamos na ordem inversa a que entramos. Me levantei. Ah, meus amigos! Meus amigos que não voltarei a ver! Meus amigos que subirão no mesmo cadafalso que também me colocarão! Dentre eles alguns certamente guardam mágoas de nós. Mas, no fim das contas, todos que estão aqui nesta corte como réus são meus amigos. Adeus, 25 pessoas! Adeus, 25 sacrifícios! Adeus!

“Adeus, pessoal!”

Foi somente o que eu consegui dizer.

“Adeus…”

“Adeus…”

Gritaram às minhas costas. Após eu sair da corte [cinco ou seis passos] escutei [um grito] uma voz gritando:

“Viva!”

Certamente era um dos fervorosos anarquistas gritando “Viva o anarquismo!”. Quando subi o primeiro degrau da escada de pedra, uma voz me chamou em um grito:

“Kan’no!”

Ao voltar à prisão provisória da Corte, comecei a recuperar a calma. Me senti um pouco envergonhada por ter ficado tão indignada.

Injusto julgamento!

Após tudo que passei não era algo com o qual eu deveria ficar surpresa. Pensando a partir de todas as experiências que tive, um resultado como este era mais do que esperado. Não foi exatamente por termos sofrido com um julgamento injusto, com um poder tirano que começamos a planejar uma conspiração como a de agora? O ápice do meu mais grave erro foi ter acreditado que meus companheiros poderiam ser salvos por este poder, que eu não reconheço, só porque a investigação estava sendo feita meticulosamente. Lamento muito, ao ponto de não ter sequer palavras de saudação para a maioria de meus companheiros de julgamento, mas este era também, em certo aspecto, o destino destas pessoas. Em se tratando de sujeitos que tranquilamente se autodenominavam anarquistas, é razoável supor que este nobre sacrifício não seja inconsciente. E ainda, que se autoconsolarão. Mas agora, infelizmente, não temos outra opção senão pedir-lhes que desistam.

E ainda assim, enquanto pensava nisto, [uma frágil humana como eu] eu não conseguia deixar de sentir uma [desagradável] lástima terrível.

A carruagem da prisão finalmente chegou. Eu deixei a mal iluminada prisão provisória. Da pequena janela da fileira dianteira vi o rosto injetado de sangue de Takeda Kyûhei despontar e gritar:

“Adeus!”

Eu também respondi: “Adeus!”. E escutei, então, uma voz vinda de algum lugar dizendo também o mesmo “Adeus!”. Quanto sentimento está contido nessa pequena palavra!

O carro da prisão banhado lateralmente pelo sol do entardecer seguia pelas ruas da cidade, ruas que eu nunca mais voltaria a pisar, rumo a Ichigaya.

Finalmente chegou.
O dia em que as flechas negras do deus destino
encontrarão minha testa
finalmente chegou!

Os irregulares fios do destino
que vinha enrolando
em meus dedos finos
Por fim esgotaram-se.

Dia 19, nublado

Apesar de ainda estar com muita raiva daquele injusto julgamento, acho que estava muito cansada de todos os outros dias e dormi profundamente a partir das primeiras horas da noite. Por isso hoje, a despeito do clima nublado, me sinto renovada.

Recebi autorização para poder enviar como memento meu quimono formal de seda e com o brasão para Sakai no Mâbô, meu quimono de seda de peça única para Hori Yasuko e meu manto preto e quimono forrado de musselina listrada para Yoshikawa Morikuni.

Aturdida e estupefata! Escrevi cartões postais para Isobe, Hanai e Imamura, meus três advogados, expressando meu atordoamento com o veredicto. Também escrevi para Sakai, Hori e Yoshikawa informando dos envios.

Recebi cinco revista de Kôtoku e três de Yoshikawa.

Ontem escureceu enquanto escrevia meu diário e conversava com os investigadores. No fim, não consegui ler uma página sequer das revistas.

Pela tarde o capelão Numanami apareceu. Ele falou sobre como um dos meus companheiros de julgamento, Mineo, após receber a sentença de morte e aceitar pela primeira vez a virtude da fé na salvação pela crença não demostrou nenhum pequeno sinal de insegurança. E então me recomendou também procurar conforto em âmbito religioso. Eu respondi que não poderia estar mais em paz do que estou agora. [Para um verdadeiro anarquista] parece uma piadinha que alguém que se diga anarquista e contra todos as formas de poder, ao se deparar com a morte eminente, se volte amedrontado para Amida Buda buscando salvação nesta outra forma de poder.

No entanto, as palavras de Numanami como religioso, como capelão, fazem todo o sentido. Mas eu tenho cá para mim minhas próprias convicções e meu próprio consolo.

Nós, no fim das contas, navegamos neste vasto oceano que se estende a frente dos pensamentos e tendências em voga no mundo e, infelizmente, acabamos colidindo em recifes desconhecidos. No entanto, este sacrifício é um degrau que alguns devem vencer. Novas rotas de navegação somente são completamente abertas após muitos naufrágios e viagens tortuosas. É assim que podemos alcançar esta outra margem ideal. Foi somente após a vinda de Jesus de Nazaré e depois de muitos sacrifícios serem feitos que o cristianismo se tornou uma religião universal. Tendo isso em mente, [acho que] no fim, o sacrifício de tantos de nós não é tão relevante assim.

Estes sentimentos, de que falei no final do tribunal, estão sempre comigo. Estou confiante que nosso atual sacrifício de forma alguma será inútil, com certeza terá algum significado. Portanto, acredito firmemente que até o último instante no cadafalso, vou cobrir minha morte de um sentimento precioso de autorrespeito e pelo belo consolo de ter me sacrificado pela causa e, assim, alcançarei uma morte pacífica, livre de qualquer inquietação ou angústia.

Pela noite Tanaka, o diretor da prisão, apareceu. Fiquei contente com a notícia de que os acusados estavam calmos além do esperado. [Ele não me recomendou nada parecido com o que Numanami tinha recomendado] e conversou comigo sobre como havia casos em que condenados à morte tinham cumprido sua pena admiravelmente.

Ainda me consultei com ele sobre meus desejos acerca de meu caixão e de como eu estaria vestida dentro dele para que, em caso [do tipo] dos leais servos do imperador e os patriotas resolvessem revirar e violar meus restos mortais, eu não me encontrasse em uma situação muito deplorável. [Se não for possível fazer como eu gostaria que fosse feito, irei solicitar a algum conhecido meu na sociedade e fazer com que assim seja feito.] 

Tanaka me deixou Yorokobi no ato, e Numanami me deixou Tan’nishô e o Shinkô no yotaku yôryaku. Todos eles eram panfletos.

Dia 20, nevando

Era como se, durante a noite, o mundo tivesse empratado: a neve se acumulou nos topos dos pinheiros e nos galhos secos dos ciprestes, envergando-os. Desde o início do ano nevou espaçadamente umas duas, três vezes, mas sempre só ao ponto de acumular um tantinho de neve e novamente sair o sol. A nevasca de hoje, no entanto, [parece ser torrencial e as infinitas gotas que caem daquele céu fragilmente esbranquiçado], não parece ser do tipo que para rapidamente. Neve, neve, acumule, acumule, trinta centímetros, um metro. Enterre esta vil Tóquio em neve como se fosse uma cidade subterrada por cinzas. Faça dela mais uma camada de solo.

O que meus companheiros de julgamento do outro lado da cerca no presídio masculinos estariam pensando? Em que tipo de pensamento estariam absortos ao olhar essa neve das gélidas grades da prisão de menos de um metro?

[Neve! Tenho várias memórias que vêm da neve]

[A neve que observava com minha mãe na casa de campo. A neve em que brincava com meu pai e minha madrasta em Arima. A neve que caia enquanto passava o tempo conversando com meu irmão mais velho e minhas irmãs caçulas em Sumiyoshi.]

[Neve de Arima, neve de Hakone, neve de Sumiyoshi, neve de Arayama, neve de Ogigahama, neve de Gyoen, neve de Higashiyama, neve de Kashiwagi, neve de Sugamo, neve de Sendagaya e, finalmente, neve de Kamakura e Yugawara]

[Envoltos nesta neve de minhas memórias estão desde pessoas queridas que já não estão mais neste mundo até as imagens perfeitamente preservadas das várias pessoas que amo e de meus muitos amigos. Neste momento, ao olhar fixamente por estas grades da prisão e ver a neve caindo sem cessar agitada e docemente, as lembranças de todas as vezes que ergui o rosto e olhei para este mesmo céu com os mais diversos sentimentos e de todos os anos que se passaram vieram à tona e eu senti muito gentilmente em meu peito um misto de algo como felicidade e tristeza, de uma espécie de emoção que não dá para explicar.]

Neve! Tenho várias memórias que vêm da neve.

Neste momento, ao olhar fixamente por estas grades da prisão e ver a neve caindo sem cessar agitada e docemente, as lembranças de todas as vezes que olhei para este mesmo céu com os mais diversos sentimentos e de todos os anos que se passaram vieram à tona e eu senti muito gentilmente em meu peito uma espécie de emoção, um misto de algo como felicidade e tristeza.

[Ah, neve! Neve de Arima, neve de Hakone, neve de Sumiyoshi, neve de Arayama, neve de Sugamo, neve de Sendagaya e, finalmente, neve de Kamakura e Yugawara]

Envoltos nesta neve de minhas memórias estão coisas tristes e coisas felizes. Nas tramas destas coisas felizes e tristes estão desde pessoas queridas que já não estão mais neste mundo até as imagens das várias pessoas que amo e de meus muitos amigos. Imagens estas perfeitamente preservadas e alinhavadas nessa trama de tom carmesim e roxo vibrante, mas também tingida com um melancólico azul-água e cinza.

Se paro para pensar, sinto saudades, mas também sei que as coisas são fugazes. E, no entanto, tudo está agora no passado longínquo. Eu, que desconheço o que o amanhã reserva, não estou em posição de ficar tranquilamente saboreando [coisas do tipo] a diversão das minhas reminiscências. Não, mesmo que tivesse essa folga, ela é muito preciosa. Eu preciso ler, preciso escrever, preciso pensar nas coisas necessárias para enfrentar o que está a minha frente. Meus pensamentos estão completamente ocupados por tudo isto. A minha maneira, sinto um certo estranhamento ao pensar em porque estou tão inquieta com isso tudo. Seria porque tenho uma pilha de livros empilhados a minha frente? Por que ainda não consegui me encontrar com as pessoas a quem gostaria de pedir algumas coisas? Ou seria porque não escrevi meu testamento para meu irmão caçula? O pessoal continua me dizendo que eu não mudei nada e que pareço calma e cheia de energia, então por que mesmo fazendo as coisas diligentemente nada parece progredir um pouco que seja? Mas, bem, tanto faz. Vou deixar feito o que estiver ao meu alcance e o que sobrar eu abandono da forma que estiver. [Se são coisas abandonadas, não devem ser coisas que valham muito no fim das contas.]

Dois ou três dias atrás Sakai me escreveu um cartão postal que dizia:

  Recebi sua carta do dia quatro. Desejo ardentemente que você seja capaz de escrever seu diário o mais honesta e corajosamente o possível.
  É louvável que você não tenha parado os estudos de inglês. Tem um dito que fala algo nas linhas de se você tem um dia de vida, você tem um dia de trabalho. Todos nós estamos sujeitos a morrer amanhã, mas, ainda assim, continuo estudando pouco a pouco o francês e o alemão como se tivesse a certeza de que vou viver até meus sessenta anos. Melhor que matar o tempo jogando Go, é fazê-lo estudando outra língua, não é? Mas, mesmo que eu viva até meus sessenta, meu futuro é só de dezoito anos. Não sei quantos dias ou meses o futuro ainda lhe guarda, mas, se olharmos da perspectiva do imenso e gigantesco universo perpétuo, tudo isso não passaria de um breve instante de vida.
  Não é divertido como, mesmo diante disso tudo, a gente está aqui agradavelmente falando amenidades em trocas de cartas como esta?

Certamente é tudo muito agradável. Desde setembro do ano passado eu venho, agarrada à um dicionário, me apressando a aprender um pouco que seja do nível inicial da língua inglesa, mas não progredi muito. Até o momento eu só terminei um terço do Reader V. [Sem terminar o ensino básico], estudei com o dinheiro do meu trabalho e, finalmente, cheguei no nível de conseguir ler uma revista em inglês. É natural que eu, [com uma história de passado miserável, evidentemente], não chegue aos pés de quem passou pelo ensino básico, mas o que mais me incomodava nisso tudo era o fato de não possuir nenhum conhecimento de línguas. Diante disso, quis me tornar apta a ler ao menos um pouco de inglês. Não foram nem uma nem duas vezes que comecei a estudar, mas por conta de doenças e diversas outras coisas, sempre me deparava com um empecilho e, nisso, chegamos no dia de hoje. Evidentemente pode ser que tenha faltado coragem e persistência de minha parte para vencer esses empecilhos, mas também houve ocasiões em que nada poderia ser feito. Dessa maneira, foi só no fim de setembro que entrou em minha cabeça a ideia de querer aprender a ler nem que seja passagens de textos fáceis em inglês. [Comecei com o Reader III] comecei com o Reader III, mas, chegado o dia de hoje, apesar de não saber ao certo quando serei executada, acho que provavelmente não tenho lá tantos dias assim e, portanto, [aparentemente também desta vez], no fim, tudo terminará sem que eu tenha aprendido o inglês. É uma pena, mas não tem o que ser feito.

Não era necessário nem mesmo que Sakai me dissesse, este diário vai ser escrito sem qualquer falsidade ou adorno para revelar a nua e crua Kan’no Sugako.

[Vou registrar aqui dois ou três tanka do meu diário anterior]

[Tempo e espaço sem fim,
pelo que lutam
esses pequenos seres
dentro de tua imensidão?]

[Em sacrifício
por uma esperança mínima
ofereço meu corpo mínimo
nascido nesta ilha ainda mais mínima]

[Oh, país!
Sentes orgulho ao derramares o sangue
de milhares de ardorosos espíritos
em cima de um ínfimo mapa]

[Como amuleto:
réstia de luz solar em curso
que entra por estas grades da prisão.
Mais um dia viva]

[Sei bem que
encaro esse abismo sem fim
mas me apresso em linha reta
sem olhar para trás]

[Imóvel nesta noite fria
em minha cama gelada
quantas vezes escutei
o furtivo som dessas espadas]

[Mais da metade de um dia
deitada de costas e assistindo
por essa pequena janela
o cipreste seco tremer com o vento]

[Como um monge virtuoso
que vem das montanhas nevadas
esse Ginkgo de inverno
emana uma aura sagrada]

[Debaixo destes restos
de cinzas incandescentes
sobe uma fumaça longa e esguia:
Paixão abjeta.]

[Quando penso que,
enfim, é chegado o último dia
desta vida sem fim
dou um sorrio]

[Olho para mim mesma e pergunto-me,
oh, valente, valente criança da revolução!
Por acaso é você também
a frágil, frágil criança das lágrimas?]

[Não perguntes por onde anda
a semente que caiu neste campo
aguarde os dias de primavera
em que soprarão os ventos do leste]

[Lado a lado escorados no guarda-corpo
escutávamos a canção dos marinheiros à beira mar.
Há oito milhas sobre as ondas
flutuava Hatsushima]

[Ao escurecer
o ferido chora quando
tanto as velhas quanto as novas
feridas começam a doer]

[Entre idas e vindas
vi pelo chapéu de palha
o rosto pálido despontando
na terceira janela]

[Os olhos diziam:
me perdoe.
Os meus, no entanto,
semelhavam o gelo do mar do norte]

[Durante 200 dias
experimentei amaldiçoar
luz e sombra que entravam
e saiam pelas minhas grades da prisão]

[Observo sombria
as morosas nuvens carregadas
navegando pelo firmamento.
Corvos do crepúsculo]

[Um casal de sapinhos
se divertem
numa tarde de outono
no oco de uma cerejeira]

[Os pilares das palavras
de meu peito
colapsam um após o outro.
Sopram os ventos de outono]

[O dia em que disse
vejam eu sepultar-me aos 22 anos
rompi as cordas do violino
e chorei]

[O coração separado
de leste a oeste pelo mar
você e eu iremos
assim para o túmulo]

[Uma chuva de pétalas de cerejeiras
cai silenciosamente pelo caminho de pedra
do Daihikaku.
Repicam os sinos do templo]

Pela tarde, recebi um cartão postal de Sakai, cartas de Tameko, Yoshikawa e de Kôtoku Komatarô. Gostaria de tentar escrever sobre algumas impressões que tive após ler, mas não estou muito disposta para tanto e, por isso, [vou parar] paro por aqui.

Decidi registrar meus pensamentos como eles vieram, mas, após reler, o texto parece tão incoerente e confuso, como se tivesse enfileirado parvoíces sem sentido, que tomo aversão. As vezes penso que talvez seja melhor não escrever mais nada.

Dia 21, ensolarado

O sol brilhava sobre a neve dos pinheiros, como se tivesse sido pintado por Ôkyo, em um indescritível requinte.

Quando Sakai inaugurou a Baibunsha, parece que o primeiro pedido foi de uma estudante de alguma universidade feminina solicitando que escrevesse sua monografia. É como ler um aspecto da sociedade moderna, cômica e frívola.

Parece que Sakai Tameko está frequentando a escola de parteiras. Não sinto nada além de apreciação diante da coragem de, aos quarenta anos, começar proativamente a estudar. Ao mesmo tempo, também admiro Sakai por, suportando a falta de liberdade que isso vai gerar, apoiar sua esposa a ser independente e autossuficiente. Coisa que a maioria dos homens teria dificuldade em imitar. [Realmente, uma ação digna de um pesquisador especialista acerca das causas femininas.]

A senhora Mãe de Kôtoku, que morreu no dia 28 de dezembro após apenas dez dias de cama com [parece] uma malária que acabou se desenvolvendo em pneumonia, quando veio à Tóquio em novembro para visitar Kôtoku na cadeia, também tinha intenção de me ver. Mas como Chiyoko estava junto, ela se conteve e voltou para casa sem falar comigo. [Hoje] mesmo que eu e Kôtoku tenhamos rompido as relações por um momento, de qualquer forma, fomos como mãe e filha. Achei desumano da parte dela e me senti, momentaneamente, desconfortável em saber que, apesar de ter vindo todo caminho até Tóquio, não se deu ao trabalho de vir me ver.  No entanto, após receber a carta de Komatarô e a carta de Tameko que dizia:

Ela estava preocupada com você naquele momento e contou até para mim diversas coisas. Ela juntou e embalou com muito carinho o álbum de foto daquela caixa, fotos suas e dela própria, e levou tudo para casa.

Ou mesmo aquela parte da carta que recebi outro dia da sobrinha de Kôtoku, Takeo, que dizia assim:

  Minha avó, em vida, sempre falava da senhora, tia. Me contou sobre como você é verdadeiramente gentil e carinhosa.
  E naquele outro dia em que ela foi até Tóquio, como estava muito ocupada, voltou para casa sem ter conseguido encontrar com a senhora, tia. Ela parecia muito consternada com isso....

Após ler várias palavras deste tipo, [eu, ao contrário, senti muita pena. No fim, o que me restou foi a forte impressão que aquela pessoa de natureza tão carinhosa me deixou], mesmo que, por exemplo, eu tenha sentido remorso por um momento, [acho que depois de tudo isso, é injustificável] acho que é injustificável. Mesmo que corte os laços com Kôtoku, [ela será sempre só uma pessoa querida] ela será sempre uma pessoa querida. Fomos mãe e filha, perdemos o laço, e, finalmente, fomos separadas sem possibilidade de reencontro. Quando penso [nas pessoas que] no passado em que era consolada continuamente por cartas e pequenos pacotes dela, tudo isso parece nada mais que um sonho.

Ah, a vida é sonho. O tempo é túmulo. Tudo pouco a pouco vai sendo sepultado.

E eu que estou chorando as lembranças dos que já foram sepultos, logo também serei enterrada.

Escrevi um cartão postal para Masuda e outro para Tameko, para Takeo escrevi uma carta.

Parece que estou gripada e minha cabeça dói, mas ainda assim tomei um banho. O banho é uma das alegrias da vida na prisão. Visitas, correspondências e banhos. Para alguém sem família e sozinha no mundo como eu, visitas e correspondências, naturalmente, são escassas e, portanto, a cada cinco dias eu desfruto meus banhos mais do que qualquer outra coisa.

Do céu azulado réstias quentes de sol invadem minhas grades da prisão perpendicularmente. Me sentindo relaxada depois do banho, sento-me na frente de minha mesa e [sentindo] nessa hora me vem um indescritível deleite. Penso em como seria feliz se meu corpo só derretesse do jeito em que se encontra e eu me entregasse ao sono eterno.

Yoshikawa me escreveu em sua carta que:

Neste exato dia deste exato mês no ano passado eu saia da prisão, hoje é como se fosse a comemoração deste um ano. Dos três que saíram comigo neste dia, Higuchi está cheio de vigor. Por outro lado, eu, de minha parte, continuo só levando a vida. Oka, por sua vez, voltou mais uma vez para sua velha toca em Chiba e está sofrendo com o frio e com a fome.

Pelo que Oka foi preso? Ah!, serão os certos os que venceram e os errados os que fracassaram?

Ah, Morioka Eiji, que perdeu a cabeça e atirou seu corpo em um poço velho em Dairen. Ah, todos aqueles que, temendo a perseguição do governo, trocaram suas convicções como se fossem sandálias rotas por um lugar seguro para depositar seu corpo! Oh, quão infeliz é este destino, quão frágil é o coração das pessoas! Os que vão fugir, que fujam, os que vão morrer, que morram! Novos brotos só nascem depois que grandes árvores caem. Na primavera do mundo das ideias, aqueles que, como nós, carregam por conta própria os papeis de pioneiros, não precisam de maneira alguma se voltar para esse outono e inverno do passado. Para frente, é para frente que temos que seguir. Basta que nos precipitemos rumo a este brilhante futuro de esperança.

Parece que a vigilância está cada vez mais rígida para com nossos companheiros na sociedade. Pensando a partir do resultado deste injusto julgamento, não há dúvidas que o governo está tramando usar os acontecimentos atuais como oportunidade para intensificar ainda mais as formas de repressão. Ah, nos reprima, nos reprima! Por acaso desconhecem o princípio que para toda pressão existe uma força de resistência? Nos reprima, nos reprima com todas as suas forças!

Velhas ideologias contra novas ideologias. Imperialismo contra Anarquismo!

Que tentem desesperadamente impedir o fluxo do Rio Sumidagawa com suas frágeis e pequenas tábuas!

O capelão Numanami apareceu e me perguntou, “como vai...”. Eu respondi: “como sempre”. Então ele me disse que parecia que eu conseguia ficar tranquila porque me sustentava na convicção em minha ideologia; que a depender da profundidade do envolvimento no evento, poderia ter pessoas que se sentissem angustiados, mas que eu, por estar envolvida do início ao fim com o que aconteceu, parecia ter a resolução necessária. Fiquei muito mais contente com isso do que com sua tentativa anterior de me oferecer conforto religioso.

[Eu fico mais feliz em ouvir esse tipo de palavras]

Mas certamente muito dos meus companheiros de julgamento estavam profundamente angustiados. O que aconteceu foi sem precedentes na história, mas, em compensação, [também é possível dizer que] a punição também é de uma enorme e sem precedente injustiça.

É mais acertado dizer que o caso atual foi mais uma conspiração arquitetada pelas mãos do procurador geral do que uma conspiração dos anarquistas propriamente ditos. A invocação do Artigo 73 na Corte foi de uma estupidez verdadeiramente assustadora, a incapacidade de concatenar as acusações com a essência dos fatos era semelhante à de um romancista de baixa qualidade e de seus livros baratos. Afora o grupo de cinco pessoas que o procurador chamou de “Grupo de preparação conspiracionista sob o comando direto de Kôtoku”, isto é: Kôtoku, Miyashita, Niimura, Furukawa e eu, todos os outros foram associados ao caso inescrupulosamente tendo como base conversas fugazes que tivemos no passado.

Eles começaram a aprisionar pessoas partindo de falsos, absurdos e injustos silogismos do tipo: “esse caso tem origem em uma conspiração anarquista, tal e tal pessoal são anarquistas, ou tal e tal pessoa são amigos de anarquistas, logo, tal e tal pessoal também participaram da conspiração”. Digladiando-se por fama e respeito, [com grande esforço] tentavam a todo o custo aumentar nem que seja em mais um o número de réus. Para alcançar com grande esforço este resultado, recorreram a fraudes, falsificações, coerções e, em casos extremos, até mesmo a métodos vis e ignóbeis semelhantes as torturas usadas no passado, como a privação de sono. Se fosse alguém que tinha alguma insatisfação para com o governo, pouco importava se eram pessoas comuns, anarquistas, ou ainda apenas pessoas que tinham um pouco de simpatia por novas ideias, todos eles, sem exceção, acabaram associados a este caso por causa de simples conversas descontraídas que tiveram somente uma vez e que foram interpretadas como se possuíssem um significado extremamente profundo.

Mesmo que, por exemplo, cedêssemos cem, mil passos e aceitássemos tomar como conspiração as conversas deles, não seria o caso de imputar-lhes o Artigo 73, eles teriam que responder por insurreição. Mas o procurador e os juízes do prejulgamento, como se tentassem inescrupulosamente ligá-los ao Artigo 73, perguntaram aos réus diversas questões sobre o anarquismo. Por fim, o ideal dos anarquistas – e é somente isso, um ideal –, este ideal foi usado para alcançar a conclusão, não: forçar uma conclusão de que para os anarquistas que acreditam na liberdade e equidade absoluta, a família real, portanto, não poderia ser aceita. Essas inferências foram prontamente registradas nos autos e, assim, eles associaram essas ideias e teorias que nada tem a ver com o caso atual e incriminaram inescrupulosamente pessoas inocentes.

Quanto mais penso sobre tudo isso, mais fico irritada. Quando penso nas sentenças ultrajantes que foram proferidas, apesar de estes fatos terem sido expostos em tribunal, não consigo deixar de ranger os dentes de raiva.

Miseráveis juízes! Para manterem suas posições: apenas para manterem suas posições, [sabendo que era injusto, sabendo que era um ultraje], apenas para salvaguardar suas próprias posições [esse veredicto desumano] sabendo que era injusto, sabendo que era um ultraje, vocês, por certo, devem ter sido obrigados a darem esse veredicto desumano. Miseráveis juízes! Escravos do governo! Mais do que raiva, é pena o que eu sinto por todos vocês! Mesmo que meu corpo esteja preso atrás destas grades de prisão, abro minhas asas no mundo livre do pensamento e nada pode me confinar ou restringir; aos nossos olhos vocês, em verdade, são seres humanos miseráveis.  Nasceram como humanos, mas não têm valor humano. Miseráveis [animais] seres humanos! Pode-se viver cem anos sem liberdade, em servidão, mas o que valeria uma vida assim? Miseráveis escravos! Miseráveis juízes!

Por volta das quatro fui levada para a visita. Quatro pessoas estavam lá, Sakai, o casal Ôsugi e Yoshikawa.

Antes da visita, o guarda da prisão me advertiu de que eu não poderia falar das minhas impressões sobre o julgamento. Certamente isto deve ter sido uma advertência especialmente do governo que, se a verdade acerca deste ultrajante julgamento viesse à tona, temiam insuflar a ira de meus companheiros.

Fiquei contente em perceber que desde a última vez, há quatro anos atras, que vi Sakai e Ôsugi lado a lado no terceiro tribunal da Corte de Apelação durante o julgamento do Caso de Bandeira Vermelha, eles não mudaram nada e continuam com a mesma compleição alegre. Troquei algumas palavras com um e tantas outras com outro. Desde o início eu tentei evitar ao máximo os olhos de quem os tinham cheios de lágrimas e me empenhei para rir e conversar naturalmente, mas, quando o momento do último aperto de mão chegou, especialmente quando apertei a mão de Yasuko, a barragem que vinha contendo minhas lágrimas se rompeu. Não pude separar minhas mãos das de Yasuko que chorava copiosamente. Ah!, meus amigos queridos, meus companheiros!

Quando disse: “o veredicto foi inesperado e....”, Sakai disse com voz dolorosa: “eu pensei que [você] Kôtoku e você iriam morrer por todos nós, mas...”

Sem dizer muito, ele transbordava de imensurável e profunda emoção.

Kanson parece estar em Akiraya em Yoshihama, Bôshû. Akiraya é uma casa em que eu, há muitos anos atrás, passei dois meses. Nesta época eu já tinha cortado as relações com Kanson, mas um dia ele veio de Osaka sem avisar e nessa oportunidade reatamos nosso relacionamento. Essa casa abriga muitas memórias dessa época. Nos divertimos pelas montanhas e andamos também pela praia. Nessa época, estou certa de que Abe Kanzô estava morando conosco. Juntos fizemos diversas brincadeirinhas como subir a montanha Nokogiri, comer mexerica enquanto fazíamos uma fogueira a céu aberto, queimamos também até as cinzas a cabeça de pequenas estatuas de Jizô.

Kanson está agora nesta mesma Akiraya. O quarto certamente também deve ser o mesmo quarto. Sem dúvidas ele está lendo e escrevendo enquanto mordisca aquela unha torta sentado na mesa colocada na frente daquela quente porta corrediça de papel naquela extremidade sul.

Kanson me chamava de mana, assim como minha falecida irmã mais nova também o fazia, e eu, por minha vez, o chamava de garotinho.

Por mais que vivêssemos sob um mesmo teto como um casal, era mais apropriado entender nosso relacionamento como de irmã e irmão do que como de um casal propriamente dito. A razão mesmo para nosso afastamento foi que nosso sentimento não era suficiente para um casal. No entanto, em troca, mesmo após nos separarmos, carrego comigo esse íntimo sentimento para com o passado em que vivíamos como irmã e irmão. Meus sentimentos por ele, seja naquela época em que éramos um casal, seja agora, não mudaram nem um pouco.

Ano passado enquanto eu estava em Yugawara e ele me enviou um cartão postal com uma canção obscenamente vulgar e abusiva, ou quando eu soube que, após ter ido para Tóquio, ele veio até Yugawara com uma pistola a tiracolo, ou ainda quando, após tudo isto, eu ouvi na Corte que ele enviou uma carta para Kôtoku desafiando-o para um duelo, em todos estes momentos em meu coração eu chorei secretamente por ele.

De todo modo, o mundo é assim mesmo, o que tiver que ser, será e a felicidade pode surgir também. Porque ele se separou de mim é que hoje ele pode sossegadamente aprender e se divertir como bem entender. Se por um acaso ele não tivesse cortado os laços comigo, ele certamente estaria destinado a subir no mesmo cadafalso a que me dirijo.

Rezo com meus mais sinceros sentimentos por sua saúde e prosperidade. Desejo também que conserve amor e respeito por si mesmo.

Para o casal Ôsugi escrevi uma carta, para Sakai um cartão postal e outro para Yoshimura.

Dia 22, ensolarado

Ontem à noite eu estava de mau humor pela primeira vez desde que entrei na prisão. Aquela tragédia de uma separação final realmente impactou meus nervos [sensitivos]. Embora desde dois de junho do ano passado, quando soube que o caso foi exposto pela primeira vez, eu tenha me esforçado para estar bem no controle de [meus nervos] mim mesma, se eu posso ser dominada mesmo que só por uma noite por emoções tão singularmente indescritíveis eu realmente sou um indivíduo decepcionante. Estou um pouco desgostosa comigo mesmo. Se este tipo de covardia persistir, o que será de mim?

Ainda assim, isto é provavelmente a natureza humana. Essa característica especial dos heróis orientais, isto é, não deixar que nenhuma emoção humana se manifeste, é, em certa medida, algo impressionante, mas, por outro lado, é também uma verdadeira falsidade, uma afetação. Se essa pessoa realmente superou as emoções humanas do fundo de seu coração, seja por uma insensatez extrema ou por uma sabedoria igualmente extrema, a questão é outra, mas para esse receptáculo de emoções que são as pessoas comuns, é impossível existir de maneira tão insensível sem nem um pouco de falsidade ou fingimento. Eu sou uma pessoa medíocre; sou uma pessoa emocional, mais do que isto: sou uma pessoa extremamente emocional. Eu odeio mentiras, detesto a afetação, detesto o não natural. Eu também choro, também rio. Também me alegro, também me enfureço. Eu não me importo de revelar a minha ingenuidade. Não importa para mim como os outros medem meu valor. Se eu puder terminar minha vida sem me enganar, isto já é o suficiente.

Mas hoje estou verdadeiramente bem-disposta. Os sentimentos de ontem à noite foram enterrados juntos dela, ao ponto de me perguntar, com uma sensação esquisita, qual a razão de eu ter me sentido daquela maneira.

Especialmente quando escutei que todos os meus companheiros de julgamento da prisão masculina estão agindo como grandes anarquistas e aceitaram enfrentar a morte, fiquei muito contente, ao ponto de sentir meu corpo leve. Para nós que fomos os responsáveis, já é um alívio saber somente disto. Isto porque somos todos humanos, é mais do que natural que qualquer um se sinta, em seu âmago, lúgubre ao ser sentenciado a uma pena tão pesada por causa de um envolvimento ínfimo e incontornável. No entanto, não consigo sentir nada além de admiração diante de uma atitude tão varonil como encontrar alívio em sacrificar tudo pelo [consolo do] bem de nossos princípios. Não podia esperar menos de anarquista, de meus companheiros. Estou verdadeiramente contente. Sinto orgulho enquanto anarquista. Eu já não tenho nenhum arrependimento. Aquela única nuvem escura que pairava em meu coração finalmente se dissipou e deixou meu peito, à semelhança do céu de hoje, completa e puramente ensolarado.

Escrevi cartas para Koizumi Sakutarô, para Katô Tokijirô e para Nagae Tamemasa, para Okano Tatsunosuke e para Watanabe Yayoko eu escrevi cartões postais.

Pela tarde, recebi cartas de nosso advogado, Hirade, e de Sakai. A carta de Hirade dizia:

Eu já sabia qual seria o veredicto sem que o juiz precisasse ler mais de dez linhas da argumentação. Até aquele momento, meu anseio como advogado ainda tinha um ponta de esperança de que cinco ou seis pessoas poderiam receber uma pena mais branda, no entanto foi tudo em vão. Apesar de não estar mais aguentando ficar naquela posição, não queria desencorajar as duas pessoas que estavam sob meus cuidados, portanto, mesmo que tenha sido doloroso, eu suportei até o final junto deles e tentei dizer uma ou outra coisa para tentar animá-los. Não há nada que possamos fazer quanto a aplicação da lei. Deixemos para a posterioridade o julgamento da (in)adequação desta sentença. Creio que você não precise de nenhum tipo de consolo. Mas como devem ter se sentido aqueles que não tinha a determinação e que foram pressionados a tê-la? Eu fiquei muito incomodado com isto e desde o dia dezoito não tenho consigo fazer nada.

Ah!, se até mesmo um advogado pensa desta maneira, seria possível para mim, uma companheira, mais do que isto: uma companheira que tem responsabilidade pelo ocorrido, não sentir tão insuportável [indignação] dor?

Escrevi uma resposta para Hirade sob a luz fraca da lâmpada.

Dia 23, ensolarado

Toda noite fico irritada quando, às duas da manhã, vêm trocar minha garrafa de água quente e sempre me levanto um pouco quando chega essa hora. E, então, como nas próxima uma, duas horas não consigo voltar a dormir eu acabei pegando o hábito de ficar pensando em todo tipo de coisa enquanto caio de sono.

Noite passada eu também, como esperado, acordei do mesmo jeito.

Pensei na visita que Sakai me fez antes de ontem, nos meus companheiros de julgamento, no túmulo de minha irmã mais nova – o túmulo de minha irmã está no Templo Shôshunji que fica em frente ao Templo Ginsekai – e várias outras coisas. Quando Sakai e Yasuko entregarem o dinheiro para limpeza e manutenção do túmulo assim como solicitei, me pergunto como [aquele monge] aquele monge que eu detesto irá saudá-los. Para nós que não cremos que os mortos possam descansar em paz através de um sutra pio, é natural que ficássemos displicentes no envio do tributo para o templo e o monge com frequência nos olhasse com cara de desaprovação sempre que íamos lá [para] visitar o túmulo. Nisto, acabei me distanciando pouco a pouco e, no lugar de ir colocar flores e incensos no túmulo que guardava seus ossos, segui colocando a comida favorita de minha irmã na frente de sua foto. [Quando paro para pensar, fazer isso era bem estúpido, no entanto, pela força do hábito de vários anos de costume, continuava o fazendo somente para meu próprio consolo] quando paro para pensar, fazer isso era bem estúpido, mesmo sem achar que, após o corpo da pessoa morta virar fumo e ter voltado a ser somente átomos decompostos, o espírito permaneça e se agrade com flores, incensos e outros tipos de oferendas, eu continuava fazendo isto somente para meu próprio consolo, quem sabe tenha sido pela força do hábito de vários anos de costume.

No entanto, levando em conta minha situação atual, creio que precisava enviar o valor de limpeza e manutenção para o templo pelo bem do meu irmão mais novo que está nos Estados Unidos. Penso assim por que quando ele voltar para o Japão e quiser um dia ir visitar o túmulo da irmã, seria [certamente decepcionante não o encontrar lá por ter sido], não tenho dúvidas, decepcionante não o encontrar lá por conta de ter sido considerado sem salvação.

[Ontem à noite também pensei sobre mim mesma. Ontem, durante a visita, pedi ao Guarda Kinose que providenciasse um caixão de corpo inteiro, certamente ficará pronto até lá. Qualquer coisa bastaria depois que eu estivesse morta, no entanto me desagrada a ideia de ter as pernas quebradas e ficar num espaço estreito e apertado como Hong Kong. Por isso faço questão de que meu caixão seja de corpo inteiro.]

Ontem à noite também pensei sobre meus restos mortais. Quando minha fraca respiração cessar e eu não passar de somente uma bola de carne, qualquer coisa bastaria, no entanto, eu sempre me desagrado quando vejo que quebraram as pernas dos mortos para colocá-los em um caixão estreito e apertado e, por isso, durante a visita de antes de ontem, eu [de alguma forma], voltei a pedir ao guarda Kinose, que nos observava, para atender meu pedido por um caixão de corpo inteiro para mim. [Portanto], acho que certamente ficará pronto até lá. Sobre minhas roupas, para caso meu túmulo seja revirado e violado, somente desta vez gostaria de não estar em uma situação muito deplorável, no entanto, já não me importo mais com isto. Mesmo que esteja suja, mesmo que esteja com as roupas rasgadas, acho que é melhor e mais natural que eu esteja com meus trajes de sempre. Também havia pedido ao chefe de seção Iizuka permissão para tomar um banho na manhã do dia em que seria executada, mas hoje de manhã também solicitei que desconsidere isto. Na realidade, se fosse para falar de meus desejos, eu gostaria que meu corpo fosse sepultado ao lado do túmulo de minha irmã – tanto faz o túmulo, não me importo que façam meu corpo em cinzas e o joguem aos ventos, ou que me joguem no mar aberto de Shinagawa, que façam como bem o desejarem. No entanto, sei que não existe chance de acontecer algo deste tipo e, se for para ficar com a mesma forma [sepultada] seria demais desejar ser sepultada ao lado de minha saudosa irmã, mas, como escrevi anteriormente, eu não suporto aquele templo [e aquele monge] e, por isso, resolvi pelo que daria menos trabalho e pedi para me enterrarem no cemitério para condenados à morte de Zôshigaya. Antes de ontem eu também falei destes pensamentos para Sakai e Yasuko após eles me recomendarem falar sem reservas pois fariam do jeito que eu desejasse.

Esta manhã escrevi cartões postais para [Sakai] a Baibunsha e para o advogado Hirade.

Para a Baibunsha eu escrevi de modo a indicar que, não importa quem seja, gostaria que alguém fosse até o templo e pedisse para escreverem uma nova placa de madeira para o túmulo de minha irmã.

Ao pensar no meu túmulo, me lembrei do procurador Taketomi. Eu e este procurador somos velhos conhecidos desde o Caso da Bandeira Vermelha, três anos atrás. Mais do que isto, somos velhos conhecidos que se odeiam mutuamente. Nosso atrito começou quando, naquela época, eu solicitei que concertassem algumas partes do texto dos autos do interrogatório que não me agradaram e, então, nos separamos com os rostos vermelhos de raiva. No ano seguinte, isto é, no verão do ano retrasado, quando fui encarcerada ao responder pelo crime de violação da lei de imprensa por meu envolvimento com a revista Jiyû Shisô, fui bastante maltratada por este mesmo procurador que usou de métodos bastante cruéis e traiçoeiros para alcançar um severo argumento final de promotoria. Então, quando o caso atual veio à tona, fui, primeiramente, interrogada por este mesmo procurador, no entanto, estava decidida a não dizer uma palavra sequer para este procurador habitualmente desagradável. Mas não só, senti mesmo, por um momento, uma vontade assassina e estava pronta para levar o procurador comigo para o mundo dos mortos.

Contudo, ao escutar do procurador um pouco sobre sua vida, senti empatia pela sua velha mãe e por seu passado de dificuldades enquanto trabalhava e estudava de modo que perdi qualquer sentimento assassino contra ele e acabei por relatar, um a um, todos os meus sentimentos para o promotor e, assim, nos separamos.

Alguns dias se passaram após isto e tivemos uma conversa deste tipo:

“Acho muito interessante que você não me diga uma palavra sequer sobre o caso. De minha parte, também não perguntarei nada. Em troca, você não me falaria um pouco de sua trajetória de vida? Não seria interessante se você fizesse com que eu, a pessoa que você mais odeia, tentasse escrever sua história de vida? Eu certamente iria adorar tentar escrevê-la.”

Pensei que esta certamente seria mais uma forma que ele usaria para se vingar, no entanto, não importa quem escreva sobre mim, no fim das contas não há nada de bom que possa ser dito. Sempre me desviando para caminhos irregulares, vivi minha vida sem seguir um percurso adequado e, graças a minha determinação e teimosia, felizmente consegui terminá-la sem me tornar prostituta ou operária de uma fábrica têxtil. Afora as pessoas preocupadas com problemas sociais e que ainda possuem sangue e lágrimas para verterem, sei que é impossível que qualquer outra pessoa sinta empatia pelas trágicas circunstâncias de meu passado. Portanto, se é para que escrevam mal de mim, que o façam completa e inteiramente. Acho que seria interessante que alguém realmente escrevesse com o máximo de ódio possível e, deste modo, contei a história de minha vida sem que deixasse, no entanto, nenhum fato propriamente dito de minha vida transparecer, como se fosse um romance.

Quando falávamos de coisas que não eram relacionadas ao caso, o procurador agia animadamente como se não possuísse o veneno [dos Srs. Procuradores] e eu não podia achar nenhum ponto que justificasse meu ódio. Não consegui encontrar nenhuma marca do promotor demoníaco de antes. Ele escutava minha história e parecia realmente interessado.

“É como se fosse realmente um romance, né?”

Ainda tenho fresco na memória a cara com que ele perguntava isto. E o procurador continuou:

“Eu e você certamente tivemos um laço profundo em nossas vidas passadas. Se você receber a pena de morte – se você morrer antes de mim, eu juro que levarei, sem falta, incenso e flores para seu túmulo.”

Ele continuava repetindo isto.

Seus olhos não pareciam indicar que se tratava apena de lisonja momentânea, é provável que ele realmente vá ao menos uma vez visitar meu túmulo. Ao contar isso para certa pessoa, ela riu e falou que isso certamente seria sinistro; quando ele fosse visitar o túmulo seria engraçado agarrar sua manga e assustá-lo de maneira dramática.

Se eu me tornasse um fantasma ou um espírito, a começar pelo Juiz da Suprema Corte, existe um sem-número de pessoas que eu gostaria de assustar. Que emocionante seria vê-los gritar "Aaa!" petrificados de terror. Há!

Essa manhã tive um sonho peculiar.

Não me lembro quem eram as pessoas, mas estava caminhando por um caminho reto dentro de um arrozal beirando um arroio com duas ou três pessoas. Quando me dei conta e olhei de repente para o céu, o sol e a lua estavam afastados cerca de um metro de distância e flutuavam pelo imenso céu azul. O sol estava mesmo com uma cor parecida com a da lua e lhe faltava três quartos de sua forma. A lua estava como se tivessem passado uns dez dias desde a lua nova. Eu acordei assim que terminei de contar as pessoas que me acompanhavam que quando a lua e o sol aparecem juntos assim é um presságio de que uma grande calamidade se abaterá sobre o país.

Talvez meu cérebro não esteja bem e por isso eu venha sonhando a noite toda. Mas foi a primeira vez que tive esse sonho com o sol e com a lua. Um sol incompleto, uma lua incompleta, o que será que querem dizer?

Nestes tempos, sempre quando acordo penso, vejam só, não é que ainda estou viva?!

E acabo achando que estar viva é meio que como um sonho também.

[Ao escrever até aqui, Tanaka, o chefe do centro de educação, veio me ver e, por um tempo]

[Ao escrever até aqui, Tanaka]

Escutei de Tanaka, o chefe do centro de educação, que mais da metade dos sentenciados a morte foram salvos. No melhor dos casos, as sentenças foram convertidas em prisão perpétua. Vindo daquela ultrajante decisão, isto deveria ser no mínimo natural, mas, não importa, é uma boa notícia. Não sei ao certo quem recebeu o induto, mas certamente devem ter sido aqueles que tinha uma ligação muito fraca com tudo isso, devem ter sido, por certo, aqueles que eu acreditava que eram inocentes. Independentemente de ter sido uma decisão absurda e ultrajante, posso imaginar o tamanho da inesperada felicidade daqueles que receberam, por um momento, a sentença de morte. Primeiro eles dão esse tipo de sentença cruel para, mais tarde, alegando ter sido por conta das opiniões de Sua Majestade, reduzirem a pena com ares de superioridade – não sei se acho admirável ou ardilosa essa forma ladina de atuar para a população e para o estrangeiro agindo como se tudo tivesse sido um ato de benevolência e retidão -, de qualquer forma, no fim das contas, estou agradecia que as vidas de companheiros vão ser salvas. O que desejo mesmo é que todos, exceto eu e mais dois ou três pessoas, fossem salvos. Se eu pudesse trocar de lugar com eles, eu não me importaria de ser atada a um crucifixo de ponta cabeça e banhada em fogo, ou de ter minhas costadas atravessadas para que me mergulhassem na caldeira dos navios, eu aceitaria qualquer pena, por mais cruel que fosse.

Alguém me contou a história de Tanaka, que era um samurai de Aizu-han e que tinha sido capturado e condenado a morte em 1872. Quando estava finalmente a caminho do lugar onde seria executado inesperadamente recebeu o induto. É uma [história] história de experiência bastante interessante quando a escuto na situação em que eu me encontro agora.

Admiro todos os anos de experiência que o capacitam a falar de acordo com um determinado tempo, sem entrar na ideologia de seus oponentes, como se, ao olhar para a pessoa, conseguisse dizer a verdade sobre ela.

Chegaram cinco cartas, uma de Sakai Mâ, de Koizumi Sakutarô, de Minami Sukematsu, de Kayama Sukeo e de Tomiyama.

O cartão postal de Mâ estava ilustrado por lindas flores de mato e dizia, escrito a lápis, assim:

Parece que a senhora vai me dar algumas coisas, então muito obrigada. adeus.

[Coisa meiga] Era como se eu visse diante de mim sua figura meiga, de grandes olhos e pele branca. Como pode ser tão meiga.

Koizumi me escreveu um texto que começava: “escrevo e envio esta carta como uma última despedida”, e continuava:

  Quando me embebedei na noite de véspera do ano novo em Takeshiba-kan, eu compus um poema para Shûsui:
  “Antes do copo somente a bela princesa do destino
  Após me embriagar é quando entendo o obscuro e odioso plano
  Essa noite na prisão dos mortos
  Por onde andara o espírito dos seus sonhos neste ano tortuoso”
  Também queria ter composto um para você, mas acabei conseguindo terminar somente uma estrofe, “Que lastima! Uma gloriosa e brava princesa”

Nos últimos dois ou três anos, ele me ajudou sobremaneira, ao ler mais uma vez suas palavras meu peito se encheu de emoção. Que você viva com saúde e vigor, que você viva cem anos!

Escrevo isto sob a luz fraca e distante de uma lâmpada enquanto movo fracamente o pincel frio feito gelo. Não é nada fácil. Já faz um tempo que anunciaram que é hora de dormir. O vento solitário sopra do lado de fora da janela.

Por hoje isto basta, vamos dormir.

Dia 24, ensolarado

Escrevi para Sakai, Masuda e para Mâbô.

Pedi a Sakai para enviar alguns mementos meus para meu irmão que está nos Estados Unidos.

O texto do veredito, de 146 páginas, chegou. Penso em enviá-lo para meus companheiros que também estão nos Estados Unidos.

Yoshikawa me enviou o Suikodô Kensô.

Após ler este exagerado e inescrupuloso texto do veredicto, fiquei desgostosa e acabei perdendo todo o ânimo para pegar o pincel hoje. Chegou um cartão postal de Yoshikawa.

Pela noite escrevi cartas e cartões postais para os quatro advogados, Isobe, Hanai, Imamura e Hirade e para Yoshikawa, Minami, Kayama e Tomiyama.

Notas