O que me fez ser assim?
Tradução: Felipe Chaves Gonçalves Pinto
HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto
Primeira publicação da tradução: Pinto, F.C.G. A terra do sol negro: a representação da melancolia em escritos carcerários japoneses, vl. 2. Dissertação de Mestrado, USP, p. 50-289, 2024. Disponivel em: Banco de dados USP. Acesso em: 07/11/2024.
Texto original: Nani ga watashi wo kôsasetaka. Tóquio: Shunjûsha, 1931. Disponível em: Aozorabunko. Acesso em: 18/10/2024.
Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).
Sumário
- Meus desejos acerca das revisões
- Prefácio
- Pai
- Mãe
- Na terra natal de Kobayashi
- A família de minha mãe
- Minha nova família
- Fukô
- A família Iwashita
- Minha vida na Coreia
- A volta para a vila
- Rumo ao covil de tigres
- O remoinho da sexualidade
- Adeus, meu pai!
- Rumo à Tóquio
- A casa do meu tio-avô
- A vendedora de jornais
- Vendedora ambulante
- Auxiliar doméstica
- Andarilha das ruas
- Ao trabalho! Ao meu próprio trabalho!
- Pós-escrito
Meus desejos acerca das revisões
Mano Kurihara,
・Há um grande uso de recursos estilísticos nos casos fora dos registros, como inversão de ordem etc. No entanto, no que concerne os registros, todos foram baseados em fatos. Gostaria de requisitar a essência que eles têm como fatos que são. Portanto, gostaria que os vissem e tratassem em todos os aspectos como “Registro de fatos”.
・O estilo de escrita deve ser simples, direto e o mais nítido possível, sem ser, no entanto, cerimonioso.
・Exceto em certos casos especiais, gostaria que evitasse, na medida do possível, usar muitas frases poéticas e demasiadamente belas, muitos artifícios linguísticos e adjetivos perifrásticos.
・Gostaria que uma ênfase fosse dada ao estilo e não tanto à gramática.
Prefácio
11:58 do primeiro dia de setembro do ano doze da era Taishô (1923). Começou, de repente, um violento tremor vindo das profundezas da terra na região de Kantô, onde se localizava a capital imperial, Tóquio. Casas retorcidas e colapsadas ruíam rangendo gruídos. Pessoas subterradas vivas debaixo de suas casas e as que por pouco conseguiram escapar uivavam e corriam de um lado para o outro como cachorros enlouquecidos. De tal maneira que, por um instante, o paraíso civilizatório se transformou em um verdadeiro pandemônio.
Os tremores secundários e os mais violentos continuavam a chegar incessantemente. Nuvens, como se fossem a fumaça de erupção de um grande vulcão, giraram em redemoinhos e subiram esfumaçante ao céu aberto. Devido aos grandes incêndios, a capital imperial logo ficou tomada por uma negra fumaça.
Agitação, insegurança e, por fim, aqueles ridículos motins e rumores infundados.
Não demorou muito para acontecer. Nós fomos detidos e dirigidos para a delegacia sob a ordem daquele oficial da polícia imperial.
Não tenho a liberdade para relatar o porquê de sermos detidos. Eu só posso falar que, um pouco depois daquilo, fomos convocados à Corte de Interrogatório de Primeira Instância da Região de Tóquio para responder a um interrogatório.
Conduzida por um guarda prisional, cruzei a porta da Corte onde já me aguardavam o Juiz e o seu escrivão. Ao me ver, o atendente do tribunal começou a preparar o assento de réu. Durante este tempo, eu tive que permanecer em pé e em silêncio na porta da sala com o fundo chapéu de palha que cobrira meu rosto nas mãos. O juiz me encarava fixamente em uma atitude calma.
Finalmente me colocaram no assento dos réus. O juiz, após me olhar ainda por um tempo como se precisasse investigar até o fundo de minha alma, disse:
“Você é a Kaneko Fumiko, né?”
Ao responder que sim, eu era, ele, inesperadamente gentil, se apresentou:
“Eu sou o responsável pelo seu caso. Sou o Juiz do Tribunal de Primeira instância, Takematsu.”
“Ah, sim. Espero que o senhor seja afável comigo.” Eu, também com um sorriso no rosto, respondi desta maneira.
A partir de então o interrogatório preliminar ordinário começou. Mas o juiz parecia ter agarrado uma oportunidade importante para o interrogatório que estava por vir através das perguntas preestabelecidas deste interrogatório preliminar. Portanto, agora, eu vou registrar aqui o nosso diálogo da maneira como ocorreu. Acredito que assim será mais fácil para entender desde o início meus registros que virão em seguida.
O juiz começou:
“Primeiramente, qual seu registro de residência original?”
“É vilarejo de Suwa, condado de Higashi-Yamanashi, Prefeitura de Yamanashi, senhor”
“Indo de trem, onde você desceria?”
“A estação de Enzan é a mais próxima, senhor”
“Como?, Enzan?” O juiz disse inclinando um pouco a cabeça. “Então seu vilarejo é próximo do vilarejo de Ôfuji, né? Na verdade, eu conheço muito bem o vilarejo de Ôfuji. Tenho um conhecido caçador que é de lá e sempre vou lá no inverno!...”
Eu não conhecia esse vilarejo de Ôfuji,
“Bem, colocado dessa maneira, fico um pouco sem jeito. Lá, na realidade, isto é, o Vilarejo de Suwa, é sim meu registro de residência original, no entanto eu não passei mais de dois anos por lá, senhor.”
“Hm, então você não nasceu no seu registro de residência original, né?”
“Isso mesmo, de acordo com meu pai e minha mãe, eu nasci em Yokohama, senhor.”
“Entendi. E então, qual o nome de seus pais? Onde eles estão?”
Não pude conter um riso interno ao pensar que o juiz intencionalmente queria me perguntar todas essas coisas que muito provavelmente ele já sabia devido a ficha da polícia. Eu respondi o mais direta e sinceramente possível.
“Vai ficar um pouco complicado, mas, segundo o registro familiar, meu pai é Kaneko Tomitarô e minha mãe Kaneko Yoshi. No entanto, esses são os nomes dos pais de minha mãe, ou seja, correspondem aos nomes de meus avós, senhor.”
O juiz fez uma cara de espanto e então perguntou o nome dos meus verdadeiros pais.
Eu respondi:
“Meu pai se chama Saeki Fumikazu e provavelmente está em Hamamatsu, na prefeitura de Shizuoka. Minha mãe se chama Kaneko Kikuno e, apesar de não saber ao certo seu paradeiro, acho que ela provavelmente está nas vizinhanças da casa de seus pais, senhor. No registro familiar, minha mãe é minha irmã mais velha e meu pai é meu cunhado...”
“Espere um pouco”, o juiz me interrompeu. “Isso me soou um pouco estranho. Eu entendi que sua mãe virou sua irmã mais velha, mas como o sobrenome de seu pai e de sua mãe são diferentes, me parece que eles não têm mais uma relação...”
“Isso mesmo”, eu respondi com pesar. “Meu pai e minha mãe são separados há muito tempo. No entanto, a irmã mais nova de minha mãe, isto é, minha tia, é a segunda esposa de meu pai e, atualmente, estão vivendo juntos, senhor.”
“Hm, entendo. Deve ter acontecido algo, né? E então, quando foi que seu pai e sua mãe se separaram?”
“Deve fazer uns treze, quatorze anos, senhor. Eu tinha por volta de sete anos na época.”
“E então? Depois disso o que aconteceu com você?”
“Me separei de meu pai e fiquei com minha mãe, senhor.”
“Hm, e então após isso sua mãe com muito esforço te criou sozinha durante todo o tempo, né?”
“Não foi bem assim. Logo após me separar de meu pai, eu me separei também de minha mãe. Desde então não tive assistência nem de meu pai nem de minha mãe, senhor.”
Após responder, eu senti toda a minha história, todas as minhas experiências se abrirem em meu peito de ponta a ponta. Sem perceber, vagas lágrimas encheram meus olhos. Não sei se o juiz percebeu, mas, em certa medida, ele, algo que compadecido, disse: “deve ter sido bem difícil, não é? Voltaremos a falar sobre isso em outro momento”. Então tomou em suas mãos os papeis da mesa do escrivão e, os olhando, começou efetivamente a me interrogar sobre o caso.
Como disse anteriormente, não posso escrever nada sobre isto aqui. E nem é necessário.
No entanto, depois do interrogatório, o juiz ordenou que eu tentasse escrever algo sobre minha história. Parece que há uma disposição na lei que diz que um réu deve ser perguntado não apenas sobre o que pode ser usado contra ele, mas também sobre coisas que podem ser usadas ao seu favor. Talvez por meio desta disposição pouco utilizada, o juiz esperava chegar a algo em meu passado que pudesse explicar a razão para eu ter feito uma coisa tão atroz. É claro que, talvez, não seja nada disso e ele simplesmente tenha ordenado que eu fizesse isso por pura curiosidade jornalística. De qualquer forma, isso não importa. Eu simplesmente escrevi o relato de meu desenvolvimento assim como me foi ordenado. E é isto que compõe meus escritos.
Não sei se o que escrevi foi de alguma valia para o tribunal. Mas agora que o julgamento terminou, não tem mais serventia nenhuma para o juiz. Nisso, eu pedi para que me devolvesse e, assim, penso em enviá-los para alguém de fora do presídio. Eu envio este texto para meus companheiros. Espero que possam me conhecer melhor depois de o lerem e, se julgarem relevante, gostaria que o organizasse e o publicasse como livro.
Quanto a mim, meu maior desejo é que estes escritos fossem lidos por todos os pais do mundo. Não, não só pelos pais, gostaria que estes escritos fossem lidos por educadores, políticos e sociólogos que tentam fazer a sociedade um lugar melhor, que fossem lidos por todas as pessoas do mundo.
Pai
Eu consigo retomar as memórias de quando eu tinha quatro anos de idade. Nesta época, morava em Kotobuki-chô, em Yokohama, com meus pais biológicos.
Obviamente, eu não sabia o que meu pai fazia na época. De acordo com informações que só escutei depois, parece que ele era detetive na delegacia de polícia de Kotobuki.
Em minhas memórias, aquele tempo foi para mim como um curto e breve paraíso. Porque eu me lembro de ser muito amada por meu pai...
Eu sempre ia para casa de banho com meu pai. Toda tarde cruzava, nos ombros do meu pai e abraçada a sua cabeça, as pequenas cortinas que encimavam a entrada da casa de banho público. Quando eu ia no barbeiro meu pai sempre me acompanhava. Ele ficava plantado o tempo todo ao meu lado e incomodando o barbeiro sobre como ele deveria fazer minha sobrancelha e a linha do meu cabelo e se mesmo assim não ficasse do jeito que ele queria, meu pai tomava a navalha da mão do barbeiro e fazia ele mesmo o serviço. Parece que era meu pai quem escolhia as estampas do meu quimono e, além disso, parece também que era ele que até mesmo apontava o lugar para minha mãe fazer as barras dos ombros e do quadril de meu quimono. Quando eu adoecia, também era, claro, meu pai que ficava de vigília ao lado da cama e cuidava de mim. Ele, sem nunca descuidar, tirava ininterruptamente meu pulso e minha temperatura. Nessas horas, eu não precisava dizer nada. Meu pai compreendia meus desejos pelo meu olhar e os realizava.
Quando ia me alimentar, meu pai não se permitia nenhum descuido. Ele desfiava as carnes e tirava todos os pequenos espinhos dos peixes para que ficasse mais fácil de comer. Sempre checava em sua boca a temperatura da comida e da água antes de me oferecer e, se estivesse muito quente, ele os esfriava pacientemente. Em resumo, se nas outras casas essas coisas eram feitas pelas mães, para mim, todas foram feitas pelo meu pai.
Se penso retrospectivamente, é claro que não acho que nossa família fosse abastada. No entanto, minha primeira impressão da vida não foi, de maneira alguma, desagradável. Do meu ponto de vista, minha família naquele tempo certamente levou uma vida bastante pobre e carente. É só que, como posso colocar, meu pai acreditava ter nascido como filho mais velho de uma família descendente de prestigiosos aristocratas e, por, de fato, ter sido criado junto aos avós abastados como um pequeno príncipe é que certamente, mesmo em nossa situação de grandes dificuldades, ele me criou com o mesmo brio com o qual estava acostumado.
O sepulcro de minhas memórias felizes, no entanto, se fecha aqui. Em certo momento eu percebi que meu pai havia trazido uma mulher jovem para dentro de casa. Eu presenciei as costumeiras contendas e maledicências entre aquela mulher e minha mãe. Como se não fosse o suficiente, tive que presenciar também, em momentos como estes, meu pai tomar o lado daquela mulher e socar e chutar minha mãe. Minha mãe, de vez em quando, fugia de casa. E em algumas ocasiões não voltava por dois, três dias. Durante esses episódios eu ficava na casa de um amigo de meu pai.
Para mim, em terna idade, isso tudo era muito triste. Principalmente quando minha mãe estava ausente, tudo ficava ainda pior. Mas, em algum momento, aquela mulher desapareceu e nunca mais foi vista em nossa casa. Ao menos de acordo com minhas memórias, ela desapareceu. No entanto, em troca disto, passei a só ver meu pai em casa muito esporadicamente.
Lembro-me de quando minha mãe me levou junto para ir buscar meu pai em uma casa – parando para pensar agora, aquilo era um bordel. Lembro também de meu pai se levantar ainda de pijamas e cruelmente colocar minha mãe para fora do quarto. Mas, ocasionalmente, meu pai também voltava para casa enquanto cantava em plenos pulmões madrugada a fora. Nestes momentos, minha mãe resignadamente pendurava a roupa de meu pai no prego da parede, mas se, por acaso, encontrava papelotes vazios de doces ou casca de mexerica na manga de seu quimono, tirava-os e, enquanto olhava amargurada, dizia:
“Vejam só, quanta coisa! E ainda assim não compra nenhuma lembrança para a filha!...”
Meu pai, obviamente, deixou de trabalhar para a polícia. Desta maneira, o que ele fazia nesta época? Mesmo hoje eu não faço ideia. Só sei que homens broncos de diversos tipos se reuniam aos montes para ficarem bebendo e jogando um carteado na frente de casa e minha mãe vivia resmungando seus queixumes sobre esse tipo de vida e ralhando com meu pai.
É evidente que ele foi suplantado por este estilo de vida. Meu pai, em certa conta, ficou doente. Nisto, recebemos todo tipo de auxílio da família de minha mãe e meu pai foi hospitalizado. Minha mãe ficou como sua acompanhante e eu fui para junto de minha família materna. E então, por volta de pouco mais de meio ano, minha bisavó e tias mais jovens tomaram conta de mim. Nesta época, a despeito de ter me separado de meu pai e minha mãe, eu, ameninada, passei junto a família de minha mãe por momentos consideravelmente felizes.
Após meu pai se recuperar, retornei à sua casa. Nesta época morávamos numa área costeira. Foi tanto para zelar da convalescença de meu pai quanto uma preocupação com minha saúde frágil.
Esta casa ficava na costa de Isogo, em Yokohama. Passávamos o dia todo entregues à água do mar e à brisa marítima. Então, como um marco temporal, fiquei saudável como se minha constituição corpórea tivesse sido refeita. Isso faz de mim uma bem-aventurada ou foi somente uma traquinagem da natureza para me preparar para as mazelas que viriam atreladas ao meu destino? Eu não sei dizer.
Quando nos recuperamos por completo, nos mudamos mais uma vez. Fomos para uma casa em uma vila de quatorze ou quinze residências cercadas por todos os lados por arrozais na periferia de Yokohama. Então, numa manhã nevada de inverno nesta casa para a qual nos mudamos, meu primeiro irmão nasceu.
Foi no outono dos meus seis anos – eu só me lembro que, durante estes tempos, nos mudamos incontáveis vezes – que a irmã de minha mãe, isto é: minha tia, eventualmente veio morar em nossa casa. Minha tia tinha alguma ginecopatia, mas no remoto interior em que até então vivia não era possível receber o tratamento adequado e, portanto, ela veio para nossa casa para poder visitar o hospital com mais frequência.
Minha tia, nesse tempo, tinha por volta de 22, 23 anos. Possuía um rosto bem apresentável e era uma senhorita bem bonitinha. Era naturalmente atenciosa, fazia tudo que tinha que ser feito com esmero e tinha uma natureza meticulosa, rápida e eficiente. Portanto, parecia ter certa fama e era muito amada pelos seus pais. Contudo, em algum momento o relacionamento entre minha tia e meu pai parece ter ficado um tanto estranho.
Meu pai, nesta época, tinha um emprego de anotador de carga e descarga de carregamento em um armazém costeiro perto de nossa casa, mas, como de hábito, ele inventava desculpas para tirar folga do serviço e ficar em casa. Deste modo, obviamente as finanças de nossa casa não tinham como ir bem e, em decorrência disto, tanto minha mãe quanto minha tia trabalhavam paralelamente fiando cânhamo dentro de casa. Todo santo dia minha mãe saia, com meu irmão nas costas, com três ou quatro rolos de cânhamo fiado embrulhados em um pano para ir receber um ínfimo pagamento.
No entanto, coisa estranha, assim que minha mãe saia de casa, meu pai sem falta chamava minha tia para o quarto de três tatames onde se espalhava deitado e que era contíguo ao vestíbulo da casa. Era costumeiro que, mesmo que não parecesse que estivessem conversando algo de mais, minha tia ficasse por um tempo lá dentro. Naturalmente, com minha curiosidade atrevida de criança, eu espiaria o que estava acontecendo. Então, em certa feita, sorrateiramente e nas pontas dos pés, espiei pela fissura do pegador da porta corrediça para dentro do quarto.....
Entretanto, não me surpreendi tanto assim. Afinal, não era a primeira vez que eu presenciava uma cena destas. Meu pai e minha mãe já haviam me mostrado sua falta de decoro em várias ocasiões. Os dois eram bem indiligentes. Talvez por conta disto mesmo é que eu tenha sido bastante precoce e meus interesse pela sexualidade tenha, ao que tudo indica, despontados quando eu ainda tinha por volta de quatro anos.
Minha mãe era uma mulher que parecia ter perdido o fogo da vida, ao mesmo tempo em que ela não brigava colérica, também não demostrava muito carinho. No entanto, meu pai quando brigava, brigava feio e quando dava carinho, o dava em escalas absurdas. Qual destas duas personalidades meu coração de criança mais tomou para si? Quando eu era mais nova, eu era muito mais próxima de meu pai. É provável que se eu não tivesse presenciado os maus bocados que minha mãe passou por causa de meu pai, eu seria para sempre próxima dele. Mas, em algum momento, eu passei a me identificar mais com a minha mãe. Nesta época, então, eu, não importa aonde fosse, sempre saia pendurada em sua manga caminhando junto dela, mas, com a vinda da minha tia, meu pai, de alguma forma, começou a obstruir minhas saídas com minha mãe. Ele me bajulava de diversas formas e conseguia me manter em casa. Pensando agora, isso sem sombras de dúvidas era uma forma de encobrir seus atos e dissipar as suspeitas de minha mãe para com os dois. Afinal de contas, assim que minha mãe saia de casa, ele me dava alguns trocados e me colocava para brincar na rua. Não, mais do que isto: ele me expulsava de casa. Eu não ficava, particularmente, pedindo trocados para ele. E, ainda assim, ele me dava mais trocados do que de costume e me dizia para ir lá fora e alongar minhas brincadeiras. Quando minha mãe voltava, ele ainda reclamava de mim para ela nos seguintes termos:
“Essa criança é terrível! Ela sabe meus pontos fracos e, assim que você sai de casa, ela vem voando me importunar atrás de alguns trocados”
Nisto, chegou o fim do ano.
Eu me lembro da noite da virada. Minha mãe saiu para a cidade com meu irmão nas costas. Meu pai, minha tia e eu estávamos na sala de estar em volta do kotatsu.
Sem nenhuma razão em especial, a noite estava carregada de molúria e marasmo. Bem diferente do normal, tanto meu pai quanto minha tia traziam o semblante carregado. Meu pai, ao levantar o rosto prostado, disse com a expressão triste:
“Porque será que essa maré de má sorte paira em minha casa? Parece que o destino ainda não sorriu para mim. Seria bom se ano que vem fosse diferente...”
As pessoas possuem algo como o destino. Se ele não lhe é favorável, não há nada que possa ser feito. Essa era a filosófica do supersticioso de meu pai. Eu lembro-me dele sempre dizer coisas desse tipo desde que eu era pequena.
Os dois conversavam meio que reservadamente, mas, em certo momento, minha tia se levantou e tirou a caixa de pentes do armário.
“Vamos ficar com este?”, minha tia falou enquanto tirava um pente de lá de dentro e o inspecionava. “Mas acho que este é muito bom, né? Seria uma pena.”
Meu pai respondeu:
“No fim, seria jogado fora. Não existe nada que não possa ser jogado fora. Desde que seja um pente...”
Minha tia, então, colocou o pente de dentes quebrados no cabelo e começou a treinar movimentos para que ele caísse de sua cabeça.
“Não precisa colocar tão bem colocado. Só coloca de leve nos cabelos da frente que já está bom”, meu pai disse. “Se você, sem maiores cuidados, corre um pouquinho no lote vago em frente de casa, ele vai cair com certeza.”
Minha tia saiu com o pente colocado assim como lhe foi dito. E, antes que se passassem cinco minutos, ela voltou após ter se livrado do pente.
“Assim está bom. A má sorte vai ir embora. Ano que vem com certeza o destino nos sorrirá.”
No exato momento em que meu pai, feliz, dizia isso, minha mãe voltou.
Enquanto minha mãe tirava meu irmão, que chorava, das costas e dava-lhe de mamar, minha tia desfazia o embrulho de pano em que as compras estavam. Tinha de vinte a trinta mochi, umas sete ou oito fatias de peixe, umas três ou quatro pequenas sacolas de papel e uma raquete de três ou cinco centavos de iene enfeitada com papeis vermelhos: foi isto que saiu de dentro do embrulho.
Aqueles eram os preparativos para a nossa virada de ano.
Um tio materno veio até nossa casa para fazer uma visita durante o ano novo. Quando meu tio voltou para sua casa, minha avó veio para buscar minha tia para regressar junto dela. No entanto, minha avó voltou só e minha tia ficou conosco.
Isto se deu, como depois fiquei sabendo por outras pessoas, porque meu tio, quando veio nos visitar, ficou ciente do teor da relação entre minha tia e meu pai e, ao voltar para casa e comentar com a família, minha avó teria ficado preocupada e nisso vira para nossa casa com a desculpa de que iria casar minha tia e, portanto, teria que levá-la de volta.
Mas meu pai, evidentemente, não só não concordou com isto como também tentou coagi-la asseverando que casar minha tia sem que ela tenha se curado de sua doença seria como colocar sua vida em risco.
“Como? Não precisa se preocupar com isto. O pretendente é de uma família rica e me prometeu que, assim que se casarem, vão chamar um médico para tratar dela.”
Minha avó respondeu. Meu pai, por seu lado, trouxe seu costumeiro fatalismo à baila. Disse que por conta de sua má sorte ele teve que penhorar todos os quimonos de minha tia e que, por isso, não poderia devolver ela desta maneira; alegou também que minha tia tinha uma constituição frágil e, portanto, o trabalho campesino não lhe era adequado e que ele mesmo não tinha a intenção de permanecer na penúria para sempre e que, assim que melhorasse, iria sem falta conseguir um bom pretendente para ela na cidade e iria casá-la tomando o papel de pai adotivo para si. Criou, assim, uma série de pretexto e não devolveu minha tia.
Pobre de minha avó! Ela sem sombras de dúvidas não acreditou em nenhuma das palavras de meu pai. Mas minha avó era somente uma campesina ignorante do interior. Ela não tinha nenhum meio para conseguir suplantar esse amontoado de mentiras daquele ardiloso citadino.
Minha avó voltou para casa de mãos vazias. Meu pai certamente sentiu um grande alívio após ter se livrado desta Entidade do Infortúnio. Quem, no entanto, viu a angústia crescer em seu peito foi, sem dúvidas, minha mãe. Após tudo isto, na realidade, minha casa estava sempre em rebuliço. E minha tia?
Minha tia também, por certo, não estava contente com toda a situação. Eu me lembro dela ficar dois ou três meses sem dar as caras em casa. Pelo que ouvi posteriormente, ela havia, sorrateira e sozinha, fugido de meu pai e estava vivendo de serviços domésticos na casa de uma outra pessoa. Mas meu pai, nesta ocasião, pacientemente perguntava por todos os lados por ela e, por fim, acabara descobrindo seu paradeiro.
Na segunda vez em que trouxe minha tia de volta, nós nos mudamos mais uma vez. Fomos para uma casa no meio de uma colina que ficava a cinco ou seis quadras para o fundo de um templo e um crematório em Kuboyama, Yokohama.
Meu pai, como de costume, não fazia nada, mas de alguma forma conseguimos um dinheiro e alugamos uma casa simples feita para negócios no pé da colina a caminho de Sumiyoshi-chô. Meu pai começou uma loja de gelo ali.
O trabalho na loja de gelo era tarefa de minha tia. Minha mãe ficava na casa da montanha com as crianças e meu pai ia até a loja somente durante a tarde para tomar algumas notas no livro-caixa e supervisionar os negócios. Mas isso persistiu só no início, depois de um tempo ele só voltava para a casa da montanha em raras ocasiões. Em resumo: meu pai, graciosamente, expulsou mãe e filhos da vida a dois que ele levava com minha tia.
Nesta época eu já contava sete anos. E como eu nasci em janeiro e já tinha esta idade, estava bem na época escolar. Mas eu, que não tinha um registro de nascimento, não podia ir para a escola.
Sem registro! Eu ainda não disse nada sobre isto. Neste momento, portanto, tenho que explicar isto brevemente.
Por que eu não possuía um registro? De um ponto de vista superficial, o motivo era porque minha mãe ainda não tinha entrado no registro familiar de meu pai. No entanto, por que minha mãe ainda não estava no registro de meu pai? Eu acho que isso se deu, realmente, devido ao que escutei de minha tia muito tempo depois. De acordo com a história de minha tia, parece que meu pai nunca teve a intenção de tomar minha mãe como parceira para toda a vida e assim que encontrasse uma parceira melhor iria abandoná-la e foi por isso que, intencionalmente, não a registrou em seu registro familiar. Isto pode ter sido, muito provavelmente, só uma confissão disparatada que meu pai fez para ganhar a simpatia de minha tia. Ou, ainda, pode ter sido somente porque ele pensou que não fazia sentido colocar no registro familiar da ilustre família Saeki uma campesina que veio dos confins das montanhas de Kôshû como sua esposa. De todo modo, por conta disto é que eu não havia sido registrada mesmo já tendo sete anos.
Minha mãe viveu com meu pai por mais de oito anos sem reclamar desta situação. Contudo, era eu que não conseguia me calar. Afinal, por conta disto eu não conseguia ir para a escola.
Eu, desde pequena, gostava dos estudos. Nisso, eu implorava a todo momento para meus pais pedindo para ir para a escola. De tanto insistir, minha mãe resolveu enfrentar a situação e me colocar como filha bastarda em seu registro familiar. Mas o vaidoso de meu pai não aceitou isto.
“Não seja estúpida! Como que poderíamos registrá-la como filha bastarda? Se ela for registrada assim ela não vai conseguir levantar a cabeça por toda a vida.”
Foi isto que meu pai disse. E, ainda assim, meu pai não fez nenhum esforço para me colocar em seu registro para que eu pudesse frequentar a escola. Era preferível que eu não fosse para a escola. Ele, então, ao menos me ensinou a ler um ou outro kana? Meu pai também não fez isso. E, no fim, ele continuou o dia todo só bebendo, jogando um carteado e se divertindo.
Eu alcancei a idade escolar. Mas não pude ir para a escola. Mais tarde em minha vida li uma passagem mais ou menos nestas linhas. E então, ah!, o que eu senti quando a li! A passagem dizia:
Após a instauração do grande Império Meiji, a troca com os
países do ocidente começou. O Japão, país que estava adormecido, de repente acordou e começou a andar
como um gigante. Em um único passo facilmente cobriu meio século inteiro.
Quando, nos primeiros anos da era Meiji, as diretrizes educacionais foram promulgadas, uma escola de
nível básico foi levantada em todo e qualquer mataréu de interior e os filhos de todas as pessoas,
conquanto não possuíssem nenhuma limitação física ou mental, passaram a receber do estado uma educação
compulsória a partir de abril do ano em que completavam sete anos. E, assim, toda uma nação recebeu as
benções da civilização.
Mas eu, que não tinha um registro de nascimento, só conheci as letras que compõem a palavra “benções”, nada mais. Eu não nasci em um mataréu de interior. Morava perto da Capital Imperial, em Yokohama. Sou filha de uma pessoa e não tenho qualquer limitação física ou mental. No entanto, eu não conseguia ir para a escola.
Escolas primárias e secundárias foram levantadas. Também foram feitas escolas para mulheres, escolas técnicas, universidades e centros de estudos. As filhas e filhos dos burgueses vestiam roupas ocidentais, calçavam sapatos e alguns até mesmo cruzavam os portões destas construções de automóveis. Mas no que tudo isso me diz respeito? Isso, por acaso, me fez um tanto mais feliz?
Eu tinha duas amigas com quem brincava e que moravam a meio quarteirão de nossa casa subindo a colina. Eram duas meninas que tinha a minha idade e que frequentavam a escola. Elas desciam o caminho da colina todos os dias pela manhã vestidas com seus hakama castanho-avermelhados e com grandes laços vermelhos nas laterais da cabeça enquanto seguravam e balançavam as pequenas mãos em meio a uma cantoria. De cócoras ao pé da cerejeira em frente de casa com quanta inveja, com quanta tristeza eu olhava aquela cena!
Ah!, se ao menos não existe escolas neste mundo será que tudo teria se resolvido sem que eu tivesse tido que chorar tanto? Entretanto, se assim fosse, eu certamente também não conseguiria presenciar este tipo de felicidade que aquelas crianças transmitiam.
É claro que naquela época eu ainda não tinha entendido que a felicidade de todas as pessoas é sustentada pela tristeza de terceiros.
Eu queria ir para a escola com minhas amigas. No entanto, não o consegui. Queria ter tentado ler livros. Queria ter tentado escrever. No entanto, nem meu pai nem minha mãe me ensinaram uma letra sequer. Meu pai não tinha nenhuma boa vontade e minha mãe era analfabeta. Eu pegava os jornais que serviam de papeis de embrulho das compras que minha mãe fazia e os estendia no chão e, apesar de não saber o que estava escrito, lia-os como que encaixando o que eu imaginava.
Provavelmente era meados do verão daquele ano. Meu pai, por coincidência, encontrou uma escola particular não muito longe da loja de minha tia na mesma Sumiyoshi-chô. Era uma escola que não exigia registro nem nada do tipo de seus alunos. Ficou, então, decidido que eu estudaria ali.
Contudo, de escola aquilo só tinha mesmo o nome. Era, na realidade, uma casa conjugada de seis tatames em um cortiço. Um quarto mal iluminado, coberto de fuligem com tatames imundos e com os enchimentos saindo pelos rasgos. Tinha também cinco ou seis caixotes vazios de cervejas Sapporo deitados. Eram as mesas das crianças. Ali foi o berço da minha escrita.
A Mestre – que era como as crianças a chamavam – era uma mulher que aparentava estar nos seus 45, 46 anos, trazia um pequeno coque de casada e tinha um avental por cima de seu surrado yukata.
O percurso que eu fazia a pé até essa incrível escola era, com o embrulho de pano amarrado perpendicularmente nas costas, do alto da minha casa na montanha, passando pela loja da minha tia e seguindo até a escola. Provavelmente as outras crianças se encontravam numa situação similar a minha. Além de mim, dez ou mais crianças pisavam nas ripas que cobriam o esgoto e passavam pelas vielas estreitas a caminho da escola.
Após meu pai me colocar nesta escola, me colocar nesse cortiço contiguado, me disse bem clara e compreensivelmente:
“Filha, você é uma ótima garota, né? Não comente nada a respeito de que você está frequentando a escola da Mestre com os senhores que vão vir aqui em casa, está bem? Se você comentar com as outras pessoas, papai pode se complicar, entendeu?”
Tudo indicava que a loja da minha tia prosperava enormemente. No entanto, a despeito disto, parece que não tinham um ínfimo lucro. Quer dizer, não dava para saber se existia lucro, afinal, não tinha como qualquer coisa dar certo enquanto meu pai seguia bebendo e jogando seu carteado todos os dias. E, como se não bastasse, os boatos acerca de minha tia e meu pai começaram a ganhar mais força.
Mesmo assim, a situação na casa de minha tia ainda era aceitável. Quem estava em reais apuros éramos nós, os filhos e esposa de seu companheiro. Aconteceu em um dia qualquer. Não tínhamos nada para comer. Mesmo após o entardecer, não tínhamos sequer um grão de arroz para comer. Nisto, minha mãe pegou meu irmão e eu e foi ao encontro de meu pai. Meu pai estava na casa de um amigo. Mas, indiferente ao quanto minha mãe queria encontrá-lo, ele não saiu de dentro da casa.
Minha mãe, certamente, já não conseguia mais suportar aquilo. Ela abruptamente abriu a porta de correr da varanda e subiu na sala de tatames. Quatro ou cinco homens estavam ali sentados em roda jogando seu carteado sob uma lâmpada clara.
Minha mãe explodiu de raiva.
“Vejam só! Era exatamente o que eu imaginava! Enquanto em casa não tem um grão de arroz, enquanto eu, enquanto as crianças não têm o que comer... Com que cara você consegue ficar aqui tão despreocupado bebendo e jogando carta!?”
Meu pai também visivelmente irritado, levantou-se com o semblante alterado. Nisto, empurrou minha mãe da varanda e, descalço, desceu e veio em sua direção para socá-la. Se os homens que estavam presentes não tivessem agarrado meu pai pelas costas, não tivessem acalmado minha mãe, não tivessem levado meu pai de volta para o quarto, se não fosse tudo isso, não consigo nem imaginar o que minha pobre mãe teria enfrentado nas mãos de meu pai.
Graças a essas pessoas minha mãe não apanhou. Em troca, nós tivemos que nos afastar daquela casa profundamente abatidos e sem ter recebido um grão de arroz, um mísero centavo sequer.
Remoendo aquela tristeza no peito, subimos a colina em silêncio.
“Ei, esperem aí.”
Escutamos a voz de meu pai. Ficamos subitamente contentes ao imaginar que ele vinha nos dar o dinheiro para o arroz. Mas não era este o caso. Quão cruel e demoníaco poderia ser meu pai?
Ele se aproximou de nós que estávamos parados, à espera de auxílio, e gritou a plenos pulmões:
“Que ousadia a sua em me envergonha na frente dos outros, Kikuno! Que desgraça!, por sua causa eu perdi tudo! Você vai pagar por isso!”
Meu pai já tinha um de seus geta na mão. Então bateu com ele em minha mãe. Logo em seguida pegou minha mãe pelo colarinho do quimono e ameaçou jogá-la do penhasco. Por já estar escuro não dava para enxergar, mas se fosse pela tarde daria para ver que meu pai queria jogá-la no fundo daquele alto penhasco cheio de arbustos e espinheiras emaranhadas.
Meu irmão se assustou e começou a chorar nas costas de minha mãe. Eu, atordoada, corria em volta dos dois e tentava puxar a manga de meu pai para impedi-lo, mas era tudo em vão. Naquele momento me lembrei que Koyama, amigo de meu pai, morava a meio quarteirão abaixo dali em uma casa conjugada de portão de madeira na beira da estrada. Corri para aquela casa chorando profusamente.
“Então foi isso mesmo que aconteceu...” O dono da casa disse e, abandonando o hashi que tinha em mãos para seu jantar, veio correndo em minha direção.
Pouco tempo despois de ter começado a frequentar a escola particular, chegou o Festival Obon. A Mestre falou para as crianças trazerem 1200 gramas de açúcar branco como presente de fim de Obon. Essa era, muito provavelmente, a única remuneração que a Mestre recebia. No entanto, eu não podia contribuir. Além das dificuldades financeiras, o rebuliço generalizado em que minha casa andava não permitia nenhuma folga para que se preocupassem com minha escola. De qualquer modo, por conta disto, eu tive que me afastar da escola sem que tivesse aprendido realmente vinte ou trinta dos katakana. A loja de minha tia não resistiu até o fim do verão. Os dois voltaram para a casa da montanha. A casa começou a ficar ainda mais caótica. Meu pai e minha mãe brigavam quase todos os dias.
Sempre que os dois brigavam eu me empatizava com minha mãe. Passei a ter mesmo antipatia por meu pai. Por conta disto, comecei a apanhar junto de minha mãe. Em certa ocasião, por exemplo, eu fui, junto a minha mãe, trancada para fora no meio da madrugada durante um aguaceiro terrível.
Meu pai e minha tia seguiam harmoniosos como sempre. Mas a família de minha mãe insistia a todo momento para que minha tia voltasse para casa. E então finalmente minha tia consentiu com o retorno e meu pai, por seu lado, também disse que a deixaria voltar. Não é nem preciso dizer que tanto eu quanto minha mãe ficamos contentes com essa notícia.
Entretanto, meu pai disse que, a respeito da devolução de minha tia a sua família, é claro que ele não poderia enviar ela sem nada. Então, com o dinheiro que ficou do fechamento da loja comprou uma roupa de baixo longa e feita de crepe de seda, uma faixa de cintura para quimono, um guarda-chuva ocidental que somados, na época, sairam por mais de 17 ou 18 ienes. Semelhante à quando por iniciativa própria comprava tudo para mim enquanto eu ainda era criança, comprou de tudo para minha tia ele mesmo. O mesmo cuidado que uma vez ele direcionou para seus filhos agora ele direcionava para uma mulher.
Já era outono. Meu pai fez as malas para minha tia partir em viagem e colocou lá dentro até mesmo as melhores roupas de cama que tínhamos em casa.
Minha mãe, com meu irmão nas costas, e eu fomos juntas nos despedir de minha tia.
“Mil desculpas por te enviar para casa antes de seu casamento sem uma peça de roupa. Mas com uma sorte dessas, o que mais eu poderia ter feito...”
Minha mãe seguiu se desculpando desta forma para minha tia durante todo o caminho. Ela trazia os olhos cheio de lágrimas.
Nós fomos com ela até o meio do caminho e voltamos para casa. Meu pai, que seguiu até a estação em sua companhia, voltou para casa ao entardecer.
Ah!, Que noite agradável foi aquela! Mesmo meu coração de criança estava aliviado. Que noite calma, calma e pacífica!! Mas não nos era permitido uma vida tão sossegada assim. Isto é, no dia seguinte, ou quatro, cinco dias depois, não me lembro, meu pai também sumiu de nossa casa.
“Ah!, que frustração! Aqueles dois nos abandonaram e fugiram juntos!”
Minha mãe disse cerrando os dentes.
Movidos por uma viva e profunda cólera e com o coração em desamparo e desalento, sabendo que estávamos nos fiando em medidas completamente descabidas, andamos, após isto, procurando o paradeiro dos dois. Em um certo dia, então, nós achamos a roupa de cama que eles tinham nos levado estendida em uma casa e, claro, encontramos também os dois. Mas isso só nos proporcionou a experiência de sentir mais uma vez aquela dolorosa geta, dali não conseguimos nenhum auxílio sequer.
Mãe
Após sermos abandonadas pelo meu pai, ficamos sem rumo. No início ainda tínhamos algumas coisas que podíamos vender para comprar comida, mas com o tempo essas coisas também se esgotaram. Meu pai, evidentemente, também não nos enviou soma alguma de dinheiro.
Contudo, precisávamos continuar vivendo. Desta maneira, não seria o caso de eu criticar minha mãe que, após aquilo, foi morar com Nakamura, um ferreiro.
“Ele tem um ótimo salário diário. Disse que tira por dia um iene e cinquenta centavos... Desse jeito nossa vida vai ficar muito mais fácil do que foi até agora e você também vai poder ir para a escola, né”. Lembro-me de minha mãe se dirigindo a mim nestes termos e em um tom que soava como se implorasse meu perdão, implorasse para mim, uma criança ignorante e inocente.
O Nakamura vinha sempre com um pequeno embrulho de pano debaixo do braço e, quando menos percebemos, ele já estava passando a noite em nossa casa. Todas as manhãs ele vestia seu macacão azul de operário, pegava sua marmita e ia para a fábrica que ficava um tanto afastada de casa.
Nakamura tinha por volta de 48, 49 anos. Era um tanto grisalho, tinha olhos fundos e mesquinhos, era baixo e corcunda, em resumo: um homem de péssima aparência. Criada por meu pai que, por sua vez, foi criado como uma criança nobre e que, mais do que isto, desprezava os costumes dos trabalhadores, inconscientemente eu acabei sendo influenciada por ele e, por conta disto, não conseguia me afeiçoar ao mal-educado Nakamura, não conseguia sequer conversar com aquele sujeito. Então, mesmo que fosse só momentaneamente, eu me referia ao Nakamura, como se fosse um estranho, por “tio”. Minha mãe, de sua parte, não fazia nada para me corrigir e ela mesma, nas suas costas, o chamava, menosprezando-o, pelo apelido de “Bigode”
Eu retrucava tudo que o Nakamura falava. O Nakamura, por seu lado, sempre me maltratava alegando qualquer pretexto. Quando minha mãe não estava, por exemplo, ele comia escondido um punhado de arroz e colocava o pote em algum lugar alto em que eu não alcançava ou me enrolava no futon e me arremessava para o armário. Certa noite ele chegou até a me amarrar com uma corda de cânhamo como se fosse um temari e me pendurou num galho de uma árvore às margens de um rio próximo de casa.
Minha mãe provavelmente sabia o que acontecia. Mas ela não podia fazer nada. Continuava só amaldiçoando meu pai e minha tia que nos abandonara nesta situação. “Eles vão pagar pelo mal que fizeram, vão morrer de sede implorando por água no meio da rua!”, era o que minha mãe sempre dizia.
A coisa mais triste que me aconteceu enquanto vivia junto a Nakamura, no entanto, não foram os maltratados que sofri, foi ter sido separada de meu irmão.
Um dia escutei, indiretamente, a seguinte conversa entre minha mãe e Nakamura:
“Nesse caso, o melhor é levá-lo o quanto antes, né? Se ele vai mesmo se tornar filho deles, é melhor ir enquanto não cresceu muito.”
Foi o que Nakamura disse.
“Fico preocupada em dá-lo para aquele homem, mas, ainda assim, não tem nada que eu possa fazer”
Foi o que minha mãe disse.
Eu entendi de imediato o que tudo aquilo significava. Fiquei apreensiva.
“Mãe..., você vai dar meu irmão para alguém?” Eu acabei perguntando para minha mãe sem conseguir me conter por mais tempo.
Minha mãe me explicou, então, que quando ela e meu pai se separaram, ficou decidido que cada um deles iria ficar com uma criança, ela comigo e ele com meu irmão. No entanto, eu estava triste. Eu acreditava que meu único amigo de verdade era meu irmão, mas, acima de tudo, eu queria ter algo que eu pudesse amar. Eu pedia ardentemente para minha mãe:
“Eu prometo que a partir de amanhã eu deixo de brincar com meus amigos e passo a olhar o Taka-chan da hora em que eu acordar até a hora em que a gente for dormir, vou cuidar dele com todas as minhas forças para que ele não chore nem um pouquinho, então não mande ele para junto de meu pai não, por favor! Por favor, mãe. Além disso, vai ser tão triste fiar sozinha, mãe...”
Mas minha mãe não ouviu minhas preces.
“Não tem o que fazer, Fumi. Se ele ficar vai ser mais difícil tanto para mim quanto para você. Além do mais, justo agora quando seu pai finalmente disse que quer o filho de volta...”
Não importava o quanto eu pedia, minha mãe estava firme na recusa. Eu, diante daquilo, no dia seguinte, no fim, disse para minha mãe quando o Nakamura não estava por perto:
“Mãe, se o Taka-chan realmente tem de ir para junto de meu pai, eu não posso ir junto também não? Eu tenho medo de ficar sozinha na casa do tio se o Taka-chan não estiver aqui...”
Mas os adultos têm sua própria lógica e agem como se não entendessem nenhum destes sentimentos das crianças. Minha mãe rejeitou cruelmente todos os meus pedidos. Tudo isso era como se fosse meu próprio destino. Eu precisaria, no fim, dobrar meus joelhos diante desta força.
Pouco depois minha mãe estava indo, com meu irmão nas costas, levá-lo até meu pai. Meu pai e minha tia viviam, nesta época, em Shizuoka e era preciso tomar um trem para ir até lá.
Logo após meu irmão nos deixar, nos mudamos mais uma vez. Mesmo que diga “mudamos”, quero dizer, isto sim, que alugamos um cômodo na casa de outra pessoa por algum tempo. A casa, cercada por dormentes queimados e ao lado dos trilhos de trem, era composta por um cômodo de seis tatames e um de quatro tatames e meio. A família de cinco pessoas de um estivador ou algo do tipo vivia no cômodo de seis tatames e, portanto, nós vivíamos no de quatro tatames e meio. O quarto era assustadoramente sujo, a porta corrediça de papel era feita de jornais completamente amarelos e manchados e o enchimento dos tatames estavam saindo para fora.
Dentre os tatames o que tinha o maior buraco era o que ficava debaixo da janela. Minha mãe colocou o braseiro alongado sobre ele. Sobre os outros buracos minha mãe costurou pedaços de papelão com uma linha branca. E assim, finalmente, conseguimos conter a poeira que sai dali.
O Nakamura, como de costume, ia sempre para a fábrica. Minha mãe encontrou trabalho de catadora de feijões em um armazém um pouco afastado de casa às margens do rio. Mas eu não fui deixada em casa sozinha. Uma escola primária nas redondezas, após aceitar os pedidos insistentes de minha mãe, concordou em me matricular mesmo sem registro.
Eu estava, claro, contente. Ao frequentar a escola eu até mesmo consegui esquecer a tristeza de ter sido separada do meu irmão. O mais importante era que esta escola não era uma escola suspeita como a anterior que eu havia frequentado. Era uma escola por completo, com as instalações e tudo mais que se pode imaginar. As crianças também pareciam filhos de boas famílias, todas as garotas vestiam lindos quimonos e estavam sempre com um laço diferente na cabeça. Algumas destas crianças até mesmo iam para a escola acompanhadas de uma empregada ou empregado.
Contudo, isto me trouxe mais um sofrimento.
Logo após eu ter começado a frequentar a escola, disseram que não poderíamos usar mais a sekiban – alegaram que era porque fazia mal para os pulmões – e, em troca, mandaram que trouxéssemos papel e lápis para a escola. No entanto, minha mãe não tinha margem para de imediato comprar estas coisas. Então eu tive que faltar por dois ou três dias na escola até que minha mãe pudesse adquirir um caderno e um lápis.
Minha mãe quis me transferir para uma escola em que não exigisse tantos gastos. Mas, devido às questões de endereço residencial, isto era impossível.
Certo dia meu pai, repentinamente, veio nos fazer uma visita.
Parece que ele estava envolvido com algum negócio e trazia um grande embrulho de pano nas costas. Mas, até mesmo aos olhos da própria filha, seu rosto estava assustadoramente abatido.
Era o mesmo pai que me causava tanta antipatia. Mas, independentemente, eu estava um tanto feliz. Enquanto ele colocava sua bagagem no canto do quarto e conversava, sentado ao lado do braseiro alongado, com o Nakamura, eu cheguei mesmo a ver nele algo de muito diferente dos outros homens, senti mesmo vontade de ser mimada por ele. Nisto, quando o Nakamura deixou um pouco seu assento, eu aproximei minha boca de seu ouvido e sussurrei pedindo: “Me compra uma gomumari”. Ah!, o quanto eu queria aquela gomumari que todos na escola tinham!
Naquela noite, meu pai me levou ao festival que estava acontecendo em um templo. Assim que saímos da viela de casa ele se abaixando no meio do caminho disse: “que tal um cavalinho?” e me colocou em suas costas. Semelhante à como ele me colocava em seus ombros quando eu era mais nova.
Eu encontrei a gomumari numa barraquinha do festival. Meu pai falou para eu escolher a que eu mais gostasse. Eu peguei duas, uma grande e uma pequena que tinham flores vermelhas estampadas. Nas prateleiras da barraquinha ainda tinha um monte de coisas e eu fiquei olhando para aquilo tudo absorvida.
“Você quer mais alguma coisa”, meu pai me perguntou.
Eu, calada, balancei a cabeça negativamente.
“Pobrezinha...”, meu pai disse com a voz embargada enquanto se afastava dali.
“Você ainda quer muitas coisas, né? Eu também quero comprar isso tudo para você..., mas seu pai agora está bem pobre... Então, Fumiko, espero que você possa aguentar mais um pouquinho, né?...”
Eu sentia como se algo estivesse preste a transbordar do âmago do meu peito. Entretanto, por fim, eu consegui conter tudo aquilo. Até mesmo uma criança sentiria vergonha em chorar na frente de uma multidão de pessoas.
Nós andamos mais um pouco pelas feiras da noite e voltamos para casa. Após passar pela cidade iluminada e entrar naquela viela escura e triste meu pai me disse:
“Né, Fumiko, eu errei com vocês. Seja tolerante comigo, por favor. Seu pai foi imprudente o tempo todo e, sem nem perceber, fiz até mesmo você sofrer, me desculpe, por favor. Mas, Fumiko, seu pai não vai ficar assim miserável para sempre. Quando a hora chegar você vai ser a primeira de quem eu vou fazer a vida ficar mais leve. Só espere mais um pouco até lá...”
Meu pai claramente chorava. A sua voz estava embargada. Ele soluçava em choro. Eu também chorava.
No entanto, não chorava feito uma criança. Eu, como uma adulta que conhece as morais e os sentimentos humanos, falei-lhe:
“Não me importo com nada disso! Não interessa o quão pobre você seja. Só me leve para a casa com o senhor... Me leve para junto de Taka-chan...”
“Eu sei, eu sei!”, meu pai disse entre soluços nervosos. “Se me fosse possível, eu realmente levaria você comigo. Mesmo com todas as dificuldades, eu jamais deixaria que, pelo menos você, morresse de fome. Mas, filha, se eu levar você agora sua mãe ficará triste. Sua mãe só tem você em quem se apoiar. Então aguente só mais um pouco. Escute bem o que eu e sua mãe estamos te falando e espere mais um pouquinho. E então eu virei buscar vocês, virei sem falta buscar vocês...”
Meu pai parou de andar. Ficou ali parado a beira da estrada contendo a voz e chorando. Eu me agarrei as suas costas e, entre soluços, chorei incessantemente.
Mas meu pai não ficou assim para sempre. Depois de um tempo, em um tom de voz claro, disse: “então vamos para casa? Sua mãe está esperando” e começou a andar com passos fortes. Quando chegamos na entrada da viela que dava para nossa casa ele me desceu de suas costas e secou minhas lágrimas com um lenço branco.
Naquela noite meu pai colocou mais uma vez sua bagagem nas costas e voltou para sua casa cambaleante.
Após tudo isto, eu saia correndo pela viela todo dia ao entardecer para comtemplar os rostos das pessoas que passavam pela rua principal. Eu esperava encontrar meu pai que viria me buscar. Mas ele não apareceu para me buscar.
Nós nos mudamos mais uma vez.
A primeira coisa que minha mãe fez após nos mudarmos foi ir chorar para o diretor da escola primária para que ele autorizasse que eu frequentasse a escola. E então, finalmente, o desejo foi realizado.
Comparando com minha escola anterior, essa era bem maltratada. Tinham muitas crianças de famílias pobres e foi a primeira escola que parecia se adequar a mim. No entanto, eu era tratada ali como se fosse um estorvo.
Pela manhã, quando a aula começava, o professor chamava um a um o nome das crianças para marcar no caderno de presença. Mas ele, mesmo eu estando presente, não chamava meu nome como fazia com o das outras crianças. Ele chamava até o nome da garota a minha frente e, então, me pulava. Se pudesse pensar com a minha cabeça atual, aquilo não significaria nada, mas para uma criança, era uma vergonha. Por conta disto, quando eu não chegava propositalmente atrasada, eu abria a tampa da carteira e enfiava a cabeça ali dentro enquanto o professor chamava o nome das outras crianças ou abria um livro qualquer e ficava lendo. Quando o professor chamava minha atenção eu colocava as mãos debaixo do avental e ficava me remoendo.
Um mês – provavelmente – se passou desde que eu ingressara na escola.
Certa manhã eu entreguei o envelope com o dinheiro da mensalidade para o professor. Nisso, fui chamada imediatamente até a sala dos professores. Não sabia do que se tratava. Segui tranquilamente até lá.
O professor para quem eu havia entregado o envelope mostrou-o para mim e disse o seguinte:
“Isso não é só o envelope?! Não tem nada dentro. O que será que aconteceu, né?”
É claro que eu não sabia de nada. Eu só trouxe o envelope com a mensalidade que minha mãe havia me entregado.
“Não sei”
Não tinha nada que eu pudesse responder além disso.
“Não tem como o dinheiro ter sumido do nada. Aposto que você comprou algo no meio do caminho.”
“Não.”
“Então você perdeu ele no meio do caminho?”
“Não, estava dentro da minha mochila o tempo todo.”
O diretor também fez uma cara de raiva e começou a me culpar. Buscava me intimidar alegando que eu tinha comprado doces no meio do caminho. Por fim, ele até mesmo chegou ao ponto de vasculhar a minha mochila. No entanto, não tinha dinheiro algum nela e, tampouco, nada que parecia ter sido comprado por mim.
Os olhos do diretor e do professor que havia recebido o envelope cintilavam cada vez mais. Parece que haviam decido que eu tinha comprado algo com o dinheiro e repreendiam a imprudência de se fazer tal coisa. Eu, contudo, mesmo que me incriminassem, não podia falar o que eu não sabia. Me mantive firme e continuei afirmando não saber de nada.
Um ajudante foi até minha casa e chamou minha mãe para ir até à escola. Minha mãe estava, de início, meio que desorientada por ter sido chamada pelo diretor, mas ela, ao que tudo indica, parece ter entendido toda a situação imediatamente.
“Não tem como essa garota ter feito isso. Está tudo certo, ela não faria isso”
Foi o que minha mãe, me defendendo, disse. E prosseguiu:
“Eu mesma coloquei a mensalidade dentro da bolsa dela para que não a perdesse. Meu esposo me viu fazendo isto. A mochila fica pendurada na parede de casa e, provavelmente, ele é quem deve ter esvaziado o envelope quando estava indo para a fábrica trabalhar. Esta, afinal, não seria a primeira vez que isso acontece”
Logo em seguida minha mãe acrescentou como explicação diversos outros momentos em que coisa semelhante tinha acontecido. Na realidade, eu também o sabia bem. O lápis que eu deixara dentro do caderno de exercícios, ao chegar na escola já não estava mais lá. Então eu voltava chorando para casa. E isso não aconteceu só duas ou três vezes, muito pelo contrário.
A história de minha mãe, sem sombras de dúvidas, comoveu o diretor. Eu me lembro de cada palavra que ele disse para minha mãe e que eu, ao lado dela, também escutei.
“Pobre dessa garota tão dedicada que tem de sofrer com essas coisas. O que você acha... Na medida do possível, eu posso tomar conta dela, você não acha que seria melhor eu adotar essa criança? Não seria melhor assim?”
Pensando agora, não sei se era porque o diretor realmente havia sentido empatia por mim, ou se ele, que não tinha filhos, só viu uma boa oportunidade para conseguir um. Contudo, eu fiquei feliz com o fato de ele estar pensando no meu bem e também não nutria mais aquela suspeita cruel contra mim.
“Muito obrigada!”, minha mãe agradeceu ao diretor. Mas ela, claro, não poderia me deixar ir. Então continuou: “mas essa menina é minha única filha e é também minha única felicidade. Não importa, portanto, o tamanho da dificuldade que enfrentemos, eu quero educá-la, senhor, com minhas próprias mãos...”
O diretor não insistiu mais no assunto. Eu, guiada pela mão de minha mãe, voltei para nosso ninho.
Após estes acontecimentos, é evidente que houve uma briga entre minha mãe e o Nakamura. O Nakamura, mesmo antes disso tudo, sempre ia beber fora de casa e, na certa, era para isso que necessitava do dinheiro da mensalidade de minha escola, mas, após isto, a coisa ficou muito pior. Minha mãe as vezes achava comandas ou notas fiscais de restaurantes que escapuliam dos bolsos de sua roupa de trabalho. A despeito disto, ele ainda reclamava com minha mãe dizendo que ela não usava o carvão direito e exigia também que economizasse com os gastos de cozinha.
Minha mãe voltou a ter dias difíceis. Na minha opinião, tudo certamente ficou mais sofrível porque, diferente de meu pai com quem ela passou a viver junto porque o amava, se tratava do Nakamura com quem ela só foi morar junto por razão das conveniências do dia a dia. Mas, em certa feita, Nakamura foi demitido da fábrica sob a acusação de que estava roubando todo tipo de máquinas para vender por fora.
Com isto, minha mãe se separou de Nakamura.
Após a separação entre minha mãe e Nakamura, juntamos nossas coisas e fomos para a casa de um conhecido. Minha mãe me deixava sob os cuidados desse conhecido e ficava o dia todo rodando atrás de um emprego. Todas as manhãs ao sair de casa minha mãe me dizia:
“Né, não é para sair para brincar na rua principal, viu? Vai que o Nakamura nos acha”
Pelo que posso presumir, minha mãe deve ter se separado do Nakamura sem o consentimento deste.
Minha mãe rodava o dia todo atrás de emprego. Mas não conseguiu achar nada que fosse adequado pela cidade. Nisso, o irmão mais velho de uma senhora conhecida de minha mãe, que trabalhava numa fábrica têxtil no interior do subúrbio como supervisor, a ajudou a conseguir um emprego por lá.
Minha mãe, alegre, me contou a história:
“Essa pessoa, né, parece que é o supervisor de lá! Por ser o supervisor ele com certeza tem bastante influência, se a gente conseguir a ajuda dessa pessoa, sem dúvidas que eles irão se solidarizar com a gente. De alguma forma vai dar certo!”
O espírito de dependência de minha mãe era tão grande que deixava desgostosa até mesmo uma criança como eu. Minha mãe era do tipo de mulher que não conseguia dar um passo por conta própria. Era o tipo de mulher que precisa de alguém para apoiá-la para dar nem que seja um único passo. Mas eu era só uma criança. Eu tinha que obedecer a minha mãe.
Apesar de ter ido até a fábrica têxtil, nada de bom veio dali. Principalmente porque a pessoa em que minha mãe estava confiando não era supervisor nem nada do tipo. Na realidade, ele não passava de mais um funcionário qualquer que trabalhava na cozinha. Mas, de todo modo, nós passamos por volta de três meses por lá. Não me sobraram, coisa estranha, nenhuma das memórias deste tempo. Só restou uma única lembrança. Certo dia meu pai apareceu de repente trazendo consigo um docinho coreano.
Ah!, como fiquei feliz naquele momento! Meu pai certamente estava cumprindo a promessa de vir me buscar para morar com ele. Julgava que, se ele estava vindo me buscar, com certeza estava levando uma vida mais tranquila.
Contudo, a realidade não era essa. Não havia nenhuma mudança da parte de meu pai. Mas, como posso dizer, ele tinha ficado um tanto roto. Não era mais aquele pai que havia me comprado a gomumari.
Quando meu pai chegou, minha mãe tirou folga da fábrica e passou um tempo com ele. Passaram um tempo junto como quando ainda não tinham se separado. Mas, quando menos percebi, meu pai novamente sumiu de casa. Eu e meu pai nos distanciamos de tal maneira que eu não cheguei a notar por quanto tempo ele ficou em casa ou quando ele tinha partido.
Nós, novamente, voltamos para a cidade. Parece que minha mãe tinha conseguido um emprego numa fábrica de algodão. Nós alugamos e passamos a morar numa casa conjugada e eu, como da última vez em que tinha ganhado a compaixão do diretor da escola, voltei a frequentar a escola. Não posso dizer que nossa vida ficou mais tranquila já que não tínhamos nada desde o início, mas nossas vidas estavam, comparativamente, mais favoráveis agora que estávamos vivendo por nossa conta sem nada para nos puxar para baixo. Conquanto nenhuma calamidade se abatesse sobre nós, achava que nós, mãe e filha, poderíamos continuar vivendo nosso dia a dia afetuoso, apesar de solitário.
Quis, com meu coração de criança, rezar para que nossa vida continuasse assim para sempre. Mas isto era, claro, impossível. Minha mãe e seu espírito de dependência. Além disso, ela também era – pensando agora – uma mulher que não conseguia viver sem um homem e, então, mais uma vez foi dividir a casa com um rapaz jovem.
Esse homem era sete ou oito anos mais novo que minha mãe e tinha, naquela época, por volta de 26, 27 anos. Eu, claro, o conhecia de vista já que ele alugava um quarto na casa de uma viúva conhecida de minha mãe. Ele tinha longos cabelos que viviam empapados de óleo e divididos perfeitamente no meio, trazia um lenço azul enrolado no pescoço e passava com frequência por ali baforando um cigarro.
Quando ela decidiu que ia morar com esse homem, me disse:
“Ele tem fama de ser muito trabalhador. Além disso, ele ainda é jovem e se pelo menos ele continuar do jeito que é, desta vez com certeza a vida fica mais fácil para mim e para você”
Eu fiquei amargurada. Por alguma razão fiquei até mesmo triste. Um pouco atrevida, indiretamente tentei me opor a minha mãe:
“Não sei se ele é tão trabalhador assim não, mãe... Ainda ontem, ou antes de ontem, mesmo uns dias atrás... eu sempre vejo ele andando por aí atoa e se divertindo”
Minha mãe, contudo, não deu bola para minha objeção. Ela enfatizava que a tia viúva tinha dito que ele era muito trabalhador e saiu em defesa daquele homem alegando que foi devido a uma gripe que ele folgou da fábrica e, por isso, estava se divertindo ontem e antes de ontem.
Menos de três dias se passaram após esta conversa e aquele homem veio para nossa casa e, lenta e insistentemente, começou a dividir o teto conosco.
Esse homem se chamava Kobayashi. Era um estivador, mas era um dos mais preguiçoso que a gente pode encontrar. A viúva de meia idade e com dois ou três antecedentes criminais que alugava a casa para ele – na realidade eles eram mais como um casal – não deu conta dele e o empurrou para minha mãe. Incitou-a na ideia como se fosse algo completamente seguro e conseguiu que minha mãe ficasse com ele.
Após entrar dentro de nossa casa, Kobayashi não saiu nem por um momento para o lado de fora. Quando raramente ia para o trabalho, voltava, sem um rumo certo, para casa com a desculpa de que tinha chegado tarde e perdido o trabalho. Minha mãe também, não muito depois, deixou a fábrica em que trabalhava e passava o dia todo dormindo com ele. E, pareciam empenhados com todas as forças a me distanciar deles próprios.
Foi em uma certa noite. Já passavam das noves, mas eu ainda estava acordada e revisava alguma matéria da escola ou algo do tipo em um canto do único cômodo da casa de seis tatames.
Minha mãe e Kobayashi se divertiam, atrevidamente dentro do futon que estava bem do meu lado, mas, em certa feita, minha mãe repentinamente me mandou ir comprar batata doce assada. Esticou o braço ainda deitada, tirou e jogou em minha direção a bolsa de fecho metálico que estava debaixo do futon. Cinco centavos em moedas de níquel e três ou quatro moedas de cobre saíram rolando pelo tatame.
“Batata doce assada essa hora, mãe...”, eu protestei descontente contra minha mãe. “A loja de batata doce assada fecha cedo, de certo já estão dormindo.”
Minha mãe, irritada, disse secamente:
“Não existe só aquela loja de batata doce. Se você for até a loja ao lado da casa de banho da rua de trás, eles certamente ainda estão acordados, então vá logo...”
A loja de batata doce ao lado da casa de banho quente da rua de trás. Ao escutar isso, meu coração de criança foi tomado por um calafrio. Para ir até lá eu deveria passar pela grande árvore da floresta do templo de Hachiman.
“Mas mãe, será que não pode ser um doce? Tem uma loja de doces bem ali do lado num lugar claro.”
“Não pode ser, se não for batata doce assada, não adianta”, minha mãe gritou em um tom de voz estridente.
“Você não vai escutar o que sua mãe está falando? Vá logo, sua covardezinha. Do que você está com medo?”
Fiquei com medo da atitude ameaçadora de minha mãe e me decidi.
“Quantas eu tenho que comprar?”
“Cinco centavos rolaram para perto do pé da mesa baixa, compre isso aí de batata.”
Disse minha mãe, de dentro do futon, apontando a direção com o queixo. Eu, relutante, pequei o níquel e me levantei. Então peguei a bolsa de compras da cozinha e desci para o chão batido que dava para fora.
Ao abrir a porta, olhei para fora amedrontada e, então, vacilei. Lá fora o vento soprava forte e estava um breu. O som seco das plaquinhas de madeira do vigia do fogo podia ser ouvido de longe. Obliquamente à esquerda estava a floresta do templo de Hachiman coberta por uma completa escuridão. A floresta parecia muito mais imponente vista agora do que quando era vista pela tarde e pairava ali pesadamente. Eu teria que passar debaixo daquela árvore inteiramente só. Mas não tinha jeito. Eu tinha que ir.
Estava petrificada e hesitante ao lado de fora do limiar da casa. Neste momento, minha mãe se levantou de repente e disse: “você não vai logo?”, me colocou para fora e fechou a porta ruidosamente. Se chegamos até aqui, tem de ser assim mesmo. Eu reuni toda a coragem que tinha e, como se fosse morrer, corri com todas as forças sem nem mesmo respirar. Não me lembro em absoluto quando e como eu passei por aquela árvore. Enrolei as batatas doces assadas no embrulho e, como se algo estivesse me perseguindo, corri com todas as minhas forças e passei novamente por aquela árvore e voei para dentro de casa.
Mas, ah!, aquele momento! Eu instintivamente desviei o rosto e me senti obrigada a soltar porta afora para a escuridão mais uma vez.
Minha mãe não queria comer batatas. Ela só queria me colocar para fora de casa.
A primavera chegou e junto dela a cerimônia de encerramento da escola.
Mas, para mim que estava frequentando a escola por pura misericórdia, não havia diploma algum preparado. Por conta disto, eu também não poderia prosseguir meus estudos. Minha mãe, mais uma vez, foi até o diretor da escola interceder por mim. Como resultado, ficou decidido que eu receberia um certificado falando que tinha completado o primeiro ano comum. Assim, eu consegui ir para a cerimônia de encerramento vestida com um quimono de mangas longas, com estampas em um padrão de respingos e amarrado com uma faixa de crepe de algodão cúrcuma que ganhei do filho de uma conhecida de minha mãe.
Na parte da frente do salão cerimonial uma montanha de diplomas e prêmios de distinções estavam empilhados em uma mesa coberta por um pano branco. Os professores e os pais das crianças em quimonos de colarinho branco e com brasões de famílias se enfileiravam respeitosamente. As crianças, também vestidas com suas melhores roupas, estavam, por sua vez, enfileiradas à frente da mesa.
A cerimônia teve início. Após o diretor proferir algumas palavras, as crianças foram chamadas uma a uma para receber seus diplomas e os prêmios. Elas recebiam seus diplomas e prêmios felizes e sorrindo com uma expressão de orgulho e logo em seguida se afastavam.
Por último, chegou minha vez. Quando fui chamada eu me afastei da fileira de crianças e me aproximei da mesa com um, claro, sorriso no rosto. Fiz uma reverência e ergui alto minhas duas mãos. O diretor me entregou o papel.
Ah!, aquilo realmente não passava de um mero papel. Todas as outras crianças receberam o diploma em um papel duro e quadrado com letras impressas gravadas, contudo, somente o meu veio em uma folha de caligrafia fina dobrada ao meio grafada alguma coisa à pincel em algumas letras miúdas. Ao receber aquilo das mãos do diretor, o papel dobrou-se frágil em minhas mãos.
Como me senti insultada! Só conseguia achar que tudo aquilo, todos meus colegas de classe com seus diplomas e prêmios bem-feitos, todos os professores e pais enfileirados, a própria cerimônia como um todo, tudo isso parecia ter sido feito só para me insultar. Se soubesse que teria sido assim, preferiria nem ter ido. Senti raiva de mim mesma por ter chegado ao ponto de ter pegado um quimono masculino para poder participar da cerimônia.
Se fosse só isso ainda estava bom. As condições de casa estavam, dia após dia, ficando cada vez piores. Nós basicamente estávamos vendendo nossas coisas para poder comprar comida. Nosso recipiente de colocar comida se fora. Vendemos também o braseiro alongado. Chegara a minha vez. Isto é, fazer-me uma garota de programa em um bordel.
Aconteceu em certo dia.
Até uma criança como eu sabia que estávamos com dificuldades para conseguir mesmo nosso alimento, mas, a despeito disso, minha mãe comprou para mim um grampo de cabelo ornamentado com flores vermelhas de ameixeira. Era exatamente o que eu tinha desejado um tempo atrás e, portanto, eu estava radiante de felicidade.
Minha mãe penteou meu cabelo e ajeitou o grampo em minha cabeça. Como eu só tinha um quimono para todas as ocasiões, é claro que minha mãe não comprou um novo, mas ela o arrumou e o vestiu em mim. Enquanto me vestia ela gentilmente falava coisas do tipo “você sabe como a gente está em dificuldades”, “é uma pena ter que fazer você passar por isso”. Eu estava a ponto de desabar em choro.
No entanto, neste momento, minha mãe mudou o tom da conversa e me disse em uma voz alegre:
“Mas, sabe, Fumi, felizmente tem um lugar que pode receber você. Lá não é tão pobre quanto aqui e pode até ser que você consiga achar um atalho para subir na vida.”
Eu estava triste com a ideia de me afastar de minha mãe e ir viver em outra casa. Entretanto, eu, mesmo que fosse só uma criança, sabia pelo que a gente vinha passando e, portanto, se realmente tinha um lugar como esse, eu não me importaria de ir. É claro que eu não sabia o que ela queria dizer com “um atalho para subir na vida”. Mas, se existia essa possibilidade, sem sombras de dúvidas deveria ser algo bom. Desta forma, meio triste e meio feliz, eu, carregando um sentimento inominável, sai de casa com minha mãe.
Minha mãe me levou até uma casa um tanto elegante. Nós nos sentamos na esquadrilha do vestíbulo e esperamos por um tempo. Pouco depois uma mulher de meia idade com uma faixa de cetim preta bem amarrada na cintura apareceu e cumprimentou, um tanto arrogante, minha mãe.
Pensando agora, aquela era uma casa de agenciamento que tomava conta de gueixas e meretrizes, em outras palavras: era uma casa de tráfico humano. A mulher de meia idade prescrutava meu rosto com atenção. Então, diante desta mercadoria, as duas começaram uma negociação.
“Não importa como olhe para essa menina, ela ainda é muito nova, né. Até ela virar algo que valha a pena vai, mesmo que sejamos generosas, tomar ainda uns cinco, seis anos. Os custos durante esse período não vão ser pequenos. Principalmente porque não dá pra deixá-la só se divertindo por aí, teríamos que colocar ela na escola e formá-la nem que seja no ensino básico. Além disso, ela vai precisar receber treinamento para conseguir lidar com os fregueses. Então, até que tudo isso seja feito, vai ser necessário bastante dinheiro, né...”
Essa era a forma como o outro lado barganhava.
Minha mãe... Minha mãe com certeza estava verdadeiramente triste. Ela, em meio a soluços, respondeu:
“Eu... Não é como se eu estivesse dando essa garota para ser prostituta porque eu preciso de dinheiro. Eu não me importo com o dinheiro. É só que a gente é muito pobre e, de verdade, pensei que talvez dessa forma ela pudesse finalmente ser feliz.”
“Isso lá é verdade. Mesmo prostitutas, quando dão certo, podem ter uma vida bem boa...”
Dessa maneira, a compradora estava tocando no ponto fraco de minha mãe e, após ceder seu turno de fala, minha mãe, como se aguardasse essa ocasião, tirou da manga uma cópia da árvore genealógica de meu pai e de seu registro familiar para impressionar sua interlocutora com minha suposta ascendência nobre por parte paterna alegando que eu era de não sei que família aristocrática. E acrescentou:
“Desta forma, dá para perceber que ela tem, em vários sentidos, pedigree, né? Por isso mesmo é que eu acho que certamente ela vai ter sucesso...”
A interlocutora de minha mãe, provavelmente, deve ter pensado que a carapuça estava bem-posicionada. Como minha mãe não parecia estar preocupado com o dinheiro, a conversa estava quase que definida.
Eu, é claro, percebi que a conversa com que minha mãe tinha me arrastado até ali era um tanto diversa da realidade. No entanto, eu não fazia ideia do que exatamente se tratava ser uma prostituta ou uma gueixa. Além disso, como ela falou que ia me fazer estudar e aprender boas maneiras, aquilo não parecia assim tão ruim.
Entretanto, quando a conversa começou a ser sobre para onde eu iria, minha mãe começou a pensar. A mulher de meia idade falou que eu iria para Mishima, em Tokaidô. Minha mãe ao ouvir “Mishima” de repente teve seu rosto tomado por uma melancolia evidente.
“Será que não tem como levar ela pra um lugar mais perto?”, minha mãe disse em tom de súplica. “Mishima é muito longe e eu não conseguiria ir encontrá-la com frequência...”
“Isso é verdade”, a interlocutora respondeu com certo constrangimento. “Mas, infelizmente, não temos nenhum lugar para oferecer nas proximidades, o único disponível é em Mishima...”
Minha mãe ainda insistiu incontáveis vezes para tentar conseguir um lugar mais próximo, mas sua interlocutora não deu outra opção. Nisto, minha mãe finalmente pareceu desistir.
“Então, vamos deixar para uma próxima oportunidade.”
Minha mãe, desta forma, recusou a oferta com pesar. Então nós voltamos mais uma vez para nossa casa escura e solitária. Pensando agora, só posso imaginar a “felicidade” que me esperava num lugar como aquele. Não só isso, tenho a impressão de que era mentira que minha mãe realmente acreditava que aquela era a melhor forma de me fazer feliz. Não fosse isso, se ela realmente achasse que eu seria feliz ali, ela não teria recusado a oferta sob o pretexto de não poder me encontrar vez ou outra.
Como não conseguiram vendar a última “mercadoria”, nossa casa continuava em situação crítica. O dono vinha todos os dias cobrar o restante do aluguel. As vendas próximas de casa não nos venderiam mais nada fiado. Nisto, minha mãe e Kobayashi pareciam tramar algo. Em certa noite, nós pegamos todos os móveis restante da casa e fugimos na calada da noite. Fomos parar numa casa de hospedagem barata que ficava no fim de uma periferia. Nós finalmente tínhamos chegado ao fundo do poço.
Nós alugamos um cômodo de três tatames. Nos outros quartos viviam um em cima dos outros toda sorte de pessoas, um trabalhador braçal, um reparador de guarda-chuvas, um adivinho, um ilusionista e um carpinteiro desajeitado. A maioria deles, faça chuva faça sol, andavam se divertindo por aí e, só quando a necessidade de urgência se tornava eminente, é que eles, relutantemente, vestiam seus happi e desenrugavam seus hakama para sair à trabalho. Na volta para casa, entornavam litros de um saque barato e voltavam completamente embriagados sem atinar bem nem em quem eram. Nisto uma confusão generalizada se instaurava. Começavam a fazer apostas em que um tentava enganar o outro com conversas completamente sem nexo e por fim, uma briga assustadora tinha início.
Em um ambiente como este, o preguiçoso do Kobayashi, obviamente, não iria trabalhar de jeito nenhum. Ao ponto que até uma criança, como eu era na época, se irritasse, mais do que isto: ao ponto que eu chegasse a me surpreender em como o Kobayashi conseguia ficar dia após dia e durante o dia inteiro deitado dormindo no canto do quarto sem dar mostrar de cansaço.
Era raro que tivéssemos três refeições em um dia. Era muito mais frequente que ficássemos o dia todo sem comer. Eu estava o tempo todo de estômago vazio. Ainda hoje eu consigo me lembrar deste tempo em que passei fome. Consigo me lembrar de quando eu andava pela cidade com o estômago roncando e pregado de fome e ao achar no lixo de alguma casa alguma comida queimada e completamente preta a enfiava na boca. E como eu achava aquilo gostoso!
“Desculpe por submeter você a esse sofrimento”, minha mãe sempre me dizia se desculpando com o rosto tomado pela vergonha.
Eu disse: “é porque a gente está junto daquele homem!”. Minha mãe fez uma cara ainda mais pesarosa e disse:
“Eu pensei que ele ia começar a trabalhar, mas ele é caso perdido. Mas eu já tive o suficiente, já aprendi minha lição. Não importa o que os outros digam, é bem melhor, mesmo que tenhamos que comer pedras, viver por nossa própria conta. A gente provavelmente não teria caído tão fundo no poço se tivéssemos continuado desde aquela época vivendo só nós duas.”
Minha mãe estava cabisbaixa e triste. Até as palavras lhe faltaram por um tempo. Mas quando ergueu o rosto mais uma vez, ela, como se tivesse se resignado, disse em tom claro:
“Mas agora, mesmo que eu queira me separar dele, estou numa situação que vai ser difícil fazer isso. Se ao menos eu tivesse realmente me separado dele quando pensei em fazê-lo...”
Eu não sabia do que se tratava. Mas sua falta de amor-próprio me deixava consternada.
Minha mãe continuou admoestando Kobayashi a todo tempo. Mas ele não funcionava como um moinho manual. Minha mãe, resignada, começou a trabalhar em casa fiando cânhamo. Com o tempo, mesmo minha mãe, desistiu disso. Ela parecia estar se sentindo mal de alguma forma e só se deitava e se levantava.
Mas, de todo modo, eu ainda era uma criança. Não importa o tamanho do infortúnio, eu queria sair de casa para brincar. Certo dia em que eu estava brincando em um aterro das redondezas com as crianças da vizinhança, minha mãe apareceu de repente com um passo pesado e me chamou.
“Que foi, mãe?”, eu respondi. Então minha mãe com uma voz fraca me perguntou se não tinha nenhum pé de bexiga por perto. As crianças eram gentis. Todas me ajudaram a procurar por aquela área pela planta. E então facilmente encontramos uma debaixo da ponte que ficava bem ali do lado. Uma das crianças já sabia da existência daquele pé de antemão porque há muito tempo esperava ele crescer, mas, ainda assim, ela mesma foi lá e o colheu para minha mãe.
“Obrigada”, minha mãe disse e as partiu bem nas raízes. Guardou as raízes em sua manga do quimono e voltou para casa.
Naquela noite, eu vi só as sementes amarelas de bexiga enroladas em um jornal velho ao lado da lâmpada a óleo na estante de nosso quarto.
Hoje eu entendo que minha mãe estava grávida. Ela provavelmente ia tentar abortar com as raízes de bexiga.
Na terra natal de Kobayashi
O outono finalmente chegou.
Não sei como minha mãe e Kobayashi conseguiram dinheiro, mas, de qualquer forma, fomos juntos para a terra natal de Kobayashi.
A terra natal de Kobayashi ficava no distrito de Kitatsuru, em Yamanashi, numa vila que eu não recordo o nome incrustrada nos confins das montanhas. A família de Kobayashi era de camponeses e, na medida do possível, viviam sem muito aperto, mas nenhum dos três irmãos eram decentes e, no fim das contas, o filho do meio, Kobayashi, era o que parecia ser o mais esperto. O pai deles tinha morrido e Kobayashi, tomando o lugar do irmão mais velho, era quem cuidava das finanças da família até que, em um certo dia, ele pegou todo o dinheiro da família e fugiu de casa. Seus parentes ficaram preocupados com seu paradeiro, mas não tiveram notícias suas durante muito tempo. Então, de repente, Kobayashi volta para casa trazendo junto de si uma esposa mais velha. Todos eles se espantaram, mas também se alegraram em intensidade similar. Fizeram todo o possível para ajudar Kobayashi.
Como havia comentado anteriormente, não me recordo o nome daquela vila, mas o povoado no qual nos encontrávamos chamava-se Kosode. Era um povoado sossegado formado por quatorze ou quinze famílias com vínculo parental semelhante aos antigos clãs aristocráticos. Quando viemos para este povoado não existia uma casa ali em que pudéssemos morar. Nisto, após todos se reunirem e conversarem a respeito da situação, prepararam e organizaram uma casa para nós num barracão de lenha a oeste da casa dos pais da cunhada de Kobayashi.
O lugar era usado para empilhar fechos de lenha e palha e, por isso, o assoalho estava podre, as paredes estavam caindo, tinha goteiras, estava em um nível que parecia ser impossível de salvar, mas após terem pregado algumas tábuas velhas, coberto as paredes com uma mistura de barro e terem tapado os buracos com palha, o local, no fim das contas, parecia ter ficado habitável. O quarto tinha dez tatames de área e era forrado por uma ripa quadrada como assoalho no centro e, no fundo, era revestido por dois tatames somente. Em outras palavras, aqueles dois tatames eram nossas camas, nossa área de estar e onde fazíamos as refeições. Nós cortamos uma parte da ripa do assoalho perto da entrada para colocar o braseiro, mas como a casa era na verdade, em princípio, um barracão de lenha do interior, claro que não estava equipada com uma porta ou esquadria. Durante o verão pendurávamos um tapete de palha para servir de porta, mas durante o inverno ficava, claro, insuportavelmente frio e, nisso, ganhamos duas portas corrediças de uma outra família e as colocamos amarradas com uma corda na entrada. Mas, ainda assim, em noites de nevasca, o vento gélido e misturado com neve entrava sem piedade em nosso quarto e, pela manhã, frequentemente encontrávamos neve acumulada ao lado do braseiro. Para piorar, ao lado esquerdo, separado somente por uma única parede rústica e fina, estava o estábulo e, ao lado direito, estava a latrina que compartilhávamos com os donos da casa: não poderíamos estar em lugar mais imundo.
Após nos assentarmos nessa casa, Kobayashi, inesperadamente, começou a trabalhar com dedicação. Naquela ocasião, como emprego, ele fazia carvão para a sua família para ganhar uns trocados. Minha mãe, como de costume, fazia alguns trabalhos de costura nas casas das redondezas e, em troca, recebia sempre nabo, batatas e outros tipos de vegetais como agradecimento e, portanto, era um alívio saber que pelo menos nossa alimentação estaria garantida. Eu, após uma grande pausa nos estudos depois daquela cerimónia de encerramento, finalmente voltei a frequentar a escola.
Aqui eu gostaria de falar novamente sobre este meu lugar dos sonhos, mas, antes disso, primeiro preciso apresentar a vida como ela era no povoado de Kosode.
Para as pessoas que estão nas cidades e veem prédios de sete, oito andares e as vitrines brilhantes de Ginza; para as pessoas que vão para encontros ou cafés com carros próprios; para aqueles que, no verão, têm ventiladores e, no inverno, têm aquecedores, para aqueles que podem fazer tudo como bem entendem, para todas essas pessoas essa história deve soar somente como uma mentira. Mas isso não é uma mentira nem tampouco um exagero. Eu acredito que toda a prosperidade das cidades é proveniente de uma negociação entre o interior e a cidade em que a cidade pega tudo para si fraudulentamente.
Como comentei anteriormente, Kosobe é um povoado formado por quatorze ou quinze famílias com relação parental à semelhança das sociedades originárias.
O povoado faceava o sul de um vale bem iluminado em uma encosta bastante íngreme no sopé das montanhas. Não havia nenhum arrozal sequer. Ali só existia montanhas e áreas abertas nas próprias montanhas para cultivo. Portanto, as principais ocupações deste povoado eram, do verão a primavera, a sericultura, algumas plantações de trigo e amoreiras, plantações de subsistência de vegetais e cultivo de wasabi em solos arenosos; já no inverno, os homens ficavam encarregados de subir as montanhas para fazer carvão e as mulheres ficavam em casa trançando sacos de palha. O rendimento daquele povoado era, por conta da relação que se espera de um povoado localizado nas montanhas, uns setenta a oitenta porcento provenientes da venda de carvão.
Por conta disto, é evidente que a alimentação do povoado era bastante rudimentar, se assemelhavam as refeições de cevada moída que agora como, mas eram ainda piores do que estas do presídio. Isto é, as refeições do presídio são de seis para quatro, em que a quarta parte era composta de arroz chinês, as refeições do povoado, por outro lado, não tinham um grão de arroz polido sequer. Em contrapartida, não vinham acompanhadas de insetos, pedras e restos de palhas como as refeições do presídio. Quanto aos cozidos de vegetais, tanto os do povoado quanto os do presídio eram praticamente os mesmos. Isto é, em ambos, na hora do cozimento, não era colocado nem um grão de açúcar sequer. Quanto aos peixes que podíamos comer no povoado, só tínhamos ao alcance, uma vez por mês, um salmão tão salgado que amargava a boca.
No entanto, não é lícito julgar ser impossível manter a saúde com essa alimentação rudimentar. Basta, para isto, ir até as montanhas e ver com os próprios olhos. Ali tínhamos uma abundância das vitaminas que agora estão na moda e, se a dieta regular era precária, encontrávamos todos os carboidratos e calorias que faltavam nos inúmeros frutos da trepadeiras-chocolate, nas peras e nas castanhas que floresciam prodigiosa e abundantemente por ali. As crianças e até mesmo os adultos iam buscar estes frutos para comer. E, mesmo assim, sobravam frutos que acabavam como comida para os corvos e os ratos e, os que nem mesmo os animais conseguiam comer, caiam com seus galhos pesados ao solo e apodreciam ali. Por conta disto, apesar das crianças perseguirem os animais, ninguém os matava e, quando iam caçar, só caçavam animais que dariam bastante alimento. Nisto, tanto as montanhas logo atrás da vila quanto os bosques a caminho da escola estavam sempre cheios de, principalmente, coelhos saltitantes.
Foi naquele tempo que eu realmente fiquei intima da natureza. Graças a isto, ainda hoje eu aprecio a vida no campo no que ela tem de mais ideal, saudável e natural. A despeito de tudo isto, o que faz a vida no campo ser tão miserável? Eu não sei nada a respeito do passado remoto. Mas, desde o período feudal de Tokugawa até nossos tempos atuais de civilização moderna, o campo vem se deteriorando gradualmente em prol das cidades.
Em minha concepção, se a sericultura é possível nas vilas, o povo deveria fazer suas próprias roupas de trabalho com os fios de seda e vesti-las. Não tem necessidade alguma de comprarem dos comerciantes roupas de interior listradas de algodão ou faixas. É exatamente porque vendem o bicho da seda, o carvão para a cidade e são obrigados a comprar algodão de baixíssima qualidade e grampos para cabelos com flores artificiais, é exatamente por engodos nas negociações como estes que a cidade segue tomando o dinheiro do campo.
No entanto, é evidente que o povoado não poderia agir assim. Existe a tentação do dinheiro e, para conseguir este dinheiro, é que vendem os bichos da seda e o carvão. Nisto, os comerciantes, para tomar vantagem nas negociações, chegam a vir até mesmo para povoados remotos como este. Os vendedores ambulantes trazem consigo uma caixa com dez colarinhos para quimonos de baixo, uma caixa com algas e comidas secas, outra caixa com itens de variedades, outra com diversos doces secos e, acima deste alto amontoado de caixas, traziam ainda mais alguns geta, algas e comidas secas. Vinham para o povoado trazendo tudo isto nas costas e, sem que precisassem passar de porta em porta, se instalavam junto à lareira da casa que parecia ser a mais abastada da região e, ali, montavam sua loja temporariamente.
“Chegou o mascate.”
Era só alguém dizer que, em pouco tempo, a notícia corria por todo o povoado. Nisto, as mulheres do povoado se juntavam e iam até lá e examinavam tomando nas mãos tudo que pareciam querer para, em seguida, perguntar o preço.
“Tá caro, né? A senhora Omasa comprou isso por vinte centavos dez dias atrás na cidade”, diziam.
Os comerciantes inventavam alguma lógica para rebater cada uma dessas negociações e tentavam caloteá-las dizendo que os produtos não estavam caros, que a qualidade era diferente etc. Quer dizer, eles não apenas tentavam dar um calote, mas também fazer com que elas quisessem de qualquer forma comprar o produto. A negociação se prolongava longamente. No entanto, isso não era nem um pouco estranho. Não importa por quanto se prolongasse, mesmo que não se hospedassem em alguma casa, as hospedarias não cobravam mais do que um quarto ou um quinto do valor total. Dependendo da situação, eram até mesmo recebidos calorosamente como viajantes e, nisso, não precisavam pagar nem mesmo a estadia. Portanto, não interessava muito se tomava tempo. Só importava que, durante o tempo que estivessem ali, conseguissem vender nem que seja um item a mais.
As garotas compravam colarinhos para os quimonos de baixo e grampos para cabelos em segredos dos pais. As mães levavam sorrateiramente os casulos de bicho da seda, ou a seda crua fiada à mão, ou os caquis secos ou ainda o wasabi ainda coberto de barro e enrolados em palha e os trocavam por valores que não correspondiam nem a um terço do seu valor real. Desta forma, os vendedores ambulantes vinham todos os anos para o povoado para usurpar os frutos do trabalho diligente e pesado daquelas pessoas.
Os carteiros só vinham uma vez a cada cinco ou sete dias. No inverno, tiravam seus sapatos e entravam no kotatsu das casas e tomavam chá junto as famílias enquanto matavam tempo lendo cartões postais, abrindo cartas e vendo as fotos de correspondências alheias. Na hora da refeição, eram chamados para cear junto e, após, partiam tranquilamente. Quando havia alguma correspondência para o templo, eles subiam até os aposentos do monge principal e perdiam a noção do tempo ao acompanhá-lo em um jogo de go mal jogado.
E então, finalmente, falemos da escola. A escola estava localizada no subúrbio de uma cidade pequena chamada Kamozawa. A escola era somente de nível básico e tinha por volta de seis ou sete crianças. Era a escola mais mal equipada que experenciava desde a escola da Mestre e o professor era um homem beberrão e bastante violento.
A escola ficava a apenas quatro quilômetros saindo de Kosode e seguindo por uma solitária trilha pelas montanhas, mas como a neve ficava forte no inverno, tantos os meninos quanto as meninas vestiam uma coisa semelhante a um calçado feito de casca de bambu, enrolavam os rostos completamente em toalhas e percorriam, indo e vindo, este mesmo caminho todos os dias.
Conquanto sejam poucas coisas, precisávamos, claro, de pincel, papel e tinta. No entanto, dinheiro não existia naquele povoado. Nisto, quando precisavam de alguns destes itens essenciais, as crianças carregavam, a caminho da escola, uma, duas sacas de carvão feitas em casa e as levavam para a loja logo ao lado da escola. As crianças, até que o valor das sacas de carvão não fosse completamente gasto, poderiam frequentemente pegar os materiais necessários. Em outras palavras, isto se configurava, evidentemente, como uma espécie de permuta.
Contudo, não posso deixar de registrar aqui um dado importante. Isto é: a idade destas crianças que carregavam nas costas essas sacas de carvão subindo e descendo por esta trilha montanhosa por mais de quatro quilômetros. Elas, na realidade, eram meninas que não passavam dos nove anos de idade. Eu, a bem da verdade, também gostaria de ter tentado. Mas para mim que nasci na cidade isso era impossível em vários sentidos. Mas o era, acima de tudo, porque não tínhamos carvão em nossa casa que eu pudesse carregar.
A propósito, deixem-me registrar mais um dado. Apesar de ínfimo, para as pessoas criadas na cidade, é algo que certamente vai além da imaginação. O fato é que neste povoado não se usava, em hipótese alguma, papel quando se ia à latrina. Para o povo deste povoado, usar papel ali era um luxo inconcebível. Até mesmo para escrever cartas eles usavam pedaços de papeis fuliginosos de portas corrediças rasgadas e que não podiam mais serem usados como tais. No entanto, o que, então, era usado no lugar de papel? Eles cortavam restos de bambus ou de galhos de árvores no tamanho e espessura de um hashi e os colocavam em uma caixa dentro da latrina. Quando eram usados eram colocados em uma outra caixa. Ao se acumularem, apanhavam e levavam-nos para que fossem lavados em um fluxo de água limpa e corrente no pé da montanha para, depois disto, voltarem a ser usados. E isso não é mentira ou invenção, é a realidade.
Em um dia no início da primavera, uma criança nasceu em minha casa. A matriarca da casa dos Kobayashi estava radiante de felicidade. Por ter nascido na primavera, colocaram o nome dela de “Haruko” e comemoram a primeira criança da família.
Foram colocadas cinco ou seis sacas de carvão no lombo de um cavalo. O cavalo e seu condutor rumaram juntos para a cidade à vinte, vinte quatro quilômetros dali. O cavalo voltou carregando uma leve bagagem de arroz, sardinha seca e vestimentas que foram adquiridas através da troca do carvão. Eram os preparativos para comemorar a chegada da criança. Mas Haruko cresceu saudável e forte.
Quando março chegou, eu iria participar outra vez da mais uma cerimônia de encerramento de ano letivo. Participar desta cerimônia que sempre, sempre só faz me envergonhar. Mas, este ano, não aconteceu nada de particularmente ruim. O professor disse que, mesmo que eu não tenha um registro, como ali era o interior, ele me trataria da mesma forma que tratava as outras crianças e me daria, portanto, o certificado.
Mesmo com todas as dificuldades, minha mãe, para aquele dia, fez para mim um quimono de manga longa feito com algodão listrado e um casaco formal que combinava com o quimono. Fui para a escola, junto as outras crianças, vestida em minhas roupas novas dançando de felicidade.
A triste e meramente formal cerimônia teve início. Todos saiam com um sorriso após receber o certificado. Mas, apesar do que o professor tinha me dito, eu, e somente eu, não recebi nada. Continuei esperando pensando que poderiam me chamar a qualquer momento. Então, finalmente, percebi que esperava em vão.
Após o término da cerimônia, todos começaram os preparativos para voltar para casa. Mas eu ainda não havia aceitado a coisa toda e estava ali em pé totalmente alheia ao meu entorno. Então, finalmente, o professor veio até mim e colocou bem na frente dos meus olhos tanto o certificado quanto o prêmio de distinção.
“Aqui estão seus dois certificados, filha. Se você quer mesmo eles, vá chamar sua mãe para vim cá pegá-los para você, vai.”
Antes da cerimônia de encerramento, é costume que as crianças tragam de casa algo para dar de presente para os professores. O presente mais comum é o saquê. Em outras palavras, o professor estava sugerindo que era para a gente trocar os certificados por saquê.
Não trouxe nada de minha casa para o professor. Mesmo que quisesse, não havia nada para trazer. Provavelmente minha mãe não tinha percebido que tal permuta seria necessária.
Mas, ao ouvir aquelas palavras, quão amargurada eu me senti! Me afastei dos meus companheiros e voltei para casa por outro caminho enquanto remoía minha própria amargura sozinha. Ao chegar em casa, eu, sem me conter, chorei incessantemente. Minha mãe, sem deixar de perceber, disse:
“Não há nada com que se preocupar. Eu vou levar o saquê e pegar os certificados para você”, ela tentava me consolar.
Mas não tinha como eu esquecer aquela humilhação.
“Está tudo bem, mãe, já estou cheia disto.”
Continuei insistindo desta maneira. Então, finalmente, acabei abandonando a escola por completo.
Eu estava triste. Eu não consigo, mesmo hoje, explicar por completo aquele sentimento. Mas, se fosse preciso dizer, diria que era mais ou menos a situação de uma criança mimada que, cansada de derramar lágrimas, finalmente cessa seu choro.
Então, após alguns dias terem passados, meu tio – o irmão mais novo de minha mãe – veio, inesperadamente, nos fazer uma visita.
Eu estava ciente de como meu tio sabia nosso endereço. Ele sabia do nosso endereço porque, no primeiro fim de ano que passamos aqui, eu escrevi, a pedido de minha mãe, um cartão de Ano Novo para sua família. Eu me lembro bem disto. Naquela ocasião, ela disse:
“Não posso pedir para que venham nos buscar depois de tudo que aconteceu, mas ao ver esse cartão de Ano Novo talvez eles venham nos levar de volta para lá.”
E ela continuou:
“Se voltarmos para minha terra natal, certamente vão falar mal da gente, mas, ainda assim, isso é melhor do que viver nessa pobreza e, não só isso, sua avó e seu avô vão ficar bastante feliz com nossa volta.”
Por isso minha mãe enviou aquele cartão de Ano Novo, confiando que com certeza eles ficariam preocupados e viriam nos buscar quando soubessem que tínhamos nos separado de meu pai.
“Ei, minha irmã tá aí?”, meu tio disse ao adentrar pelo limiar da porta.
“Obrigada por ter vindo!”, minha mãe disse deixando rolar grossas gotas de lágrimas.
Então os dois continuaram conversando ali em pé parecendo estar realmente felizes. O que entendi foi que assim que receberam o cartão de Ano Novo ele quis vir voando – nós morávamos a menos de dois dias de viagem mesmo para mulheres –, mas como a neve estava muito funda ele teve que voltar atrás três vezes já no meio do caminho e, após esperar a neve derreter, finalmente conseguiu vir. Meu tio veio para levar minha mãe de volta para casa.
Kobayashi voltou do trabalho. Logo as negociações começaram. Compareceram os pais de Kobayashi e até mesmo os parentes mais próximos.
O resultado de longa negociação foi que minha mãe poderia voltar para casa, mas uma querela acerca do que seria feito da criança de colo começou.
A matriarca da família Kobayashi admoestava minha mãe:
“Se ia ser assim, por que você não nos disse nada um pouco mais cedo? Se tivesse dito, a gente poderia ter feito algo a respeito...”
Ter feito algo a respeito? Eu não fazia ideia, no início, o que aquilo significava. Mas, até mesmo eu, comecei a entender aos poucos.
Minha mãe disse:
“Eu estava ciente disso, mas, pobrezinha...”
Com as palavras de minha mãe, eu me recordei de algo. Me lembrei de um conhecimento que adquiri através de uma conversa que minha mãe teve com uma garota que morava a oeste de casa e que se casou com alguém da vila vizinha.
“Não é algo que a gente fale em voz alta, mas é bem fácil de se fazer, sabe”, foi assim que, sussurrando, aquela mulher iniciou a conversa com minha mãe ao lado do braseiro. E continuou: “então, xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx, xxxxxxx, xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx. x, xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx enquanto olha a criança pensando ainda não, ainda não xxxxxxxxxx. xxxxxxxxxxxxxxxx, xxxxx, xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx... Na realidade, a moça da vizinhança, quando era mais nova teve um filho bastardo e, pensando em sua família, deu cabo na criança desta maneira, sabe”.
Minha mãe que ouvia tudo isto calada, estava com o rosto pálido feito morta como se um terror a tivesse tomado. E, por fim, só conseguiu gemer: “mas, pobrezinha...”
Eu estava preocupada se também não “fariam algo a respeito” com Haruko. Mas, após três ou quatro dias de confusão, ficou decidido que Haruko ficaria sob os cuidados dos Kobayashi.
No dia seguinte, após a decisão ser tomada, eu, minha mãe e meu tio saímos da vila. Yuki, a filha mais nova dos donos da terra, disse que nos acompanharia até a saída da vila e seguiu conosco carregando em suas costas Haruko, que dormia.
Yuki, que era bastante sentimental, estava com os olhos vermelhos de tanto chorar pelo caminho. No entanto, Haruko não entendia nada daquilo e seguia dormindo aconchegada em Yuki. Confortável e pacificamente.
Já tínhamos a muito saído da vila. No entanto não conseguíamos nos separar. Foi só quando chegamos em uma curva na estrada no sopé daquela pequena montanha que conseguimos nos separar.
No entanto, as pernas de minha mãe não conseguiam prosseguir de maneira alguma. Quando dávamos quatro ou cinco passos após nos separar, minha mãe refazia o caminho com as pernas bambas. Então ela descia a criança das costas de Yuki, sentava-se no gramado do acostamento ao lado da estrada com ela nos braços, acordava a criança, que até então dormia, com uma sacudida e forçava o bico do peito em sua boca enquanto chorava copiosamente. Nisso, ela acariciava afetuosamente o rosto da criança que mamava e, enquanto aproximava o rosto da filha ao seu próprio rosto, se dirigia para Yuki, que continuava ali em pé e chorando, e dizia:
“Tome conta dela, Yuki, por favor, tome conta dela!”, minha mãe repetia incessantemente as mesmas palavras.
Minha mãe não dava mostras de que se separaria da criança tão cedo. Então meu tio, que estava a cem metros dali, chamou por minha mãe em voz alta. Minha mãe, com isto, finalmente se levantou. Colocou Haruko mais uma vez nas costas de Yuki. Mas não conseguiu impedir que suas lágrimas caíssem.
Eu e minha mãe dávamos dois passos e parávamos, dávamos três passos e parávamos para olhar para trás. Yuki ainda continuava ali em pé na esquina daquela curva.
Após andar mais duzentos, trezentos metros e preste a fazer mais uma curva no caminho, olhamos para trás mais uma vez. Nesse momento a figura de Yuki já estava tomada pela neblina da manhã e só podíamos distinguir vagamente seu contorno. No entanto, conseguíamos ouvir claramente o choro de Haruko, que parecia ter acordado de seus sonhos, cortando o silêncio matinal daquelas montanhas como se culpasse, ressentida, sua mãe e sua irmã por tê-la abandonado e partido. O choro continuava. Indeterminadamente, inesgotavelmente.
Naquele momento eu me separei de minha única irmã. Sim, me separei para todo o sempre. Já se passaram mais de dez anos após aquilo. Será que Haruko ainda vive? Talvez já esteja morta.
A família de minha mãe
Na tarde do segundo dia após termos saído de Kosode, chegamos a uma cidade pequena chamada Kuboshitaira que ficava a menos de quatro quilômetros da casa da família de minha mãe. Dali restava apenas mais um folego para chegarmos. Mas minha mãe começou a diminuir o passo. Ela alegava que tinha vergonha de voltar para a vila a luz do dia. Nisto, meu tio voltou primeiro para casa e eu e minha mãe ficamos pela cidade e, pela primeira vez em muito tempo, fomos até o cabelereiro e compramos algumas lembranças para minha avó. Minha mãe só foi para casa quando já estava completamente escuro.
É claro que meus avós estavam felizes. Mas por trás daquela felicidade certamente se escondia também uma tristeza. Para nós também não era diferente.
A família de minha mãe era composta por meus avós, que viviam na parte de trás da casa principal que tinha sido dividida para que eles pudessem viver seus retiros, por uma tia, que se casou com um comerciante que vive a oito quilômetros dali, por um tio mais novo, que seguiu os caminhos budistas, e por meu tio mais velho – o que foi nos buscar –, que herdou o lugar de patriarca da casa e que tem uma criança que já vai fazer dois anos.
Eu fiquei na casa do meu tio. Minha mãe, enquanto esperava que eu ficasse mais velha, voltou a trabalhar numa fábrica têxtil em que já havia trabalhado quando era mais nova.
Eu já conhecia a tristeza, mas, sem uma razão especial, eu estava em paz. Levava os dias com um sentimento de calma.
No entanto, ah!, quão infeliz eu ainda poderia ser. Numa noite de verão minha tia veio me acordar de repente enquanto eu dormia profundamente. Segui minha tia enquanto ainda esfregavas os olhos pesados de sono e, para minha surpresa, minha mãe também estava lá. Estava sentada na sala de estar com sua faixa de quimono desfeita e comendo algo.
Minha mãe tinha comprado para mim um quimono de camada única feito de musselina e um quimono longo. É claro que eu não estava feliz. E, ao mesmo tempo, sentia uma inquietação no peito ao pensar coisas do tipo “será que minha mãe saiu do emprego e voltou para casa?”. Particularmente nada mudou em casa. Minha mãe tinha ido, isto é certo, trabalhar em uma cidade distante. Por que será que ela voltou logo agora? Eu não entendia nada. Mas eu voltei a dormir sem perguntar nada para minha mãe, ou para meu tio ou tia.
Mas logo compreendi a verdade dos fatos.
Minha mãe tinha recebido o seguinte telegrama e veio voando para casa: “volte. pai. estado. crítico”. Mas meu avô, é claro, não estava em estado crítico, estava, pelo contrário, muito saudável.
No dia seguinte meu avô, que deveria estar em estado crítico, junto a minha avó, a família de meu tio e minha mãe se juntaram para conversar sobre algo importante. Mesmo que tenham me mandado ir brincar lá fora, eu não arredei o pé dali.
“Ele falou que tem três filhos, mas que como já estão crescidos, não darão problema.”
Meu avô disse. Logo em seguida minha avó complementou:
“As circunstâncias financeiras da casa também são boas, e, além disto, acima de tudo, ele não vive no interior, mas sim na cidade e, para você que até pouco tempo atrás esteve na cidade, é uma ótima oportunidade.”
Foi o que ela acrescentou.
Após ouvir atentamente, ficou claro que eles debatiam uma proposta de casamento para minha mãe vinda do Furuta, um chefe de família que administrava uma loja de variedades próxima a estação de Enzan e que tinha uma boa condição financeira.
Se minha mãe fosse para um lugar deste, o que seria de mim..., eu pensava aflita. Nisto, olhei para o rosto de minha mãe. Entretanto, não parecia que ela estava muito interessada no assunto. “Isso lá é verdade”, ela respondia como se estivesse pensando em outras coisas. Após a conversa prosseguir mais um pouco, ela disse:
“Então eu acho que vou tentar. Se por acaso ficar insuportável por lá eu não preciso ficar sofrendo com algo que não quero, afinal, tenho essa criança aqui, o que me dá certa segurança para o futuro.”
Minha mãe, assim, aceitou a proposta despreocupadamente.
Eu saltei de susto. Um desamparo tomou meu peito.
“Pelo amor de deus, mãe, não vá! Por favor, não vá...”
Eu chorei agarrada ao seu pescoço.
“Me perdoe, filha”, minha mãe disse.
Meus avós e os outros tentavam me consolar elencando algumas razões, diziam que mesmo que minha mãe se casasse, a casa era perto e eu poderia ir vê-la quando bem entendesse; que eu teria mais chances de ir até a cidade etc. Então, por fim, ficou decidido que ela iria.
É isto. Minha mãe finalmente partiu. Me deixou para trás para perseguir sua própria felicidade. Assim como meu pai um tempo atrás o fez ao nos abandonar...
Eu já falei como meu pai, que havia nos abandonado, apareceu mais uma vez de repente em nossas vidas e me comprou uma gomumari. O quanto eu me senti próxima de meu pai naquela hora. No entanto, ele nem de perto cumpriu a promessa de que viria me buscar. Eu já havia abandonado o amor vindo de meu pai. Eu vinha me apoiando somente em minha mãe desde então. Mas até mesmo esta mãe, por fim, foi embora me abandonando. É inevitável não recordar que minha mãe tentou me vender para um bordel. Naquele momento minha mãe disse que estava me vendendo pelo meu próprio bem. Mas, isto aconteceu. Ela certamente só queria me vender para amenizar a sua própria condição crítica.
Ah!, se me fosse possível, eu gostaria de gritar para todo o mundo. Queria amaldiçoar, principalmente, todos os pais e mãe. Gritaria:
“Os senhores realmente amam seus filhos? Ou os senhores, após o período daquele amor maternal instintivo, por acaso não estão só fingindo amar suas crianças enquanto, na verdade, só pensam em si mesmos?”, e continuaria: “vocês não estão só amando seus filhos da boca para fora, assim como o fez minha própria mãe que, pensando somente na própria felicidade, abandonou a própria criança alegando, levianamente, que se por acaso se tornasse insuportável continuar casada, voltaria para casa porque, afinal, teria uma filha para cuidar dela?”
Eu acabei dizendo algo de forma bem sentimental. Mas, de qualquer forma, tenho certeza de que me perdoarão por essas palavras que vieram do desespero que eu senti naquela época e que ainda me acompanha.
Minha mãe partiu. Eu, claro, continuei na casa de meu tio e voltei a frequentar a escola.
Eu já não tinha nenhum anseio quanto a escola. O fato era que lá eu só seria mais uma vez tratada como um estorvo.
Na aula de educação física sempre me colocavam no final da fila apesar de ter muitas outras crianças mais baixas do que eu, era como se dissessem “você é um estorvo!”. Se o número de crianças era par, ainda estava bom. Mas, se não fosse, eu, como um estorvo, era deixada por último e tinha que ficar sozinha. Apesar de eu ser a mais capaz da turma – nunca me falaram que eu era a melhor em escrita e desenho, no entanto – nunca recebi nem mesmo meu boletim como todos os outros alunos recebiam.
Minha mãe trouxe seu filho adotivo mais novo para brincar por volta da época que o clima começava a ficar mais fresco. Era a mesma mãe que eu tanto tinha amaldiçoado, mas, no fim, eu realmente estava sentindo sua falta. Mas quando minha mãe disse que queria me levar para visitar sua nova casa, eu recusei. Mas ela insistiu e eu, por fim, a acompanhei até lá.
A nova casa de minha mãe era uma loja em que se vendia alimentos e artigos de casa e papelaria. Eu me tornei amiga das crianças de lá instantaneamente. Mas não conseguia sentir simpatia pela pessoa que tinha se tornado marido de minha mãe. Após ter passado apenas duas noites lá já queria voltar para casa.
“Mas você já quer voltar?”, minha mãe me perguntou com o rosto triste. Ela tentou me deter dizendo diversas coisas. Mas eu me mantive firme e continuei dizendo que sim, queria voltar.
Minha mãe parecia ter desistido e levou a penteadeira para a varanda onde penteou meu cabelo e me deu uma bolsa de pano feita com um pedaço de brocado de seda vermelha da china e um longo fio que ela tirou da gaveta mais alta da cômoda.
“Quando eu vi esse pedaço de brocado no fundo da gaveta, pensei em te dar e acabei fazendo isso para você em segredo”, ela disse.
Após isto, fomos até a loja onde ela pegou e enrolou rapidamente em um pano três latas de comida, um saco de açúcar branco e um par de sandalhas de cânhamo com correias vermelhas. Escondendo o embrulho na manga do quimono saiu de casa me levando junto. Próximo ao moinho d’água ao lado do bambuzal e um tanto já distante da cidade, minha mãe colocou bem colocado o embrulho em minhas costas e comprou algumas guloseimas na loja de doce da redondeza.
“Para você ir comendo pelo caminho. Não vá se perder, o caminho é longo. Fale para o pessoal que eu vou aparecer por lá quando conseguir uma folga por aqui.”
Minha mãe dava sinais de que começaria a chorar a qualquer momento. Eu também me sentia como se quisesse chorar, mas só acenei, calada, afirmativamente com cabeça. Sim, eu definitivamente queria chorar. Mas alguma coisa me conteve.
Como eu acabei assim com compleições tão tristes?!
Após retornar para casa eu voltei a ir para a escola. Não importa o quanto me tratassem como estorvo, eu não odiava a escola. A frequentava. Era mesmo como se fosse minha única alegria.
Eventualmente era chegado o tempo em que o inverno começava. A minha avó materna por parte de pai veio até a nossa vila.
A minha avó materna e minha avó paterna tinham a mesma idade: na faixa de 55, 56 anos. Contudo, ela parecia mais saudável e com uma compleição melhor do que minha avó materna. Com seu casaco de tsumugi de Ôshima e suas demais vestes, se assemelhava a uma matriarca aposentada de uma família rica. Completamente diferente da família de minha mãe em que todos eram camponeses do interior e, por conta disso, a avó paterna parecia bem mais nova.
O objetivo da visita era me levar para a Coreia e me criar lá. Mas tudo isso tinha uma razão.
Uma tia, irmã mais nova de meu pai, que nos abandonou, morava na Coreia com minha avó, esta mesma tia, ao que tudo indica, não conseguia ter filhos. Nisto, quando eu tinha uns três ou quatro anos, ficou decidido que se ela não conseguisse ter filhos iria me pegar para criar. Mas minha mãe e meu pai se separaram daquela forma e, após isto, eles perderam contato com minha mãe e não teve mais o que ser feito, entretanto, como minha mãe tinha voltado para a casa dos pais, toda essa conversa veio à tona mais uma vez.
Tudo se ajeitou bem rápido quando minha avó paterna disse que, independentemente de meu pai ainda estar vivendo com minha tia materna, ela se sentia um tanto responsável por como as coisas haviam terminado entre ele e minha mãe, além disso, principalmente, tinha a questão de que minha tia que morava na Coreia não possuía mais expectativa de ter filhos e por isso, bem apropriadamente, elas pensaram em me criar, criar essa miserável criança; do lado da família materna, as coisas pareciam que finalmente tinham se ajeitado no casamento de minha mãe e, além do mais, como minha avó paterna parecia ser rica, certamente eu seria mais feliz com ela.
A minha avó da Coreia me trouxe roupas lindas. Uma faixa de cintura já pronta de cetim estampado que deveria valer por volta de 35 ienes, um quimono de mangas longas de crepe, um casaco, um hakama, um quimono com o brasão da família, um xale, uma geta, lenços... Eu nunca tinha visto nada como aquilo antes. Minha avó ainda disse que havia, além disto tudo, muito mais coisas, mas, como acabaria pesando na bagagem, foram deixadas todas em casa.
Ela ainda comentou que, levando em conta sua posição social, era um problema eu não ter registro de família e, assim, ficou decidido que partiria com ela após me registrarem como a quinta criança de minha avó materna.
Aquelas vestimentas, para mim, eram o ápice do luxo. Eu, falando um pouco exageradamente, nunca estive diante de nada do tipo. Me fizeram vestir aquelas roupas. Tomada por um inominável sentimento de vergonha a felicidade, eu, o tempo todo, ficava levantando a manga do quimono que vestia para olhá-la e encarava minha faixa de cintura.
“Já já a gente vai para a Coreia, então vista as suas roupas e vá cumprimentar o pessoal desta região.”
Foi o que todos me disseram. Andei pelos arredores e pelas proximidades da escola, junto a minha tia, me despedindo de todos. Eu com meu quimono de crepe, minha faixa de cetim e meu laço de cabelo grande e vermelho.
As garotas da vizinhança vinham em segredo até a entrada traseira de casa pedindo para ver as roupas que elas acharam tão bonitas. E então:
“Você deve estar muito feliz, né, Fumi.”
Diziam em uníssono como se todos meus sofrimentos até agora tivessem sido compensados.
Minha mãe, claro, também veio se despedir. E, como todos os outros, se alegrou também por mim.
“Seria incrível se conseguíssemos tirar uma foto dela assim, né, Kikuno”, minha tia comentou.
“Sem dúvidas!, se ao menos tivesse alguma loja de fotos pelas redondezas...”, minha mãe respondeu.
“Mas como!, se for só um foto, a gente envia assim que chegar em casa.” Minha avó da Coreia disse, como se estivesse se deleitando do espanto de todos. “Um fotogravo vai uma ou duas vezes por mês lá em casa, então logo menos eu consigo enviar uma para vocês”, disse em complemento.
“Por favor! A gente vai ficar esperando!”, todos disseram juntos. Nisso, minha avó ainda acrescentou:
“Mas, sabe?, vai ser só por um pequeno período que vocês não vão conseguir se encontrar. Ela se formando no ensino básico e entrando logo em seguida na Escola para Mulheres, e se suas notas forem boas, pode mesmo entrar em uma faculdade feminina, sabe. Se esse for o caso, ela terá que ir para Tóquio e, aí, vocês vão poder encontrá-la quando bem entenderem”, ela disse. Essa conversa me enchia cada vez mais de esperança.
Não, não era só isso. Ela ainda falou que, a partir do momento que eu fosse com ela, não iriam me forçar a fazer nada, iriam comprar tudo que eu precisasse, comprariam até mesmo todos os brinquedos, ela comentou, que eu quisesse e, por isso, eu não precisava me preocupar com nada.
Não preciso dizer que todos vertiam lágrimas de felicidade. É claro que eu também estava feliz.
Numa manhã um tanto fria em que o céu estava azul após a passagem da chuva, parti com minha avó coberta pelos votos de felicidade de todos que foram se despedir de mim.
Minha nova família
Finalmente cheguei na Coreia. Cheguei onde a felicidade me aguardava, cheguei naquela Coreia que exalava uma luz plena de esperança.
No entanto, a Coreia realmente me daria tudo que haviam me prometido? A resposta virá naturalmente ao lerem o relato que se segue, mas, contudo, neste momento, eu preciso registrar o que eu senti durante o percurso até efetivamente chegar na Coreia. Preciso fazer isto porque, se não o fizer, vocês, leitores, podem acabar se surpreendendo com uma mudança radicalmente abrupta no teor da narrativa...
Mas, então, o que eu senti durante o percurso?
O posso expressar em poucas palavras. O que eu senti foi uma insegurança diante do vago sentimentos de desamparo que brotou após eu constatar que aquilo que minha avó tinha me feito desejar – o amor entre avó e neta – não viria e eu só teria acesso a sua infinitésima parte e, além disso, ela também parecia ter encontrado em mim só algumas migalhas do que ela de fato esperava. Mas, no entanto, eu não perderia as esperanças por conta somente deste percalço. Eu precisava capturar aquele deus da felicidade que me aguardava.
Eu finalmente tinha chegado na Coreia. Tinha chegado na minha casa na Coreia. A família era os Iwashita e a casa ficava em Fukô em Chûsei Hokudô.
Iwashita? O leitor provavelmente me encarará com um olhar de dúvida. É que apesar do nome de família de meu pai ser Saeki, o da mãe de meu pai não o é, o sobrenome dela é Iwashita. Creio que, antes de mais nada, precise explicar isto.
Minha avó se casou quando tinha quinze, dezesseis anos em Hiroshima. No entanto, seu marido morreu quando ela tinha 27 anos a deixando com quatro filhos dos que o mais velho tinha nove anos. Logo em seguida, dois de seus filhos morreram. Para piorar, seu filho mais velho – meu pai – eventualmente fugiu de casa e a deixou sozinha com apenas uma filha, a tia que me recebia agora. Esta minha tia se formou na Escola para Mulheres de Hiroshima. Logo após sua formatura, recebeu uma proposta de casamento de um marinheiro, mas minha avó, que tinha algo em mente, recusou a oferta. O pretendente seguinte foi um oficial do governo que ninguém conhecia, mas que, apesar disto, cativou minha avó no primeiro encontro. O matrimonio foi decidido muito rapidamente e, independentemente da ausência de meu pai, o filho mais velho, minha avó decidiu que sua filha seria registrada no registro do noivo e não o contrário. Assim, minha tia se casou legalmente com aquele homem. Mas como minha avó ficaria sozinha após o casamento e, além do mais, como ela desde o início tinha ido com a cara genro, decidiu-se por, no fim, ir morar na mesma casa que esse jovem casal dividiria. Contudo, como em nível legal minha tia tinha se casado e mudado de registro para a família daquele homem, o sobrenome de seu marido era Iwashita, o sobrenome que usavam não era o Saeki, que era o de meu pai e minha avó, mas sim o Iwashita. E é por isso que a família para a qual fui trazida se chamava Iwashita.
Fukô
Disse, anteriormente, que a família Iwashita vivia em Fukô. E que tipo de lugar era Fukô?
Fukô era uma pequena vila que margeava a Estrada de Ferro Keifu.
Era uma área residência de coreanos e japoneses, mas a grande maioria era de coreanos e somente umas quarenta famílias japonesas viviam ali. Contudo, os coreanos e os japoneses não viviam realmente em harmonia e governos locais surgiram para cada uma das respectivas nacionalidades. Do lado coreano, existia um escritório denominado “Men” e o responsável chefe por esse escritório tratava de todos os assuntos referentes aos coreanos; do lado japonês também existia uma espécie de escritório que se assemelhava a uma prefeitura provinciana em que uma pessoa, como se fosse o chefe de vila, tratava de todos os assuntos referentes aos japoneses.
O povoado japonês era composto por hospedaria, loja de conveniência, papelaria, escritório médico, correios, barbeiro, viveiro vegetal, loja de doces, lojas de calçados, carpintaria, casas para os professores da escola, cinco casas para policiais militares japoneses, três casas de camponeses e duas casas que funcionavam como bordeis. Além disso, tinha também uma casa para o chefe da estação de trem e mais quatro casas de funcionários, para os trabalhadores da estrada de ferro tinham três ou quatro casas, seis ou sete casas de agiotas que emprestavam dinheiro para os coreanos, duas casas que negociavam produtos marinhos e mais duas ou três lojas que vendiam cigarros e doces baratos. Grosso modo, era assim que o povoado japonês era composto.
E qual era a o estado em que esse povoado se encontrava? Bem, desde o início as pessoas que vieram para cá estavam atrás de lucro e, portanto, não havia qualquer espírito de cooperação que as ligasse, o que controlava a vila era, tanto espiritualmente quanto no âmbito do poder, o dinheiro. Deste modo, quem tivesse dinheiro, naturalmente, teria maior influência e a administração da vila – que, no entanto, é um termo exagerado para o que realmente existia ali – também era influenciada por essas mesmas pessoas. Em outras palavras, essa classe de pessoas endinheiradas e que andavam se divertindo, arrogantes, pela cidade com seus quimonos que seguiam, atrasados, as modas da capital.
Dentre estas pessoas, o que possuía maior poder não era somente o que tinha dinheiro, mas sim aquele que era dono de muitos campos de arroz e havia assentado suas vidas ali. – Dentre estes, os agiotas estavam em maior número. – Em seguida, o grupo de militares, o chefe da estação de trem, o médico e os professores da escola também possuíam certo poder e, as mulheres que pertenciam a esse grupo eram mesmo chamadas, respeitosamente, de “Madames”. Um pouco mais abaixo na escala de poder, as mulheres dos comerciantes, dos fazendeiros e do carpinteiro eram chamadas de “Senhoras”.
Deste modo, é evidente que o povoado era dividido em duas classes sociais e que estas duas classes se davam como água e óleo. A não ser em casos bem específicos, não existia interação entre as duas e, seja em cerimônias fúnebre ou em festas, os convidados sempre estiveram bem determinados.
Dentro de uma mesma classe, havia uma troca não só dos dango que comiam nas festas de estação ou durante o Tanabata, mas também dos bolinhos de arroz costumeiramente consumidos no ano novo. No entanto, não se tratava de uma troca de presentes entre pessoas de um mesmo povoado que tinham ligação consanguíneas, mas apenas de uma troca protocolar. Os presentes eram retribuídos em quantidades semelhantes ou por algo de valor também semelhante e, mesmo que a condição financeira não estivesse nem um pouco boa, era costume que, de modo geral, trocassem pressentes exuberantes e volumosos. Em público, as pessoas ainda eram, como um todo, extravagantes e frívolas, era, por exemplo, costume entre as mulheres se produzirem com roupas que revelassem seu alto valor monetário para atenderem aos festivais e funerais.
Como disse anteriormente, Fukô era uma vila pequena, mas, como também era um local de parada do trem que seguia pela linha principal, quando, às vezes, alguma figura famosa ou algum oficial de alto escalão passava por ali, os estudantes, os militares, os bons cidadãos e até mesmo as mulheres, voavam até a área da estação para recebê-los em fileiras em uma espécie de obrigação cívica que nutriam. Nessas horas, os homens vestiam seus ternos e ostentavam um brasão de “Membro da Cruz Vermelha”, as mulheres em seus quimonos de crepe de seda com pequenos detalhes traziam a insígnia de “Membra da Associação das Mulheres Patriotas” e, o melhor daquilo tudo e também o mais comum, era que viessem com medalhas escritas “Comemoração da Abertura da Estrada de Ferro entre Seishû e Fukô” que poderiam ser facilmente confundidas com moedas de cobre de dois centavos. Além disso, na grande maioria dos casos, eles sequer sabiam em que vagão do trem, que muitas vezes sequer parava, os grandes e ilustres famosos ou os oficiais de alto escalão estavam. Raramente, uma em cada dez vezes, o trem parava por um minuto e, então, um oficial de quimono formal e hakama oferecia os cartões de visitas de todos os que estavam participando daquela recepção dentro de um embrulho feito de crepe de seda e sobre uma bandeja.
Após estes acontecimentos, como se algo tivesse mudado na vila, ou melhor: no mundo, eles realizavam procissões com lanternas ou desfiles de máscaras. As vezes eles até mesmo construíam uma casinha em algum campo elevado e vago e dançavam, pulavam, tocavam música, cantavam e chegavam mesmo a imitar algumas peças de teatro de kyôgen.
Estes eram, verdadeiramente, o tipo apropriado de costumes que as novas colónias possuiam. Os homens e as mulheres podiam, assim, quebrar um pouco da mesmice da rotina e se divertirem. – Mas é claro que era um evento promovido pela primeira classe em que a segunda classe só tinha o direito de olhar embasbacada para aquilo tudo.
A família Iwashita
A família de minha tia – os Iwashita – era uma das famílias que possuía mais poder e que estavam imersas nessa atmosfera da vila. Possuíam cinco ou seis territórios, conquanto não fossem muito grandes, para exploração de madeira, pequenos arrozais e áreas de plantação que arrendavam para os coreanos e, por isso, tinham uma renda alta que os possibilitavam a realização também de empréstimos à juros altos.
A casa ficava num elevado ao norte da estrada de ferro.
As pessoas que viviam ao sul da estrada de ferro se autodenominavam “a cidade” e chamavam a área ao norte de “interior” enquanto os que viviam ao norte chamavam as terras do sul de “cidade baixa” e se autodenominavam “cidade alta” e, assim, satisfaziam seus orgulhos mutualmente.
A casa da minha tia ficava na parte mais elevada desta “cidade alta”. Era uma casa dividida em duas fileiras em forma de chave com tetos baixos de palha e com quatro quartos de assoalho aquecido em estilo coreano que ocupavam cerca de quatro tatames e meio. A construção era bem estrapilhada, mas, por dentro era bastante ampla. Na parte traseira da casa havia dois galpões e, passando pelas plantações próximas ao jardim, havia um celeiro de arroz. No jardim plantavam-se frutas e vegetais.
Meu tio era um homem calado e gentil nascido em Nagano. No passado parece que ele era o responsável chefe pela manutenção dos trilhos, mas, em certa ocasião, um trem desencarrilhou deixando mortos e feridos e, por conta disso, ele, assumindo a responsabilidade, se demitiu. Após o acontecido, ele tem levado a vida tranquilamente neste interior. É um homem bastante comum que tem como passatempo a lida de seu jardim e o cantar músicas de noh. Minha tia, dez anos mais nova, é magra e alta, elegante, inteligente e, além disso, muito capaz. Por conta disso, ela também parece um pouco masculina e prática. Ela gosta de jogar cartas e sempre convida os membros de sua classe social a visitar sua casa para jogarem juntos nos fins de ano e em outras ocasiões. É realmente uma madame burguesa em seus passatempos: ela toca koto, dança, na primavera coleta feteiras, no outono vai as montanhas para colher cogumelos.
Todos das redondezas chamam minha avó de “matrona aposentada, matrona aposentada”, mas, na realidade, ela não tem nada de “aposentada”, é ela quem comanda a casa da minha tia.
Minha vida na Coreia
Parte 1
Minha mãe, minha avó, minha tia, todos me enviaram para cá com os melhores votos e esperando que eu encontrasse a felicidade que a mudança me reservaria. Eu também vim para a Coreia sob o efeito dos mais belos sonhos.
Contudo, percebi logo após minha chegada que a vida em que eu estava adentrando não seria nem de perto tão divertida quanto julgava.
Eu que tinha vindo até aqui acreditando nas palavras de minha avó, não queria quimonos de crepe de manga longa ou faixas de cintura, mas achei que ela me vestiria com quimonos que frequentemente via as senhoritas usarem. Eu também não fazia questão dos brinquedos que ela disse que compraria, mas pensei que ela me compraria ao menos os livros que eu desejasse. Além disso, eu, que não tinha mais pai ou mãe, imaginei que encontraria pessoas que me amariam como pais e mães. Mas eu não recebi nada disso.
É claro que eu me decepcionei enormemente. Mas eu já estava acostumada com estas coisas desde quando eu era menor e, por fim, não sofri muito com isso. Entretanto, eu me lembro de uma coisa que aconteceu logo após eu ter chegado que me deixou inenarravelmente triste.
Certo dia, alguém veio até em casa, uma mulher que eu via pela primeira vez, e, ao me ver, disse, provavelmente na tentativa de um elogio:
“Mas que bela menina esta, hein!?”. Minha avó, sem transparecer qualquer contentamento, disse em tom o mais cru possível: “Quê? É só a filha de uns conhecidos. De qualquer forma, é uma criança extremamente pobre que não conhece nenhuma etiqueta e só sabe palavras vulgares, é realmente uma vergonha para mim, mas fiquei com tanta pena da pobrezinha que acabei trazendo ela para casa”, foi o que respondeu.
Que eu era pobre, pouco me importava. Eu sabia bem como eu tinha vivido desde quando eu era pequena em meio a tanta penúria, sabia que era uma criança miserável e pobre. No entanto, mas, no entanto, porque minha avó não disse que eu era filha de seu primogênito e, portanto, sua neta? Eu não calculava tudo isso tão claramente como faço agora, mas, na época, eu senti uma tristeza incontornável, como se algo estivesse fora do lugar.
Isto não foi um acontecimento isolado. Minha avó sempre explicava minha condição naqueles termos. Não só isso: ela chegou até mesmo a me mandar dizer algo nessa linha se alguém, por acaso, me perguntasse algo. Além disso, minha avó ainda, em um murmuro que soava crível, disse em acréscimo:
“Você ainda não entende, mas, se não for assim, como legalmente a gente não tem parentesco, se alguém descobrir a verdade tanto você quanto seus pais vão acabar tendo que vestir as calças beges.”
De fato, eu não sabia o que tudo isso significava. Mas eu sabia o que significava “vestir as calças beges”. Então, mesmo que não entendesse tudo, eu acabei me sentindo coagida por aquelas palavras. Nisso, ao fim dos sete anos que vivi na Coreia, não contei, por fim, a minha verdadeira condição para ninguém.
Pensando agora, provavelmente minha avó e sua família sentiram que, por conta de uma criação em um ambiente completamente adverso, eu acabei sendo moldada de uma forma indesejada, acabei tendo um linguajar pouco sofisticado e, por isso, não tinha o suficiente para ser parte daquela família refinada, só conseguiria jogar lama no prestígio de seus nomes. Mas não tinha como eu, que era uma criança na época, entender nada daquilo. Realmente havia acreditado que seria aceita como filha de minha tia.
Parte 2
Antes mesmo de se passarem dez dias desde que eu tinha chegado a Coreia, comecei a frequentar a escola.
A escola era um bangalô de teto de palha e ficava bem no centro da vila. Na direção oposta à sala de aula, ao abrir a alta porta corrediça de papel, era visível, depois de dois ou três áreas de plantações, a multidão do mercado, burros, vacas e porcos.
A escola era administrada pela vila e tinha um pouco menos de trinta alunos. O professor era um honesto ancião já passado dos sessenta e que, pelo que contam, só era professor graças ao seu parentesco com o médico local. Quando eu entrei na escola, infelizmente, não havia uma turma de terceiro ano e, por isso, acabei tendo que frequentar o quarto. Meu primeiro ano de ensino formal consistia em meio mês naquela escola das caixas de cerveja que serviam como mesa, e mais meio ano entrecortado por quatro mudanças que fizemos naquele tempo; já meu segundo ano consistia em cinco meses de aula e no terceiro ano eu não fui nem quatro meses para a escola e, agora, com nove anos de idade, já estava no quarto. É claro que a situação era um absurdo, mas eu, ao contrário, me sentia feliz com tudo isso. Principalmente quando me diziam:
“Sabe, Fumi, para a filha de uma família pobre como os Kaneko não tem lá muita importância, mas agora você irá para a escola como uma criança da família Iwashita. Então vê se estuda direitinho, hein? Se você perder para esses filhos de camponeses, se você fizer algo que nos envergonhe, a gente pega nosso nome de volta, ouviu?...”
Eu ficava ainda mais feliz quando ouvia isso. Apesar de tudo, eu ficava radiante de saber que eu realmente era considerada uma criança dos Iwashita. Na realidade, meus colegas de turma me chamavam por este sobrenome. Graças a posição que a família de minha tia ocupava, eu recebia os prêmios de distinções em provas, recebia os meus diplomas todos escritos e identificados com o nome “Iwashita Fumiko”.
No entanto, eu percebi que em algum momento após eu ter entrado no quinto ano, tanto meu boletim quanto meu diploma passaram a vir com o nome “Kaneko Fumiko” escrito.
Após somente meio ano eu já estava privada do direito de usar o sobrenome Iwashita. Não era como se eu estivesse perdendo para os filhos dos camponeses. Não tenho nenhuma memória de ter feito algo que poderia envergonhar os Iwashita. Mas, ainda assim, eu não era mais a Iwashita Fumiko.
O que será que tinha acontecido?
Ainda hoje, é claro, eu não faço ideia. Eu só consigo supor que foi da seguinte maneira que a coisa se deu.
Após eu ter começado a frequentar a escola, minha tia e o pessoal da família prepararam um cômodo vazio de uma casa que ficava nas proximidades do jardim para que fosse meu lugar de estudos. Me falaram para que eu, assim que voltasse da escola, fosse para aquele quarto e revisasse as matérias estudas no dia, reservando uma hora para cada.
Contudo, apesar de soar um pouco estranho eu dizer isso acerca de mim mesma, eu não precisava estudar. Não faço ideia de onde eu o aprendi, mas, o fato era que quando eu estava no segundo ano já lia os livros de leitura do sexto, no terceiro ano já lia os livros de moral e ética do segundo ano do médio, tudo isso sem muita dificuldade. Em matemática eu também ia bem, ao ponto de não conseguir me lembrar de nenhum problema de matemática do ensino fundamental que tenha me deixado confusa e, por volta de meus onze, doze anos, já era até mesmo boa em fazer de cabeça multiplicações de números de quatro dígitos. O mesmo valia para as aulas de música, bastava que o professor cantasse umas cinco vezes e, na seguinte, eu já saberia toda a música. Eu só era ruim nas matérias que exigiam uma delicadeza técnica mais apurada, como caligrafia e desenho. Deste modo, eu não tinha necessidade alguma de revisar ou estudar previamente as matérias.
Nisso, assim que entrava no meu quarto de estudos, eu tirava minha mochila das costas e só ficava ali esperando, ansiosa, minha avó me chamar enquanto mordiscava o biscoito de arroz que ela havia me dado.
Certo dia, tomada por um grande tédio, acabei saindo do quarto antes da hora. Reclamei, mimada, para minha avó:
“Vó, eu não preciso fazer revisões, eu me viro bem...”
Foi eu dizer isso para que os olhos de minha avó se turvassem de fúria e ela asseverar:
“Aqui não é como na casa dos miseráveis Kaneko. Não vou admitir uma postura tão desleixada!”
Eu fiquei triste por não ter sido compreendida. Juntei toda minha coragem e voltei a argumentar:
“Mas eu consigo ler muito bem sem precisar ficar fazendo esse monte de revisões, eu quero ler livros mais difíceis e interessantes...”
É claro que meu pedido foi sumariamente rejeitado.
“Não diga tamanha petulância! A escola já oferece livros o suficiente!”
Este era um imperativo categórico por parte de minha avó. E eu, de minha parte, tinha que o obedecer. Então eu desisti e, de início, realmente fiz as revisões, mas aquilo tudo era tão estúpido que, no fim, eu só ficava ali fazendo bonecas ou brincando com uma bola. E, se era para ficar brincando, era melhor que o fizesse do lado de fora. Mas, se eu pedisse algo do tipo, obviamente seria escorraçada mais uma vez e, portanto, eu abria os livros e cadernos e fingia que estudava enquanto me divertia em segredo. Mas minha avó, em certa altura, parece ter se tocado do que estava acontecendo. Ela então, às vezes, vinha sorrateiramente até o quarto e abria de uma vez a porta corrediça de papel. É evidente que eu estava geralmente brincando nestas horas e, portanto, eu recebia uma admoestação severa.
Isso continuou por mais quatro ou cinco vezes. Até que, por fim, a minha hora de estudo foi tirada de mim.
Não preciso nem dizer que aquilo foi um erro de cálculo sem precedentes. Na minha concepção, esse foi, sem dúvidas, o primeiro e o principal motivo por trás da subtração de meu direito sucessório da família Iwashita.
Parte 3
As matérias em que eu tinha mais dificuldade eram caligrafia, desenho e, depois de um tempo, as matérias que exigiam um cuidado técnico maior como as aulas de costura.
Mas não era como se eu não gostasse dessas aulas. Além disso, eu não achava que era ruim nestas coisas de nascença. Parando para pensar agora, desde a época em que eu frequentei a escola em Yokohama, eu não tive oportunidades suficientes de usar pincel, papel ou lápis além de também não ter frequentado a escola por um período satisfatório e, talvez por isso, eu não tenha tido folga para desenvolver essas habilidades. Eu tomei consciência disso pela primeira vez ao ter vindo para a Coreia.
Após chegar na Coreia, eu percebi que minha letra era terrível e comecei a praticar diligentemente. Mas minha tia não me fornecia nem mesmo a quantidade adequada de papel, este item crucial.
“Hoje é dia de aula de caligrafia”, eu alegava, minha tia então me dava somente duas folhas de papel para caligrafia. E mesmo essas duas folhas, na realidade, eram os embrulhos de presentes que recebeu de outra família e, claro, vinham cheio de vincos e amassados. Eu não era dona de uma natureza metódica ou sistemática, mas, ainda assim, eu não conseguia ter vontade alguma de me sentar para escrever qualquer coisa naqueles papeis. Além disso, se eu errasse a escrita naqueles dois papeis eu não teria mais nada para escrever, por isso, do quarto ano do fundamental até me formar, eu só entreguei um trabalho, no total de três requisitados, de caligrafia bem-feito. Talvez seja por isto que, ainda hoje, eu tenha essa letra horrível e nem mesmo consiga usar um pincel apropriadamente.
Quanto as aulas de desenho, tenho uma memória inesquecível.
Quando progredíamos para o quinto ano do fundamental, começávamos a usar materiais de pintura nas aulas. Eu precisava que me comprassem os materiais. Mas como eu sabia que não comprariam nada para mim com facilidade, não importando o quanto eu precisasse, eu hesitava mesmo em pedir qualquer coisa. Mas, relutante, acabei pedindo para que me comprassem os materiais de pintura. Nisto, meu tio disse para mim:
“Traga lá seu caderno de desenhos e me mostre.”
Após eu mostrar o caderno de desenhos, ele disse depois de olhá-los por um momento:
“Se for esse tipo de desenho, o que eu tenho aqui vai ser o suficiente”, e tirou de sua caixa de pintura três tintas velhas e desgastadas das cores primárias, vermelho, azul e amarelo, e dois pincéis igualmente desgastados.
Aqueles materiais se esfarelaram em minhas mãos rapidamente. Bem nessa época um tipo novo de tinta que precisava ser diluído como o nanquim começou a ser vendida na loja de produtos escolares da vila. As cores eram bem nítidas e, além do mais, por ser um produto novo, todo mundo estava usando-o. Eu também queria uma tinta daquela. Então, após refletir profundamente na questão, cheguei à conclusão de que, no fim, era um material que eu precisava e, certa manhã, arrisquei pedir para que me comprassem aquelas tintas. Para que me comprassem aquelas tintas que custavam só doze centavos.
“Se é algo de que você precisa, eu compro.”
Meu tio disse. Minha tia também estava de acordo. Mas minha avó não permitiu a compra.
“Aqui, deixa eu te falar”, minha avó disse para mim enquanto depositava o hashi que usava e direcionava sua carranca em minha direção. “Deixa eu te falar, não é possível que você tenha esquecido, né, você era uma pessoa sem registro, sabe? Uma pessoa sem registro, e me escute bem: uma pessoa sem registro é alguém que nasceu, mas que, na verdade, não existe. É por isso que elas não podem ir para a escola. E mesmo que vá, ela só vai ser feita de trouxa pelos outros. Eu tive pena de você e só por isso te coloquei em um registro. Se eu não tivesse ido te salvar, ainda hoje você estaria sem registro e, claro, não estaria nem mesmo frequentando a escola como qualquer pessoa normal. É por isso que você tem que enfiar nessa sua cabecinha que você só pode ir para a escola por simples e pura benevolência nossa. Ainda assim, você esquece sua própria posição e fica o tempo todo pedindo isso e mais aquilo outro. Se você vai continuar com esse jeitinho egoísta, eu te tiro da escola, tá me ouvindo? E se lembre bem disso toda vez que você nos dirigir a palavra. É a gente que decide se você vai ou não para a escola...”
Por fim, não me compraram aqueles materiais de pintura. E estaria bom se fosse só isso. Eu não consigo conceber o quanto minha autoestima foi afetada pela constante lembrança de que eu não tinha registro. Eu não consigo esquecer nada disto.
Caro leitor, eu venho dizendo que o motivo de eu não ter ido para a escola enquanto eu era mais nova ou de eu ter sido tratada diferente, era o fato de eu não ser registrada. No entanto, digo o que digo só porque eu escrevo isto agora, depois de já ter me tornado adulta. A bem da verdade, na realidade, naquela época eu não fazia ideia de nada disso. E exatamente por não fazer ideia de coisa alguma é que tudo aquilo era ainda mais humilhante e doloroso. Eu só pensava em porque eu era tratada diferente, em porque eu não recebia o diploma e, assim, entristecia. Só descobri que era porque eu não tinha registro depois que fui para a Coreia.
Entretanto, por acaso era um pecado meu não possuir um registro? Não me dizia respeito eu ter ou não ter um registro. Isso era exclusivamente culpa de meu pai e de minha mãe e eram eles que deviam lidar com as consequências. Mas, ainda assim, foram para mim que as escolas fecharam suas portas. Era a mim que as pessoas ridicularizavam. Até mesmo minha avó de sangue me ridicularizava e me coagia por conta disto.
Eu não sabia de nada. A única coisa que eu sabia era que tinha nascido e que seguia vivendo. Sim, eu sabia claramente que vivia. Mesmo que me digam que sou alguém que nasceu, mas que, na verdade, não existe, eu nasci e sigo vivendo.
Parte 4
Era verão do ano em que eu ia para o quinto ano. A escola passou a ser administrada pelo estado e agora também tinha cursos do médio. O professor idoso foi substituído por um professor mais jovem.
Bem nessa época começou uma obra de larga escala para deslocamento da estrada de ferro e descobriram também tungstênio nas montanhas das redondezas. Por conta disso a popularidade destes arredores explodiu e muitos japoneses vieram para a vila. O número de crianças matriculadas na escola também aumentou vertiginosamente e naquele tempo já passava de uma centena. A escola tinha ficado pequena. Nisto, um novo prédio para a escola foi construído no pé de uma montanha da família de minha tia e era localizada em uma área bem no centro da vila. Todos nós fomos transferidos para essa nova escola. Apesar de que, mesmo que finalmente o número de salas de aulas tenha aumentado para duas, ainda, claro, só havia um professor na escola e, portanto, era evidente que não recebíamos uma educação completa.
Eu seguia sem receber os materiais necessários para as aulas e, assim, o novo professor, Hattori, sempre me emprestava os itens para pintura e os lápis. O professor certamente sentia pena de mim. Entretanto, ele tinha que bajular aqueles que detinham o poder na vila. Ele, então, apesar de sempre vir até minha casa se divertir, nunca falava nada a respeito da minha situação para minha avó ou tia. Ainda hoje tenho vontade de dizer: “Pobre professor Hattori!”
Parte 5
A partir dos meus doze, treze anos eu comecei a ter que ajudar minha avó na cozinha. Fui de herdeira da família Iwashita para empregada doméstica.
Eu, a empregada, tinha que realizar todos os afazeres domésticos. No meio do frio invernal, eu tinha que lavar o arroz e, também, me envolver em uma toalha para atear fogo na caldeira que esquentava o assoalho de estilo coreano. Era responsável desde a limpeza da tampa da lamparina até a sua faxina. Não era como se eu desgostasse disso. Na realidade, eu era grata por ter tido a oportunidade de realizar este preparatório para a vida real.
No entanto, mas, no entanto, não importa o que digam, as pessoas ainda são só pessoas. Eu, em particular, era uma mulher. E passei por algo que me causou bastante sofrimento.
Não me lembro se era primavera ou outono, mas fazia bastante frio e chuviscava todo tempo. Meu tio tinha ido para o encontro de canto e o criado Kô estava próximo ao jardim moendo o arroz sob o telhado do celeiro, dentro de casa minha avó tocava shamisen a portas fechadas e minha tia repassava movimentos de dança.
Era um dia calmo. Eu estava sozinha de cócoras no chão de terra batida em frente ao forno da cozinha acabrunhada e imersa em um indescritível marasmo enquanto escutava ao longe as batidas lânguidas no pilão, a chuva que caia lassamente e a calma e lúgubre melodia do shamisen.
Eu amava aquela tristeza e calmaria. Mas, como os vegetais tinha cozinhado, eu me levantei para tirá-los da água fervendo e colocá-los em água fria. Em seguida, peguei a panela e fui até a vala ao lado do poço para jogar a água fervendo ali. No que eu comecei a despejar a água, o vapor quente e denso começou a tocar no meu braço que estava descoberto e, mesmo tentando me conter, a asa de um dos lados escapou da minha mão. A panela de ferro caiu e despedaçou-se em migalhas.
Foi o tempo de eu pensar “ah, não!”, mas já era tarde. No entanto, não era como se eu achasse que tivesse feito algo de errado e quando minha avó voltou para a cozinha mais uma vez eu, sem nenhuma reserva, contei que havia quebrado a panela. Foi eu terminar de falar para que minha avó de repente gritasse comigo:
“Quebrou a panela? Sua incompetente!...”
Eu me encolhi completamente. Só conseguia, perplexa, olhar para o rosto de minha avó.
Minha avó me xingou terrivelmente. Depois do sermão ela ordenou que eu pagasse o valor da panela.
Eu só respondi que “sim” a tudo que ela me falava. Então, por volta de meio mês depois, minha avó foi até a cidade e comprou outra panela.
A panela antiga parece que foi comprada a uns quatro ou cinco anos por setenta centavos de ienes, mas, desde então, o custo de vida subiu bastante e agora as panelas já estavam custando um iene e vinte centavos.
Minha avó disse:
“Como você não quebrou a tampa e eu fui até a cidade para fazer outras coisas, pode deixar que o valor da passagem eu banco...”
Desde que eu viera para a casa de minha avó, só tinha recebido dez centavos para pequenos gastos. Como, então, eu paguei esses um iene e vinte centavos? Com meu salário de empregada? Como eu acabei de dizer, eu nunca recebia um centavo sequer pelos serviços que eu prestava. Esse dinheiro saiu, na realidade, dos 22, 23 ienes que recebi de meus parentes maternos quando deixei a vila para vim morar aqui.
Parte 6
Ainda assim, para mim era um alívio que com dinheiro eu pudesse comprar um pedaço da raiva de minha avó quando eu quebrava alguma coisa. Foi também minha salvação.
Não chegava nem perto do sofrimento de quando eu fazia algo errado e não podia compensar monetariamente. Nessas horas, em troca do dinheiro, eu pagava com punições físicas.
Era o segundo dia após o ano novo de meus treze anos de idade. Os Iwashita se reuniram a mesa pela manhã para comer os cozidos de início de ano. Nesta ocasião, por algum acaso do destino, o hashi de ocasiões especiais de minha avó partiu sonoramente em dois.
Fui eu que coloquei os hashi dentro de cada saquinho e, então, naturalmente, a responsabilidade recaiu sobre mim. Minha avó alterou sua compleição e atirou o hashi em minha direção.
“O que isso significa, hein?! Que mal agouro”, minha avó começou a me insultar. “Logo após o Ano Novo! Fumi, você tentou me matar com alguma praga, não é? Deixa estar, vou me lembrar disso.”
Ao pegar e olhar o hashi que tinha sido jogado contra mim, vi que bem no meio deles havia dois buracos bem grandes abertos por insetos.
Eu não tinha percebido isto. Como eu não havia percebido, realmente era um erro meu. Mas porque eu teria algum motivo para querer rogar uma praga em minha avó para tentar matá-la? Mas mais importante, eu sequer sabia que fazendo isso era possível praguejar contra a vida de alguém.
“Me desculpe. Eu não percebi que o hashi estava assim...”
Eu me desculpei. Mas minha avó não me perdoou. O que eu deveria fazer nestes momentos? Com base nas minhas experiências acumuladas até então, eu só conhecia duas maneiras. Eu poderia continuar insistindo que tinha sido um acidente ou me desculpar concordando com minha avó e dizendo “sim, foi exatamente como a senhora disse. Vou tomar cuidado daqui para a frente”.
Mas é evidente que eu não podia dizer que “sim, eu tentei matar a senhora com uma praga”. Dizer tal coisa seria como proferir algo tão terrível que justificasse até mesmo eles tirarem minha vida, e, além do mais, eu realmente não o tinha feito com esta intenção. Mas não era do feitio de minha avó me perdoar enquanto eu continuasse afirmando que não tinha feito aquilo.
Eu não atinava para como deveria responder. Eu fiquei perdida. Por fim, só disse a verdade, não havia mais nada que eu pudesse falar além de que eu não sabia de nada.
Nisto, minha avó, por fim, me castigou com a sua costumeira punição.
Aquela costumeira punição! Ah!, só de lembrar já tenho calafrios.
Eu fui colocada imediatamente para fora de casa sem sequer ter experimentado o cozido de ano novo. Era uma manhã de inverno da Coreia de não sei quantos graus negativos. Eu estava com frio. Eu estava faminta. Eu estava sofrendo com todos encarando minha figura estancada em pé e desolada.
Eu fui me esconder atrás da latrina onde os olhos das pessoas não poderiam me encontrar. De um lado, a parede da latrina, do outro, uma colina que foi destruída para a construção de uma casa. A luz solar nunca chegava até onde eu estava. A neve que se acumulava ali tinha se tornado uma placa de gelo dura e qualquer um que tentasse ficar de pé ali invariavelmente escorregaria ao chão. De tempos em tempos a neve mesclada à areia vinda da Manchúria batia em meu rosto e pernas sem piedade alguma.
Eu tentei ficar em pé. Eu tentei ficar de cócoras. Eu chorei copiosa e sonoramente. Tentei fantasiar uma vida de felicidades para esquecer meus sofrimentos. Mas não tem como esquecer o sofrimento com uma coisa dessas.
Minha avó passou por ali quando foi dar comida para as galinhas.
“E aí? Por que você não tá brincando por aí?...”
A boca de minha cruel avó se contorceu. Mas ela sequer me estendeu a mão e só passou direto por ali. Eu corri atrás dela me agarrando à sua manga implorando por perdão. Mas ela só libertou a manga que eu segurava. Ah!, quanta tristeza eu senti naquele momento...
Após escurecer, depois de todos já terem terminado as suas refeições, eu fui perdoada.
Como era o frio do entardecer? Ao entardecer a temperatura do ar cai drasticamente. Com frio e cansada, minha cara estava dura feito pau, minhas pernas estavam dormentes e pareciam duas varas de tão duras. Eu não senti nem mesmo dor quando me beliscava. Estava tão faminta que não demoraria a ter vertigens.
Mesmo tendo sido perdoada e pudesse voltar para dentro de casa, eu estava tão desolada e abatida, com a raiz dos dentes tremendo e tão languida que não consegui nem mesmo segurar o hashi para comer.
Se fosse para enumerar todas as vezes que algo deste tipo aconteceu, não teria fim. Em casos extremos, ela propositalmente tramava algo para que eu cometesse um erro e, alegando que era minha culpa, me fazia passar por esta mesma punição. No entanto, já basta disto.
Eu preciso acrescentar somente mais uma coisa. Sempre quando, depois destas punições, eu me desculpava, independentemente de estar certa ou não, ela me fazia jurar nos seguintes termos: “eu não voltarei a fazer nada do tipo novamente”. Minha avó e os seus achavam realmente que a dignidade de sua família não poderia se manter caso não me punissem dessa forma? Ou eles realmente achavam que eu iria melhorar com esse tipo de punição?
Todavia, eu ainda preciso falar algo sobre estas punições que senti tão profundamente.
Gostaria de dizer que: - Só façam as crianças assumirem as responsabilidades do que de fato fizeram. Não façam com que terceiros jurem pelos atos de outros. Isto é o mesmo que usurpar o senso de responsabilidade das crianças. É abjeto. É ensinar a carregarem sempre segundas intenções seja nos atos, seja nos sentimentos. Não importa quem seja, ninguém deve fazer promessas acerca de suas próprias ações aos outros. Não se deve relegar a algum supervisor a responsabilidade de seus atos. Todos os humanos precisam entender que a totalidade de seus atos são única e exclusivamente responsabilidades suas. É somente assim que, finalmente, não iremos mais enganar os outros, não iremos mais temer ninguém e veremos nascer a verdadeira, inquebrantável e autônoma ação praticada com responsabilidade.
A forma como minha avó culpava as crianças, na realidade, só serviu para me deturpar e me fazer mentir.
Eu ficava agoniada ao ponto de perder peso sempre que quebrava um prato. Eu ficava preocupada ao ponto de não conseguir engolir a comida quando quebrava um pente porque possuía muito cabelo. Eu não gostava de ter que esconder essas coisas. Mas eu tinha também medo de contar o que tinha acontecido. Tinha medo da admoestação e dos castigos físicos que me esperariam. Assim, eu acabava perdendo a única chance de confessar. Ficava angustiada enquanto pensava em contar o acontecido o mais rápido possível e os dias continuavam passando. Eu tentava, em consequência disto, a todo custo esconder meu erro. Comecei a esconder as tigelas quebradas enrolando-as em um papel e as colocando nos fundos das caixas, ou tentar colar os pentes quebrados com grãos de arroz cozido para colocá-los sorrateiramente na caixa em que estavam anteriormente.
Eu sempre tinha o peito pesado e sombrio. E por isso eu andava inquieta, assustada e instável.
Parte 7
Ao escrever estas coisas sobre mim mesma não consigo deixar de pensar em Kô, o criado. Acabo sentindo mesmo que não vou conseguir prosseguir sem antes escrever um bocado sobre ele.
Kô não era um homem muito astuto, mas, em contrapartida, era integro, honesto e incrivelmente trabalhador. Ele era o tipo de homem que sempre realizava tudo sem fazer corpo mole por nenhum momento e nunca pensaria em, mesmo por engano, surrupiar bem algum de seu patrão.
Ele tinha uma esposa e três crianças. Sua filha mais velha era muito bonita e alguns homens a queriam comprar pelo dote de três sacas de 18 litros de arroz não polido, mas minha avó falava para ele não aceitar alegando que quando sua filha fizesse doze ou treze anos ele conseguiria vendê-la por cem ienes sem maiores problemas. Assim, em meio as dificuldades, ele pacientemente continuou a criando.
Seu salário era por volta de nove ienes, dois, três ienes abaixo do valor de mercado normal. Mas, mesmo esse salário, só perdurou durante os primeiros meses até que minha avó percebesse que seria mais lucrativo pagá-lo com arroz no lugar de dinheiro. Deste modo, ela começou a pagar dois ienes dos nove que ele tinha direito em arroz - principalmente um arroz ruim - que valia dois centavos a menos do que o usual por cada cinco sacas de 1,8 litros.
Deste modo, portanto, Kô era extremamente pobre. Ninguém em sua casa conseguia comer o suficiente para se satisfazer. Em pleno inverno podíamos ver seus filhos tremendo enfiados em sacos de arroz chinês feitos de juta. Até mesmo Kô, a principal força de trabalho de sua casa, só tinha para si mesmo a roupa que trazia em seu corpo e, ainda assim, minha avó implicava com seus sermões asseverando que seria socialmente complicado para ela o fato dele sempre estar tão sujo.
Era um entardecer especialmente frio. Kô, do lado de fora, conversava timidamente com minha avó através das portas corrediças de papel fechadas.
“Madame, mil desculpas, mas será que eu não poderia tirar todo o dia de amanhã de folga? Um assunto inadiável apareceu...”
Minha avó, sentada com as pernas abrigadas no kotatsu, o repreendeu severamente:
“Quê? Folgar? Então finalmente você começou a querer fazer corpo mole? Não respondo por mim se você continuar nessa preguiça toda, hein!”
“Não, madame, não é nada disto. É que eu preciso ir sem falta até um certo local.”
“E o que seria esse compromisso inadiável, hein? Por acaso você não vai me dizer que um parente rico de Keijô virá te visitar amanhã, né?”
Desta maneira, minha tia e minha avó, trocando olhares, riam enquanto tiravam sarro de sua cara.
“Não, é claro que não... Na realidade”, Kô, envergonhado, respondeu. “É que eu vou lavar minhas roupas...”
“Lavar roupas? Se for isso, não tem necessidade de que seja você a fazê-lo, não é? Não é para isso que você tem uma esposa? Que inocente que você é, hein?”
Ah!, o contraste entre aquelas ofensivas brincadeiras do lado de dentro e o coração desolado do lado de fora! Mesmo eu sendo só uma criança, não: exatamente por eu ser só uma criança, foi que naquele momento eu odiei minha avó e tia com meu puro senso de justiça como nunca voltaria a odiar novamente. Kô respondeu da seguinte maneira:
“Não é que eu esteja mimando minha esposa, madame. É que, na realidade, eu não tenho outro quimono e, por isso, enquanto lavo, seco no fogo, enxerto o algodão e costuro ele de volta ao seu estado original, preciso ficar pelado e, como está muito frio, eu estava pensando em me virar enquanto ficava enrolado no futon.”
As duas riam escandalosamente. E, por fim, concordaram com o pedido de folga sem nem mesmo oferecer um quimono novo para o rapaz.
Kô era um trabalhador honesto. Mas, ainda assim, ele era obrigado a viver naquela pobreza. Por isso, em certa feita, ele cogitou tirar uma folga para voltar a trabalhar na estrada de ferro onde ganharia por volta de dezessete, dezoito ienes de salário, contudo, minha avó não permitiu. Ela o convenceu que, mesmo que ele ganhasse dezessete ou dezoito ienes, o trabalho que ele teria de fazer lá não era tão bom quando o que ele fazia em sua casa e, além disso, enumerou todas as coisas boas que ele havia ganho enquanto trabalhava para ela.
“Mas o mais importante é que trabalhando para mim você pode morar de graça na casa que te alugamos; eu também posso adiantar seu salário se você tiver em verdadeiras dificuldades, além de que não cobraria mais juros do que os setenta por centos que normalmente cobram nos mercados; não dá pra esquecer também que, ainda que pequena, a gente te empresta uma área para plantação de vegetais, além dos potes de ferro e as panelas, não é mesmo?”
Dessa forma, o desvalido Kô, mesmo sabendo que na realidade seria melhor trabalhar na estrada de ferro, não conseguia achar uma forma de se desvincular e acabava preso naquele sofrimento todo.
Parte 8
Certamente era na época em que eu estava no quinto ano. Não, era quando eu tinha acabado de entrar no quinto ano. Dentre os vinte ou trinta novos nomes de crianças que entraram na escola, tinha uma garota muito inteligente, de boa aparência, calada, quieta e que parecia ter uma certa tristeza com ela. Por alguma razão que desconheço, eu gostava desta garota. E, como se meus sentimentos tivessem sido transmitidos por conta própria, em pouquíssimo tempo essa garota se aproximou de mim e começamos ser dependentes uma da outra. Eu gostava mais e mais dela. Passávamos nossos dias harmoniosamente na escola como se fossemos irmãs de verdade.
Esta era minha única alegria durante aqueles tempos. Eu não era amada em casa, mas essa menina me amava genuinamente. E eu também encontrei o meu objeto de amor naquela menina. Ah!, se nessa época eu não tivesse encontrado essa alegria provavelmente eu não teria tido disposição para continuar vivendo.
Ela se chamava Tami. Era filha de uma família que vendia geta e artigos de papelaria estabelecida a uns cem, duzentos metros da escola. Seu pai havia morrido enquanto ainda era pequena e sua mãe tinha voltado para sua terra natal no que ela passou a ser criada, junto a sua irmã mais nova, pelos seus avós. As duas não eram odiadas pelos avós, muito pelo contrário, eles as amavam intensamente. Mas, mesmo assim, eu meio que senti uma certa pena em saber que Tami era criada pelos avós. Ponderava comigo mesma se não era essa a razão por trás da compleição triste de Tami.
Tami me seguia por todo canto enquanto me chamava: “Iwashita, Iwashita”. Quando ela não sabia a leitura de alguma palavra ou como resolver um problema de matemática, sem falta vinha até mim para perguntar. De minha parte, eu tentava ensiná-la com verdadeira devoção.
Contudo, Tami era uma criança de constituição frágil. Ela faltava com certa frequência seja por pegar uma gripe, seja por estar com febre. Durante o inverno, sempre ia para a escola com um pano de seda branco enrolado no pescoço. Nessas horas, na ida ou na volta da escola, eu as vezes ia fazer uma visita à Tami.
Não sei se por isso, mas os avós de Tami também começaram a me mimar. Eles sempre me presenteavam com doces e materiais escolares.
Nosso amor foi ficando cada vez mais profundo. Ficávamos cada vez mais próximas com o passar dos anos. A irmã mais nova de Tami, naturalmente, também gostava de mim.
Mas as nossas brincadeiras e diversões só aconteciam durante o período da escola. Eu não tinha autorização para ir brincar nas casas de amigos ou mesmo de me divertir no lote vago das redondezas como qualquer outra criança normal.
A maioria das crianças das redondezas, ao chegar da escola, largavam suas mochilas em casa e se juntavam para brincar numa campina a uns cem metros da casa de minha tia. Após chegar em casa e seguir para a faxina do jardim, eu escutava as vozes das crianças que chamavam umas as outras. Jogavam pedra-papel-tesoura, faziam birra, ficavam bravas, choravam, riam: eu conseguia escutar todas essas vozes como se pudesse tocá-las. Ao espiar pela fresta da cerca do jardim eu, então, via meninos e meninas misturados correndo de um lado para o outro com suas faixas de cintura soltas. Conseguia ver claramente as crianças sendo pegas e pegando ainda outras em brincadeiras. Que divertido aquilo tudo aparentava ser, que libertador aquilo tudo parecia ser. Eu lamentava por não estar em uma posição de “um pobre imundo” enquanto observava as crianças brincando. “A nossa casa não é de pobres imundos, sabe? Não podemos largar nossas crianças na rua para ficar se divertindo igual esse povo faz”, era desta forma que minha avó assevera em seus sermões. Era graças a esta “nobre” filosofia educacional que eu era obrigada a ficar trancada em casa enquanto me prostrava de tristeza. Além disso, eu sabia muito bem que tudo isso não passava de mais uma desculpa para que eu fosse usada como uma escrava dentro de casa e, então, entristecia ainda mais.
Todos nas redondezas sabiam da severidade com que eu era educada e da quantidade de trabalho que me era delegada. As crianças, evidentemente, também estavam cientes disto. Por isso que, mesmo que saíssem para brincar, nunca vinham me convidar para ir junto.
Mas, ainda assim, às vezes quando não havia crianças suficientes ou quando, por algum motivo, queriam brincar comigo, as crianças chegavam até o portão de casa e me chamavam: “Iwashita, não quer brincar?”. “A Aki e a Micchi lá do lado do mercado também vieram”, era assim que me convidavam.
Eu era só uma criança. Eu queria muito ir. Mas como sabia que, não importasse o que, eu não poderia ir, na maior parte das vezes eu só me calava e nada respondia. Certas vezes, quando eu estava do lado de fora, me apressava para os fundos da casa para me esconder contendo até mesmo minha respiração. Minha avó, nessas horas, ficava irritada ao escutar as crianças me chamando e ia ela mesmo até o portão dizer:
“A gente não deixa a Fumiko sair pra fora normalmente. Não me venham mais convidá-la!”
Ao escutar a sua voz, as crianças fugiam como se estivessem sendo perseguidas por um demônio, mas mais tarde sobrava xingamentos era para mim.
Ela me xingava alegando que era eu quem tinha incitados as crianças para que viessem me chamar, que eu era uma preguiçosa inútil, que eu tinha uma natureza horrível e por aí vai...
Parte 9
Ainda estaria bom se eu só não pudesse brincar com as crianças após voltar para casa. Eu tinha ordens para voltar para casa logo que as aulas terminassem. Nisto, eu acabei impossibilitada de fazer sequer uma parada de cinco ou dez minutos pelo caminho. É claro que a escola não terminava sempre no mesmo horário e, portanto, as vezes eu conseguia fazer alguns desvios de cinco, dez minutos, mas, em troca, se me descobrissem a coisa ficava complicada. Evidentemente, eu também não tinha autorização para sair nem que fosse cinco minutos mais cedo da escola.
Entretanto, aconteceu algo muito doloroso comigo nessa época.
Até aquele dia, íamos para a escola ou pra cidade atravessando os trilhos da estrada de ferro que ficava ali bem perto, isto é, essa era a forma como as pessoas da cidade alta iam para a cidade ou para a escola, mas, com a mudança do chefe da estação, esse caminho foi bloqueado. Por isso, para conseguir ir até a cidade baixa a gente agora precisava fazer uma longa volta. Nisto, todos aqueles que não conseguiram suportar aquele inconveniente se mudaram para o lado sul dos trilhos e do lado norte ficaram só dois ou três daqueles que tinham uma casa nos moldes da de minha tia e um dono pobre de uma cabeleiraria. As casas dos japoneses sumiram. Se fosse só isso ainda estaria bom. O mais complicado foi que só restaram duas crianças que iam dali para a escola: eu e a filha do cabelereiro, Omaki.
O salão ficava a meio quarteirão abaixo da casa de minha tia na encosta da rua, era um estabelecimento deplorável: minúsculo, em chão de terra batida e úmida, mobiliado somente com um espelho de mercúrio trincado e uma cadeira de madeira com uma das pernas quebrada e amarrada com uma corda.
Eu ia e voltada da escola junto a Omaki. Mas, quando minha avó ficou sabendo disso, ela disse o seguinte:
“Fumi, não quero saber de você indo e voltando da escola junto com a filha de uma família que vive da imundice que tiram da cabeça alheia.”
É claro que eu tinha que obedecer a tal ordem. Comecei a enrolar lavando as vasilhas e secando as tigelas para que conseguisse ir sozinha um pouco depois, ou saia de mansinho pela porta traseira e seguia só.
Eu conseguia me virar desta forma na ida. Mas na volta não tinha muito o que se fazer e eu sempre acabava voltando com ela. A Omaki sempre me chamava para ir embora junto com ela. Eu estava proibida de voltar junto a Omaki. Mas de jeito nenhum eu conseguiria dizer para ela que “não podia voltar para casa junto a alguém pobre como você” e, então, voltava para casa imaginando a relharia de minha avó e tremendo de medo tentando, na medida do possível, andar mais rápido ou mais lento do que ela e trocar o mínimo de palavras possíveis.
Foi em um dia de verão. Eu e Omaki tínhamos acabado de cruzar o portão da escola pouco depois do meio-dia. Quando andamos menos de cinquenta metros pela rua, Omaki parou abruptamente e, ponderando, me disse:
“Sabe, tem uma coisa que eu queria ir buscar na casa do meu tio... Você pode me esperar um pouquinho, Fumi? Vai ser rapidinho...”
A casa do tio ao qual ela referia-se era uma loja de ferragem que ficava bem em frente de onde a gente havia parado, parecia que ele tinha uma condição bem razoável e, por isso, com certa frequência ajudava financeiramente a família de Omaki.
Era a oportunidade perfeita para nos separarmos! Tive a impressão de que tinha sido salva – e disse com toda a minha coragem:
“Ah, é? Me desculpe, mas eu estou com presa então vou ir indo na frente, tá?”
Mas Omaki era uma menina muito afável.
“Né, Fumi”, ela me pediu como se estivesse implorando. “Vai ser rapidinho, me espera por favor? Vai ser rapidinho...”
Eu não conseguiria insistir mais na negativa. Por fim, fiquei esperando Omaki enquanto, consumindo-me em preocupações, escorava-me na cerca ao lado daquela casa.
Omaki entrou contente e alegre na casa. Mas ela, que deveria sair de lá rapidamente, não dava nem sinais de regressar. Três, cinco, sete minutos e o tempo ia passando incessante. Eu ficava cada vez mais apreensiva. Já havia me arrependido das palavras que tinha dito. Em meio a apreensão e raiva, decidi que iria partir sem esperar por Omaki e gritei do lado de fora para dentro da casa:
“Omaki, eu já vou indo, viu?”
“Desculpe o atraso!”, ela me respondeu com um tom de remorso. “Vai rápido, tia!, eu estou fazendo a Iwashita esperar além da conta”, apressou, desta maneira, sua tia.
“Oh, céus, eu nem percebi que Omaki tinha pedido para você esperar... Aí está muito quente, não está? Por que você não entra?... O calor desses tempos está terrível, não é?”
Naquele tempo, eu estava extremamente sensitiva a qualquer espécie de palavras gentis. Minha apreensão e minha raiva foram dissipadas em um sopro e acabei entrando na casa. Tentei me posicionar em um local que não fosse visível para o lado de fora e me sentei bem no canto da loja. Mas assim que tomei acento a minha apreensão voltou com tudo. Sem conseguir me acalmar eu, tremendo, olhava para fora sem parar
Então, mas que má sorte era aquela! Meus olhos reconheceram meu tio que passava de bicicleta bem em frente à loja. Não só eu o havia reconhecido, como ele próprio me dirigiu um olhar gélido enquanto passava diante da loja.
Eu fiquei aterrorizada. Parecia que a vida havia cessado dentro de mim. Em meio ao espanto e terror, naquele momento eu cheguei a pensar que até mesmo meu coração tinha parado de bater. Mas, imediatamente, senti meu coração bater violentamente. Quando voltei a mim, me levantei abruptamente e disse para Omaki enquanto saia célere da loja: “Omaki, eu vou ir na frente, tá?”.
Me agarrei na minha bolsa que balançava pesada e, em transe, corri os quase oitocentos metros do caminho até em casa. Mas, quando me vi diante do portão de casa, fiquei novamente aterrorizada e não tinha forças para adentrar ao recinto. Meus pés pesavam. Arranquei, contudo, coragem de algum lugar e entrei em casa.
Minha tia, como de costume, estava no quarto de minha avó costurando. Me ajoelhei na varanda enquanto tremia de medo e as saudei respeitosamente: “acabei de chegar em casa”.
Ela, então, repentinamente, me derrubou da varanda para o chão de terra batida. Não: ela me chutou para o chão de terra batida. Então, como se aquilo por si só não tivesse sido suficiente, desceu com os pés descalços e veio me bater com o tirador de medida que estava usando.
Minha avó também desceu e veio até mim.
“Mesmo depois de tudo que eu falei você não aprende, né? Se é assim, vou fazer você entender!”, ela disse e, ainda com o geta nos pés, começou a me chutar.
Enquanto eu era espancada, não tinha sequer forças para me levantar. Só me restou chorar jogada na terra. Nessas ocasiões eu não tinha outra forma para me consolar a não ser chorar.
Após o espancamento, eu fui arrastada e jogada por minha avó para dentro do celeiro de arroz ainda com casca que ficava no jardim. Então, assim como nesta prisão, ela chaveou a porta do lado de fora.
Por conta do longo e quente dia de verão, o arroz daquele celeiro parecia estar dentro de uma estufa e o ar ali estava sufocante. Após despertar do violento choque e diminuir a tensão de meu peito, senti, de imediato, a dor localizada onde tinha sido socada e chutada. Também percebi que meu pente tinha quebrado e que havia machucado minha cabeça. Além disso, eu ainda não tinha almoçado e sentia uma fome insuportável. Entretanto, não havia nada o que comer. Eu me recostei em uma saca de arroz, recolhia um a um os arrozes que estavam caídos ao meu pé e descascava-os com minhas unhas para mordiscá-los.
Em algum momento, talvez tomada pelo cansaço, caí em sono profundo.
Fui tirada do celeiro somente no entardecer do dia seguinte. A raiva de minha avó ainda não havia aplacado. Ela veio e, calada, deixou para mim um pequeno prato de abóbora. Eu comi vorazmente como se fosse um cachorro de rua esfomeado.
Quando terminei de comer, meu tio veio até mim. Me entregou uma carta e disse:
“Pegue isto e vá levar à escola...”
Quando a olhei percebi que era endereçada ao meu professor.
“Certo... Devo ir agora?”
“Sim, é para ir agora mesmo...”
Lavei o rosto, troquei de roupa e sai de casa.
Eu não sabia do que se tratava. Mas, enquanto seguia meu caminho, cogitava que poderia ser uma carta pedindo para o professor me admoestar. No entanto, não importa o quanto pensasse, eu não conseguia acreditar que havia feito algo tão ruim assim. O livro de moral ensinava que deveríamos nos dar bem com nossos amigos. Ensinava que não deveríamos desdenhar dos mais pobres. O professor não tinha falado sobre a “Amizade” dois, três dias atrás? Eu me lembrava vividamente daquelas palavras. Realmente não acreditava que o professor fosse me xingar. Pelo contrário, seguia feliz por julgar estar indo para o único lugar em possuía um aliado.
O professor estava vestido com seu quimono de verão e olhava as flores do jardim com uma criança no colo, certamente tinha acabado de jantar.
“Professor, boa tarde.”
“Vejam só se não é você, Fumiko, por que você não veio a aula hoje? Te xingaram hoje de novo, né?”, ele me recebeu com um sorriso.
Como era algo rotineiro, meu professor já não parecia achar grandes coisas o fato de eu ser escorraçada. Ou talvez tenha sido por empatia que ele tenha dito o que disse. Durante o caminho eu pensei em, quando encontrasse com o professor, contar somente para ele o que realmente tinha acontecido e pedir para ele analisar os fatos comigo. Mas, ao escutar as palavras que ele me dirigia, eu caí em prantos e não consegui dizer mais nada.
Enquanto eu chorava, tirei do bolso a carta e a entreguei para o professor.
O professor pegou a carta silenciosamente, abriu o envelope e passou o olho rapidamente pelo papel para logo em seguida enrolá-lo agilmente e colocá-lo no envelope mais uma vez.
“Eu não sei o que você fez de tão ruim, mas seu pai escreveu que você, Fumi, por imoderação excessiva, vai sair da escola.”
Ao escutar essas palavras, senti um golpe seco no peito. Senti mesmo que meus olhos se reviravam e eu ia tombar ali mesmo. Meu professor continuou:
“Mas não tem com o que se preocupar. É claro que isso não é uma saída definitiva, você só vai ficar um tempinho sem frequentar a escola. Eu vou tentar conversar com eles também, mas o pessoal da sua casa é do tipo que após decidir uma coisa não volta atrás naquilo. Portanto, o melhor que se tem a fazer agora é escutar bem escutado o que eles disserem, obedecer e ser paciente...”
Eu já não conseguiria confessar, nem mesmo para o professor, coisa alguma. Sem mais nenhum recurso, só me despedi em silêncio. Me sentia ainda mais triste por ter tido minhas expectativas traídas. Eu chorei copiosamente ao entrar na sala de aula. Mas como resposta só recebia meu choro que ecoava pelo teto daquela sala de aula vazia. Nunca me senti tão absolutamente solitária quanto naquele momento.
Pelas palavras do professor, eu senti como se ele já tivesse conversado sobre a minha situação com meu tio pela tarde. Então, naquele instante, ao ser chutada até mesmo pela solidão, eu percebi. Percebi o quão covarde e desonestos são os professores e quão vazias e ludibriosas são suas lições.
Parte 10
Era início de setembro quando aquilo aconteceu.
Assim como o professor havia dito, a partir do novo semestre que começava naquele mês eu tinha autorização para voltar a frequentar a escola. Mas no meu boletim daquele semestre eu recebi meu único “B” na avaliação de conduta.
Eu podia mais uma vez voltar a frequentar a escola. E recuperei minha energia só de poder voltar a ir para lá.
Nisso tudo o que mais me deixava feliz era poder voltar a me encontrar com minha querida Tami.
Tami já estava no terceiro ano. Sua irmã, Ai, também tinha começado a vir para a escola. Eu estava no primeiro ano do secundário. Conseguia finalmente me confortar ao olhar essas duas, ao tomar conta destas duas. O quanto eu queria me encontrar com Tami e com Ai durante o tempo que eu não pude ir à escola!
Mas, após voltar, eu só consegui me divertir com Tami por um breve espaço de tempo.
Logo que o segundo semestre começou, Tami, como de costume, pegou uma gripe e teve que se ausentar da escola. Passaram-se dois, três dias e eu ainda não havia visto o rosto de Tami. Então, aproveitando o intervalo de almoço das aulas, fui fazer uma visita para Tami. Tami parecia ter ficado muito feliz com minha vinda. Sua doença não tinha melhorado e o médico disse que provavelmente era uma pneumonia, mas como quando eu ia para lá ela ficava muito animada e faladeira, julguei que aquilo não era bom para sua convalescença. Nisso, fiquei um tempo sem ir vê-la. Mas, pouco depois, ouvi de Ai que a condição de Tami estava piorando muito e que agora seu caso tinha evoluído para uma meningite. Nesse momento eu, aproveitando outro intervalo de almoço, fui vê-la mais uma vez.
Contudo, desta vez, já não encontrei a Tami que eu conhecia. Quando fui até sua casa da última vez, ela ainda trazia um sorriso em seu rosto pálido e conseguia expressar alguma alegria, mas, dessa vez, nem isso ela conseguia fazer.
Tami só mantinha os grandes olhos abertos enquanto permanecia deitada de barriga para cima. O médico apontava a luz do refletor para sua pupila, mas ela sequer piscava.
O médico já tinha jogado a toalha. O avô e a avó de Tami estavam sentados ao seu lado calados e em desalento. Eu chorava.
Tami estava morrendo. Nunca mais poderia voltar a encontrá-la. Eu estava inconsolável.
Dois dias depois, todos os alunos foram levar Tami até o crematório em uma montanha distante. No dia seguinte, eu e mais dois ou três colegas fomos escolhidos para ir até lá buscar as cinzas de Tami.
Eu e Tami nos conhecemos por pura coincidência. Não passávamos de amigas de menos de três anos de convivência. Mas, como já disse anteriormente, nós éramos muito intimas, como se existisse algum elo especial que nos unia. É provável que eu tenha sentido empatia por Tami a quem o pai tinha morrido e a mãe a tinha abandonado, mas, de qualquer forma, eu considerava, do fundo de meu coração, Tami como uma irmã mais nova.
Desta maneira, quando Tami se foi, eu não só voltei a ficar solitária, mas também senti como se algo realmente importante tivesse sido arrancado de mim. Não importava se eu estava em casa ou na escola, sempre que, por alguma ocasião, lembrava de Tami eu chorava sentindo uma insuportável tristeza que se apossava de mim.
Um mês se passou desde então.
As crianças brincavam, animadas, no campo de esportes. Mas nesta época eu já não tinha nenhuma vontade de me enturmar nestes jogos. Eu só me recostava ao tronco do álamo no canto do jardim e me perdia em pensamentos. Neste momento, Ai veio correndo até mim inocentemente.
“Então você estava por aqui, Iwashita?”, ela dizia enquanto me puxava pela mão.
“Todo mundo estava te procurando. Vamos para lá. No que você estava pensando?”
Sem suportar mais daquilo, apertava com os dois braços Ai contra meu corpo.
“Eu estava pensando na sua irmã!”
Mesmo a inocente Ai, claro, ficava repentinamente com a feição triste. E como se recordar-se de algo, me disse:
“Você chegou a ver aquilo que eu levei para você outro dia, Iwashita?”
“Aquilo que você levou outro dia? Levou para onde?”
“Então você ainda não sabe?”, ela disse em um tom atrevidinho. “A caixa de costura que minha irmã comprou. Minha avó mandou eu levar para você como uma recordação, então eu levei.”
A caixa de costura de Tami! Eu me lembro dela, era uma linda caixa ainda nova, laqueada em preto e dourado. Eles tinham me enviado esta caixa. Como eu estava feliz. Quero guardá-la junto a mim para sempre. Não me lembro de ter recebido nada do tipo de ninguém lá de casa. Como, provavelmente, isso iria deixar Ai desapontada, não disse nada a respeito.
Respondi com tristeza:
“Ah!, aquilo! Eu vi sim... Muito obrigada...”
Se eu realmente já tivesse recebido aquela caixa, quão feliz eu não estaria! Não poderia agradecê-la o suficiente. Mas, naquele momento, não consegui mais do articular estas palavras. Como realmente me sentia culpada por isso, para disfarçar, eu disse:
“Então vamos lá brincar com o pessoal?” e então, trocando os papeis, eu saia correndo puxando Ai pela mão.
Parte 11
Eu queria aquela caixa de costura. Tinha a impressão que ao ver a caixa sentiria como se estivesse encontrando Tami. Então, quando voltei para casa naquele dia, inventei um pretexto qualquer e comecei a vasculhar pelo armário e pelas gavetas das cômodas. Mas não achei a caixa em lugar algum.
“O que será que aconteceu”, eu pensava. Ao mesmo tempo também pensava “não faz sentido não estar aqui”. Então, no dia seguinte e no seguinte ao próximo, eu inventei mais alguns pretextos e continue procurando enquanto organizava os armários e faxinava os quartos. Mas não conseguia achá-la.
Eu já havia desistido. Provavelmente era coisa de minha maléfica avó. Ela certamente havia guardado em algum lugar em que eu não poderia encontrá-la e, por isso, cessei a busca.
Um mês se passou desde então. Em uma tarde de um dia qualquer, encontrei algo como um pedaço de papel entre a parede e a cômoda do quarto da minha avó enquanto o faxinava. “O que será isso”, movida por esse tipo de curiosidade, me esforcei para tirá-lo dali. Era uma carta coberta de poeira.
A carta tinha letras de criança e vinha identificada com o nome “Sadako” escrito como remetente.
Sadako era a filha do irmão mais velho de minha avó que, no passado, veio para essa casa como filha adotiva, mas que, por divergências entre ele e minha avó, acabou voltando para a casa do pai. Foi em troca dela que me buscaram para ser criada aqui.
Eu enfie sorrateiramente aquela carta no bolso do peito de meu quimono e a levei para meu quarto. Uma vez lá, a li.
Eu não me lembro mais de seu conteúdo. Mas não tem como eu esquecer o teor do que ali vinha escrito.
Através da carta, eu descobri que essa Sadako era quem, no meu lugar, iria ser a herdeira da família Iwashita. Descobri também que os Iwashita vinham enviando várias coisas para Sadako. Descobri que enviaram todas as roupas que eu havia vestido enquanto estava na casa de minha mãe – além de terem enviado de presente também a caixa de costura que a família de Tami havia me dado de lembrança, aquela caixa que eu procurei tanto. Além disso, descobri também que Sadako, muito diferente de mim que era tratada pior que uma empregada doméstica, recebia aulas de dança, de costura e de arranjos florais. Ainda verifiquei que a carta, para finalizar, ainda era adornada com o lustroso “Querida senhora minha mãe”.
Eu, no entanto, não vou ficar aqui falando essas baboseiras. Não vou ficar aqui contando, entre outras coisas, como até mesmo aquilo que me foi dado bem diante dos meus olhos, na realidade, não era para mim e foi enviado como presente para Sadako. Mas eu estava, não importa o que digam, irritadíssima com o fato de terem enviado para Sadako a lembrança de Tami que sua família havia deixado para mim. Estava triste.
Parte 12
Foi quando já fazia três anos que o professor Hattori chegara.
Era um professor jovem, atlético e que gostava muito de exercícios físicos, ele, para a felicidade das crianças, instalou no pátio da escola alguns equipamentos de ginásticas, balanços de troncos e postes rotativos. Mas agora, alegando que só os exercícios físicos não eram suficientes, disse que iriamos começar a ter atividades práticas de plantio.
De início, o professor alugou um terreno bastante amplo que ficava bem ali atrás da escola. Então, transformou aquele terreno em uma fazenda agrícola para as crianças.
A fazenda era dividia em diversas áreas compartilhadas por grupos de quatro ou cinco pessoas. Como primeira atividade, ficou decidido que plantaríamos batatas, já que eram mais fáceis de manejar.
As crianças estavam extenuantes. Cada uma delas enfiava a enxada e cavoucava a parte do terreno que lhe tinha sido delegada. Abriam sulcos como o professor tinha ensinado. O professor, de sua parte, também preparava seu solo enquanto ensinava as crianças o manejo da enxada. As crianças imitavam a forma como o professor preparava seu campo de plantação e, entre trancos e barracos, por fim, conseguiram plantar o tubérculo.
Naquela época as sementes das batatas já tinham sido encomendadas de algum lugar. Fertilizante químico foi aplicado nas áreas que já haviam sido lavradas. As sementes, então, foram semeadas. O professor, em seu campo, mostrou como tudo deveria ser feito e as crianças o imitaram.
“Então, prestem atenção”, o professor disse com voz animada. “Daqui a dez dias as batatas vão nascer, é incrível, não é?! As batatas vão germinar desse lamaçal e vão dar brotinhos de batatas que depois vão para nosso prato para nutrir nossos corpos. No entanto, apesar de esse ser, entre os camponeses, o plantio mais fácil, isso não quer dizer que darão bons frutos se só deixarmos ela aí plantada, sem fazer nada. É preciso bastante carinho e cuidado. Não é moleza não. É por isso, pessoal, que não devemos fazer troça dos camponeses. Os verdadeiros pais do povo japonês são os camponeses. Não, não só dos japoneses: os camponeses são os pais de qualquer civilização do mundo”.
Todos escutaram atentamente as palavras do professor. As palavras do professor despertavam dez vezes mais atenção aqui do que em sala de aula.
As sementes de batatas absorveram a calorosa luz solar e começaram a germinar. As crianças dançavam de alegria diante de suas criações. Os bulbos cresciam vertiginosamente. As crianças, sempre que tinham um tempinho, iam até o campo observar as plantações. Comparavam os terrenos e se vangloriavam, em disputas, pelos bulbos de batatas de seu campo. Mediam o comprimento de seus bulbos com um medidor, cavoucavam o pé dos bulbos para que, assim, fizessem eles parecerem maior.
Pela distribuição de horários, a gente iria somente uma vez por semana até as plantações, mas como não parecia ser o suficiente, até mesmo rearranjaram os outros horários para que pudéssemos ficar mais tempo ali. O professor com uma camisa branca, as meninas com os quimonos amarrados e os pés descalços e os meninos com calças longas e justas, todos iam até lá retirar os matos, semear e fertilizar o solo. Todos suavam em bicas e ficavam com os rostos, as mãos e os pés cobertos de terra. Mas ninguém achava aquilo desagradável.
“Então, prestem atenção”, às vezes o professor começava a falar em voz alta como se gritasse.
“As pessoas têm que amar uma as outras. Não, não somente as pessoas, têm que amar tudo a sua volta. Mas o amor verdadeiro não nasce a não ser através do esforço. Que tal temos, hein? Não são lindas as batatas de todos?”
Às vezes ele dizia assim:
“Cultivar uma única batata exige bastante esforço, hein. Quando a gente compra batata nas quitandas a única coisa que a gente pensa, cheio de pompa, é se ela está gostosa ou não, mas quando a gente tenta efetivamente cultivar uma batata, a gente entende todo o esforço que os camponeses colocam em seu trabalho, né?”
E, no fim, o professor sempre acrescentava: “É por isso que a gente não pode desdenhar dos camponeses. Os camponeses são os pais da vida!”
Não chovia fazia um tempo. O solo estava bastante seco e os bulbos que tinham nascido pareciam que iam secar. Nisso, todos começaram a competir entre si e saiam cedo de casa para apanhar água nos poços e regarem o solo. Alguns até mesmo iam, depois da escola, mais uma vez regar as plantas. Esse era o tamanho da esperança radiosa que as crianças depositavam nas batatas. É claro que eu também era uma dessas crianças.
No entanto, em certo dia, assim que voltei da escola, minha tia e minha avó me chamaram para junto delas.
“Fumi, é verdade essa história de que, ultimamente, vocês estão imitando os camponeses na escola?”, minha tia, de início, me perguntou.
Eu temendo que novamente eles estivessem nervosos por alguma coisa, respondi que “sim”.
Minha tia, no entanto, sem aparentar estar com raiva, continuou:
“É um tanto pesado colocar até mesmo as meninas para ficar cuidando de plantações debaixo desse sol como se fossem camponesas. Principalmente porque seus quimonos vão se estragar todo” ela murmurou. “Já que vocês começaram essa plantação, não tem muito o que fazer, mas na próxima não é para você participar...”, minha tia ordenou.
Era doloroso ter que deixar de participar das plantações na próxima colheita, mas fiquei feliz que não precisaria largar tudo imediatamente.
Contudo, minha avó não era tão compreensiva quanto minha tia. Ela disse:
“Não tem nada de próxima não. Você tem que parar com isso agora mesmo. Não tem necessidade nenhuma de você aprender a ser camponesa com o dinheiro que nós pagamos de mensalidade. É uma pena, mas ainda não estamos tão necessitados ao ponto de fazer você trazer dinheiro para casa trabalhando como camponesa...”
Eu não tinha outra escolha a não ser escutar calada. Minha avó continuou:
“A partir de amanhã, não quero saber de você brincando de camponesa, Fumi. E nem venha me dizer que é uma das suas matérias da escola, se for esse o caso, é só você faltar nos dias que tiver aula de campesinato. Tá me entendendo?”
Certamente meu descontentamento estava estampado em meu rosto. Minha avó, percebendo isto, começou a ficar ainda mais irritadiça e a tecer mais um monte de reclamações. Ela ainda continuou:
“Além disso, você tem arrebentado bastante as correias do seu geta ne?! É obvio que isso acontece porque você fica brincando naquela coisa de balanço e pulando por aí com os meninos. É porque você fica imitando essa gente pobre imunda. Seria bom se você imitasse um pouco as garotas mais refinadas e agisse mais como uma menina. Então, a partir de amanhã, você também está proibida de ficar fazendo isso. – Tanto o balanço quanto ficar brincando de pega-pega. Não adianta achar que eu não sei o que você faz na escola não, viu? Eu subo na colina aqui de casa e consigo ver tudinho de lá...”
Ah!, eu ia sendo usurpada por completo de minha liberdade! Eu era usurpada até de mim mesma.
Eu tinha doze ou treze anos e minha vontade de me divertir estava em seu ápice. Mas eu estava devidamente proibida de brincar além dos horários estabelecidos de exercícios da escola porque meu quimono queimava no sol ou minha correia do geta arrebentava. Para mim, que era mais joãozinho do que as outras pessoas, levar uma vida em que minhas pernas e mãos estavam amarradas dessa forma foi um sacrifício enorme. Depois de ter me tornado adulta e ao presenciar por essas estradas por onde andei mães que costumeiramente vêm voando para xingar e tirar seus filhos que brincam na lama alegando que irão sujar seus quimonos, ao ver essas mães que, quando os filhos não param a brincadeira em que estão compenetrados, os puxam a força enquanto eles gritam; ao ver esse tipo de cena eu passei a ter vontade de gritar junto as crianças.
-- Por que as senhoras tratam seus filhos dessa forma? O que é mais importante para as senhoras, seus filhos ou os quimonos que eles vestem? As crianças não existem para os quimonos. São os quimonos que existem para as crianças. Se realmente eles não podem ser sujados, bastaria que vestissem as crianças com quimonos mais baratos, não é mesmo?
-- Os adultos sacrificam as crianças por suas próprias vaidades e preguiças. Os adultos, principalmente as mães, têm a obrigação de proteger as crianças e potencializar seus talentos. Roubar a liberdade das crianças, roubar a personalidade das crianças é um crime hediondo. Deixem que seus filhos brinquem em liberdade! É um direito deles poderem brincar em mais completa liberdade. É só assim que as crianças poderão se desenvolver e se tornarem humanos de fato.
Eu tenho a convicção de que isso não é uma concepção errada minha.
Parte 13
Foi uns quatro ou cinco dias após ter recebido aquela asseveração de minha avó.
Após o horário de alguma matéria, o professor Hattori, como se repentinamente tivesse lembrado de algo, disse enquanto passava os olhos pelos alunos do alto da plataforma:
“Então, gente, seus familiares não comentaram nada sobre a plantação que nós começamos na escola? Ninguém falou, por exemplo, que começamos uma boa atividade ou, talvez, que não seja tão boa assim?”
As crianças permaneceram em silêncio.
O professor chamou Hosoda, um aluno de nossa classe:
“Como foi na sua casa, Hosoda? Seu irmão não falou nada?”
O Hosoda, que morava com seu irmão doente pulmonar, respondeu:
“Meu irmão comentou, contente, que é uma boa para ficar com o corpo mais forte.”
O professor passou novamente os olhos pela sala com uma expressão de contentamento.
“Meu pai também falou isso!”
“Meu pai também!”
As crianças falavam em ruídos. Mas ninguém teve coragem de se pronunciar em voz alta. O professor dava indícios de que chamaria outro nome.
Fiquei apreensiva temendo que o professor fosse chamar meu nome. Tentei, então, o máximo possível me esconder olhando fixamente para baixo, para não ser notada. Mas, ainda assim, foi justamente meu nome que o professor chamou.
“E como foi na sua casa, Iwashita? Sua avó com certeza disse algo, né? Não tem como ela ter ficado calada quanto a isto...”
Eu julguei que o professor havia me dirigido a pergunta já ciente de toda a situação. Ou, ainda que ele não soubesse ao certo o que minha avó teria dito, eu não me sentia confortável em mentir artificialmente para o professor que conhecia tão bem a natureza de minha família. Mas, no entanto, se, por acaso, eu dissesse a verdade no que aquilo tudo ia se transformar...
Minha resposta foi um tanto vaga e incomum:
“Então, é... Minha avó disse que meu quimono iria queimar na plantação, enquanto a gente se faz de camponeses...”
Um sorriso amargo se desenhou no rosto sarcástico do professor e, então, disse um tanto irritado:
“Hum, é claro. Afinal de contas, a vossa alteza traz ao corpo um quimono de rainha.”
Ele terminou sua frase e abriu violentamente a porta enquanto saia ainda agarrado, irado, ao livro didático que levava nas mãos.
Todos olharam fixamente para meu quimono. Eu corei inconscientemente. E como se tivesse percebido só agora, me dei conta do estado deplorável de meu quimono.
Era um quimono de verão branco com péssimos padrões azuis, já sem forma e até mesmo com umas remendas aqui e ali.
Como eu odiei o professor. Por que o professor tinha me envergonhado na frente de todos? Não era o mesmo professor que, durante as aulas na plantação, pregava o amor a todas as coisas? Ainda assim... Ainda assim...
Eu voltei para casa.
Eu estava completamente absorta nos acontecimentos da escola. Além disso, estava preocupada se o que eu tinha respondido não iria soar como algo ruim para minha avó. Quanto mais pensava no assunto mais preocupada eu ficava e, sentindo que não poderia ficar calada quanto aquilo, eu contei tudo que tinha acontecido hoje na escola.
Minha avó não ficou com raiva. Ela, na realidade, tinha no rosto um ar de vitoriosa. A única coisa que ela disse, trocando olhares com minha tia, foi:
“Eu desisto desta idiotazinha aqui. Ela não consegue discernir o que pode ou não pode ser dito para as outras pessoas. A gente tem que tomar cuidado daqui para frente para não dizer as coisas como elas são na frente dessa menina, já que ela sai falando tudo por aí, né...”
Minha avó até aquele momento sempre me fazia acreditar no que ela falava como se aquilo não pudesse ser de outra forma. Ela, no mínimo, me fez acreditar nisso à força. Mas naquele momento eu percebei claramente que minha avó obviamente também não falava tudo que pensava para as outras pessoas.
Eu não podia mais acreditar completamente nas palavras de minha avó. Não podia aceitá-las acriticamente. Conquanto ainda vago, eu senti algo bem próximo deste sentimento dentro de meu peito.
Parte 14
Tudo me tinha sido usurpado. Tanto a escola quanto a minha casa, para mim, não passavam de um inferno.
Mas desde muito nova eu certamente era uma criança obstinada e não caia derrotada não importa o quanto me batessem. Foi assim que eu consegui encontrar mais um reduto de felicidade. Quando eu me afastava das pessoas e ficava sozinha era o meu momento. Sim, era o meu momento.
Enquanto recordo meus sofrimentos, não posso prosseguir sem antes relembrar uma das experiências felizes que experimentei durante esse período.
Taisan era uma montanha que a família da minha tia possuía. Pelo que contam, era uma montanha que meu tio comprou enquanto ainda trabalhava para a estrada de ferro, e que possuía muitas castanheiras plantadas. E bem nessa época as árvores começaram a dar bastantes frutos para a família de minha tia.
Todo ano no outono eles contratavam um trabalhador braçal para limpar os espaços entre as árvores onde cresciam capins vermelhos e prateados até a altura das costas, mas isso também parecia demandar bastante gastos.
Quando os frutos das castanhas começavam a aparecer e cair ao chão, alguém de casa ia até lá para colhê-los. Quem normalmente fazia esse trabalho era meu tio de constituição frágil, mas muitas vezes ele estava tão ruim que nem mesmo conseguia subir a montanha. Nestas ocasiões, eu mesma tomava a incumbência de ir até lá colher os frutos. O fazia principalmente por ser lá que eu conseguia colocar em liberdade meu verdadeiro eu.
Era outono do ano em que tudo me havia sido usurpado. A condição física do meu tio, mais uma vez, estava muito ruim. Eu solicitei a minha avó e, faltando às aulas, sai incontáveis vezes para coletar as castanhas.
Quando ia subir a montanha eu, inicialmente, calçava as meias, colocava as polainas e amarrava as sandalhas de palha no pé. – Isso era necessário porque na montanha tinha víboras que muitas vezes picavam as pessoas... Preparava também uma foice, um pedaço de pau e uma sacola para colocar as castanhas. Então saia animada de casa.
As crianças iam para a escola. No entanto, eu já não achava assim tão triste estar faltando às aulas. Subir as montanhas sozinhas era muito mais divertido do que ir para a escola.
Os frutos de castanhas vermelhos-claros dos galhos das árvores estavam quase saltando para fora e prestes a cair. Eu torcia os frutos para derrubá-los com a ponta bifurcada do pedaço de pau que levava. Então pisava e roçava a castanha com a sola da minha sandalha de palha para tirar os frutos lá de dentro. Quando, ainda assim, os frutos não saiam, abria as cascas com as costas da enxada. Após tirar os frutos dos galhos eu, baixando os olhos para o chão, colhia os frutos caídos. Assim eu seguia de árvore em árvore.
Às vezes eu ia dar em lugares que não tinha nenhum mato e às vezes eu saia em verdadeiros matagais. Faisões verdes e coelhos saiam assustados destes locais. Eu parava assustada, mas, logo em seguida, começava a sentir afeição por estes animais. Então:
“Mas que susto! Não precisam fugir desse jeito. Nós não somos amigos?”, eu murmurava. É claro que os faisões e os coelhos fugiam sem nada responder. Mas eu não achava aquilo solitário nem nada do tipo. Ao contrário, achava tudo muito agradável. Murmurava, então, “que sujeitos engraçados!” e após deixar algumas castanhas para eles em meio do mato, partia para outro lugar.
A sacola começava a ficar pesada. Minhas pernas começavam a ficar cansadas. Nesses momentos eu largava tudo que tinha trazido até aqui e corria em linha reta até o topo da montanha. Lá eu descansava.
No topo da montanha não tinha muitas árvores, mas flores amarelas de ominaeshi, campainhas-chinesas roxas e trevos-japoneses floresciam por todo lado. O professor já tinha nos ensinado que essa montanha, na realidade, era uma colina e, de fato, ela não era uma montanha muito alta, mas ainda assim, sua localização era boa e de seu topo dava para ver toda a Fukô.
A estação de trem e a hospedaria e outros prédios do tipo se estendiam depois dos campos e plantações do lado oeste. Era uma vila que já tomava ares de cidade. Dentre todas as construções a que mais se destacava era a do regimento militar. Um soldado em roupas caquis arrastou um coreano para dentro do pátio, arrancou suas roupas e o chicoteou “Uma, duas”, eu escutava a voz estridente do soldado contando. Tive a impressão de também escutar a voz chorosa do coreano que recebia os golpes.
Aquilo não era algo muito prazeroso de se ver. Nisso, eu virei minhas costas e me voltei para o sul. O belo fuyôhô erguia-se ao longe. O rio Shirakawa, que brilhava em prata, corria calmamente como se estivesse coberto por uma seda branca refletindo em suas águas os raios de sol do outono enquanto contornava de leste a oeste o sopé da montanha. Na planície arenosa, um burro passava carregando seu fardo morosamente. Era possível ver as casas de tetos baixo de palha dos vilarejos dos coreanos por entre as árvores no sopé da montanha. Era uma vila calma que se escondia por entre a neblina. Era como uma pintura de estilo nanga.
Ao apreciar tudo isto, tive a sensação de que pela primeira vez eu me sentia realmente viva. Olhava o céu deitada tranquilamente sobre a grama. Um céu muito profundo. Eu gostaria de conhecer o fundo daquele céu. Fechei os olhos e me entreguei aos pensamentos. Uma brisa fresca soprava. A grama farfalhava no vento. Quando abri os olhos mais uma vez, uma libélula voava bem perto da ponta do meu nariz. Grilos e insetos cantavam ao pé do meu ouvido.
Provavelmente era hora do almoço na escola. Eu conseguia escutar as vozes das crianças em polvorosa. Me levantei e vi bem de baixo dos meus olhos o pátio da escola. As crianças jogavam futebol. O som da bola quicando só chegava até mim um pouco depois da bola ter caído no chão. As crianças estavam animadas tentando roubar a bola uma das outras. Ah, essas brincadeiras tão prazerosas! Até aquele momento, eu sempre tinha que ficar em algum canto observando, triste, as crianças brincado na escola. Mas agora eu já não sentia tristeza ou felicidade. Era como se eu estivesse me fundindo àquela cena.
Uma certa força parecia emergir do fundo de meu peito e então eu, instintivamente, gritei para ninguém “Eeeeeei!”. Mas é claro que ninguém respondeu meu chamado. Eu estava sozinha naquela montanha.
Quando o sinal tocou, todas as crianças voltaram para as salas de aula. Eu também desci do pico da montanha e voltei para os bosques de castanheiras.
Eu, que estava radiante, comecei a cantar desapercebidamente a música que tinha aprendido na escola. Não tinha ninguém para me criticar ali, eu era livre como os passarinhos. Eu cantei e cantei e continue cantando até minha voz ficar rouca. Às vezes cantava de improviso uma canção só minha. Meus sentimentos, que eram rotineiramente suprimidos, puderam sair de lá do fundo do meu peito e explodirem em uma selvagem liberdade. Então, assim, eu me consolava.
Quando fiquei com sede, fui até a plantação de pereiras ao lado do barracão onde armazenávamos as castanhas, peguei uma pera e a engoli com casca e tudo. Então me deitei mais uma vez no solo e fiquei observando as nuvens que vazavam por entre as árvores. Um forte cheiro, quase asfixiante, de verde e de cogumelos chegou até meu nariz, eu inalei vorazmente aquilo tudo.
Ah, a natureza! Não existem mentiras ou falsidades na natureza. A natureza é honesta, é livre e não corrompe os seres humanos como os próprios seres humanos o fazem. Eu senti isso com todo meu coração e tive impulsos de dizer “muito obrigada” para a montanha. Ao mesmo tempo, me recordei de repente da minha vida e tive vontade de chorar. Nesse momento eu chorei até me sentir satisfeita. Mas, ainda assim, não existia outro dia em que eu pudesse recuperar meu eu como estes que passava nas montanhas. Esse era o único dia em que vivia em liberdade.
Parte 15
Era o ápice de um verão quente.
A esposa de um homem chamado Fukuhara, que administrava um hospital a duras penas em Kôkei , veio visitar minha avó. Essa mulher se chamava Misao e era uma das sobrinhas de minha avó.
Misao nunca tinha vindo nos visitar até aquele momento. Eu sequer tinha conhecimento de trocas de cartas entre ela e os Iwashita. Mas Misao não era uma pobre imunda como eu. Todos em casa, inclusive minha avó, estavam exultantes com a vinda inesperada de tão ilustre visita.
Misao era uma bela mulher de seus 24, 25 anos. Ela trazia uma criança de peito nos braços.
Ela vestia, ao chegar, um quimono de peça única feito de crepe gazeado e estampado do busto às mangas com um motivo vistoso de flores do outono e uma faixa de cintura com detalhes chamativos em fios de ouro e prata. Além disso, ainda trazia, apesar do calor intenso, um casaco de crepe de seda de mangas curtas sobre os ombros. No pescoço carregava um colar de ouro e nos dedos anéis também de ouro; o conjunto não harmonizava, mas, à primeira vista, era uma indumentária que poderia fazê-la ser confundida com alguma dama da nobreza.
Após finalizar as saudações costumeiras, minha avó logo percebeu que o quimono de Misao estava encharcado de suor.
“Mas, senhora Mi! Sua faixa e quimono não estão enxarcados de suor? Vá até ali enxugá-los e trocar de roupa”
Após minha avó dizer isso, Misao, concordando, respondeu:
“É mesmo, né? Então acho que vou me trocar”
Tirou, então, o quimono com que estava vestida e o jogou no chão. Minha avó foi ela mesma pegar uma a uma cada peça e as estendeu ao sol delicadamente. Estendeu bem ali em plena vista do poço onde as senhoras pobres das redondezas vinham apanhar água...
Misao falava para a minha avó e família sobre sua vida de opulências após ter se casado. “He! He!, isso lá é muito bom, hein!, sorte a sua, querida. Agora você tem que tomar conta de seu marido muito bem e o tratar com respeito”, minha avó dizia em tom de celebração e conselhos gentis. Ao mesmo tempo, também se vangloriava da condição em que a própria casa se encontrava e da posição que ocupavam em Fukô. Esse tipo de conversa não perdeu fôlego mesmo depois de um, dois dias. Durante esses dias minha avó levava Misao para dar uma volta no jardim ou ia até suas propriedades para mostrá-las para a visitante.
Sem sombras de dúvidas ela falou sobre mim para Misao. Misao me olhava com desdém e sequer me dirigia a palavra. Não era como se eu tivesse algo contra Misao. Mas eu não achava que ela era lá uma boa mulher.
Um conhecido de Misao morava a cerca de quarenta quilômetros de Fukô. Ela parecia em dúvida se ia ou não visitar esse conhecido.
“Se você quer mesmo ir, acho que vale a pena. Se você pegar um trem consegue chegar lá facilmente...”, minha avó disse em tom animado de imediato.
“Mas tem essa criança aqui, vai ser uma dor de cabeça...”, Misao disse em tom hesitante.
Era evidente que ela queria me levar junto como baba da criança. Como se tivesse percebido a intenção de Misao, minha avó disse:
“Quanto a isto, não tem com o que se preocupar, é só levar a Fumi pra cuidar do garotinho...”
Eu sabia que estava em apuros. Ter uma criança de peito presa a mim neste calor e ainda ter que seguir o rabo dessa mulher com ares de rainha!
“É mesmo, ne... Se ela puder ir comigo realmente vai me ajudar. Mas, será que a Fumi vai querer ir?...”, Misao disse meio que pedindo, indiretamente, meu consentimento.
Eu estava confusa e hesitante em dar uma reposta clara. Normalmente minha avó gritaria agressiva comigo, mas, por alguma razão, desta vez ela, pelo contrário, parecia querer me deixar a vontade e no lugar da costumeira ordem, “Vá com ela, Fumi”, ela apenas parecia querer me sugerir que eu fosse. E após Misao se afastar um pouco ela me disse, carinhosa, as seguintes palavras:
“O que foi? Se você não estiver a vontade de ir, é só falar claramente. Não vou obrigar você a fazer algo que não queira”
Quando recebi estas palavras eu, que estava faminta por qualquer tipo de palavra calorosa, fiquei estranhamente sincera. Quis me agarrar ao peito de minha avó e chorar. Eu respondi claramente, como as crianças que são bajuladas por suas mães:
“Na realidade, se eu realmente puder escolher, eu preferiria não ir”
“É o que?”, minha avó repentinamente rompeu em uma bola de raiva. Me levantou pelo colarinho e me empurrou agressivamente. Pega de surpresa, eu acabei caindo da varanda de costa no chão de terra. Ela me olhava como se dissesse “agora você vai ver” e começou a me insultar como de costume:
“É o que? Você não quer ir?! É só falar uma ou outra palavra mais amável pra você que você já começa a se achar e me sai com uma dessas! Não é como se você tivesse escolha entre querer ir e não ir, sabe. É obvio que você vai. Você tomava conta daquelas crianças remelentas dos camponeses, não tomava? Mas se você realmente não quiser ir, eu não vou te forçar, não mesmo. Não é como se eu fosse ter qualquer problema com você querendo ir ou não. Em troca, você já não teria mais nenhuma relação com nossa família e eu teria que pedir para você ir embora. Então, vamos, vá embora, agora mesmo, vá embora!”
Minha avó, que em algum momento havia calçado seus geta de jardinagem, veio até mim. Começou a me chutar e pisar em cima de mim.
Eu só fiquei ali caída sem reação alguma. Minha avó saiu célere em direção a cozinha, mas logo voltou trazendo consigo uma tigela de madeira lascada que o criado usava e a enfio dentro do bolso de peito do meu quimono. Então, agarrando meus cabelos da nuca, me arrastou pelo chão até o portão traseiro da casa e me jogou para fora dele e, logo em seguida, fechou o ferrolho da porta e saiu novamente andando apressada em direção ao jardim.
Eu estava completamente exausta. Todo meu corpo doía e eu não conseguia nem mesmo me mover. Dois ou três coreanos passaram por mim falando alguma coisa, mas eu não me levantei e só fiquei ali chorando sem força e caída de bruços.
Contudo, não podia ficar ali chorando para sempre. Ninguém mais estava passando por ali. Ninguém de casa veio me chamar. Eu só podia me valer da tigela de madeira lascada que minha avó tinha enfiado em meu bolso. Esta era a única inutilidade a qual eu podia me agarrar.
“Sim, eu não tenho outra escolha a não ser voltar para casa e me desculpar”, após tirar alguma coragem desse pensamento, me levantei. Eu segui, então, aos tropeços pela cerca até chegar ao portão da frente e entrei por ali.
Subi as mangas de meu quimono e comecei a limpar cuidadosamente a varanda que estava suja. Ao ver isto, minha avó logo chamou Kô para limpar o local que eu limpava. Eu comecei a lavar as vasilhas. Nisso, minha avó veio ela mesmo lavar as vasilhas me arredando para o lado. Quando comecei a varrer o jardim minha avó, sem dizer nada, tomou de minhas mãos a vassoura.
Como um vira-lata desesperado eu voltei lentamente até minha toca – isto é, voltei para o meu quarto. Eu me deitei extenuada e, como uma boneca sem alma, só deitei os olhos nos jornais velhos pregados na parede, mas, ao lembrar do acontecido, eu sufocava em lágrimas.
Após esse longo sofrimento finalmente chegou o crepúsculo.
Minha avó tinha montado o braseiro de barro debaixo do puxado do telhado da casa principal, que ficava a apenas um jardim de distância do meu quarto, e começou a fritar tempuras. O aroma do óleo penetrou nas paredes do meu estômago vazio como se estivesse me queimando.
Eu me dei conta de que não tinha comido nada desde o café da manhã.
O filho pequeno de Kô veio até em casa para devolver algum utensilio que tinha sobrado.
“Ah!, muito bom! Mas que bom menino!”
Minha avó disse e logo em seguida colocou nas mãos da criança dois ou três tempuras. Então olhou em minha direção e riu encolhendo os ombros.
Eu saí silenciosamente de casa. Mas ainda que saísse não tinha para onde ir. Eu fui até próximo ao poço comunitário que os coreanos usavam e que ficava bem na rua de baixo, deitei os olhos dentro dele sem nenhum objetivo específico. Uma senhora coreana conhecida minha veio até o poço com um pote para lavar alguns vegetais. Ao ver meu rosto, ela disse:
“Sua avó andou te xingando de novo, né?”, me dirigindo gentilmente a palavra.
Eu assenti calada.
“Pobrezinha!”, a senhora disse enquanto olhava com olhos piedosos minha figura miserável. “Não quer ir até lá em casa brincar um pouco? Minha filha também está lá”.
Eu tive vontade de chorar mais uma vez. Não lágrimas de tristeza ou algo do tipo, mas lágrimas que vinham de um profundo sentimento que se diluía naquele ato misericordioso.
“Muito obrigada! Adoraria ir com a senhora”, expressei assim minha gratidão e segui com as pernas errantes os passos daquela senhora.
A casa da senhora ficava no alto do penhasco que tinha atrás da casa de minha tia. De lá era possível ver claramente dentro da casa de minha tia. Nisto, comecei a ficar preocupada pensando se não seria descoberta por alguém lá da casa.
“Me desculpe, mas será que você já almoçou?”
“Nada desde o café da manhã”
“Desde o café da manhã?!”, a filha da senhora gritou surpresa.
“Pobrezinha!”, a senhora repetiu mais uma vez essa palavra. “Se você não se importar de comer arroz com trigo, que tal entrar para comer algo? Comida ainda tem bastante...”
Eu já não conseguia conter dentro de meu peito todo esse sentimento que vinha crescendo desde aquele momento no poço. Então, involuntariamente, eu caí em prantos.
Durante todos os longos sete anos em que estive na Coreia eu nunca me comovi mais com o amor humano do que nesta ocasião.
Eu estava profundamente comovida. Eu queria tanto comer aquela comida que parecia que meu estômago cantava. Mas eu temia os olhares de minha avó. – Tinha medo de minha avó que se soubesse daquilo sem dúvidas gritaria que na sua casa não tinha lugar para uma pedinte que aceitava comida dos coreanos. Eu recusei a oferta. Então sai da casa da senhora coreana tentando lidar com minha fome. Mas eu não tinha vontade alguma de retornar para casa. Eu vaguei sem rumo pela campina que ficava atrás da casa.
Não importa o quanto pensasse, não tinha para onde ir. Eu voltei para casa mais uma vez. O sol já tinha se posto e dentro da casa uma lâmpada iluminava os recintos. Todos faziam suas refeições na sala de estar enquanto conversavam em voz alta.
Eu, como de costume, me curvei com as mãos no chão da varanda que dava para a sala de estar me desculpando por minhas indiscrições.
Não obtive resposta.
Eu repeti mais três vezes minhas desculpas. Mas, por fim, não quiseram ouvir minhas súplicas.
“Que irritante! Cala a boca!”, minha avó finalmente gritou me dirigindo a palavra. “É bem do seu feitio ficar fora a tarde inteira se divertindo por aí e quando o sol se põe perceber que não tem mais para onde ir então vir pedir desculpas e chorar suas mágoas. Então, alguma casa te deu pelo menos uma tigelinha de comida para comer? Aqui vai ser o mesmo, sabe. Você não vai ganhar comida daqui também não...”
Eu pensei em me agarrar a minha tia e implorar por desculpas. Mas ela havia se antecipado a mim e começou a me injuriar junto a minha avó. Misao também estava junto delas, mas, assim como anteriormente, é claro que ela não falou nada em minha defesa.
Todos acabaram suas refeições. Minha avó e minha tia também terminaram de organizar tudo em grande algazarra. E, como de costume, saíram com o banquinho para pegar um pouco de brisa do entardecer.
Ao ficar em casa sozinha eu pensei em ir comer algo. Mas eu não achava nenhuma comida por ali. Por fim me lembrei de que sempre havia um “armário ante moscas” cercado por uma tela de arame na viga do corredor estreito que ficava bem atrás do quarto da minha avó. Eu espiei dentro do armário. Mas não tinha nada em seu interior. Então eu fui até o canto da cozinha e abri o “armário ante ratos” sem fazer barulho. Mas ali também, assim como esperado, não tinha nada. Não encontrei nada até mesmo no pote de açúcar que sempre guardava alguma coisa.
Eu voltei mais uma vez para meu quarto. Estendi tateante o futon e coloquei o mosquiteiro. Sem forças para sequer trocar de roupa, me joguei sobre o futon.
Do jardim as vozes e risadas alegres se erguiam e Minami parecia ter se juntado a elas. Essas vozes repicavam em meu ouvido e eu não conseguia dormir.
Eu sentia rancor por minha avó e o pessoal. Eu ficava confabulando se realmente tinha feito algo de ruim. Eu realmente gostaria de entender se eu tinha feito algo de ruim. Mas eu não entendia. Era mais de uma hora quando eu finalmente consegui adormecer.
Na manhã seguinte o dia já tinha clareado quando eu acordei. Kô já estava como de costume varrendo o jardim, minha avó fazia os preparativos para o café da manhã na cozinha e minha tia estava espanando as portas corrediças e as decorações enquanto fazia a faxina dos quartos, o que era minha incumbência.
“Agora é o momento para me desculpar! Se eu for agora e trabalhar com afinco não importa o quanto elas me ofendam com certeza vão me perdoar. Isso, tem de ser agora, não posso desperdiçar esta chance!”
No entanto, eu estava tanto mental quanto fisicamente exausta. Não importa quantas vezes eu tenha tentado me colocar de pé eu, naturalmente, voltava a cair no chão.
Mas eu não comia nada desde o jantar da noite retrasada e, portanto, eu estava tão faminta que já nem sabia se o que eu sentia era mesmo fome, não conseguia suportar meu corpo mole em pé. Eu tinha dificuldades mesmo para me levantar que dirá trabalhar...
Após um tempo, parecia que todos já tinha terminado de comer, meu tio e Misao saíram de casa e minha avó e minha tia certamente tinham ido para a plantação de vegetais no jardim e a casa estava em completo silêncio.
No fim, eu tinha desperdiçado a minha chance.
“Ah!, já não tem nada que eu possa fazer!” eu involuntariamente soltei um suspiro. Então entreguei meu corpo ao destino pensando que “o que tiver que ser, será”.
De alguma forma eu tinha ficado mais leve. Passei algumas horas sem saber se sonhava ou se estava acordada rolando de um lado para outro na cama, chutando a coberta e colocando os pés sobre ela enquanto olhava para o teto.
Ao perceber um som eu repentinamente abri os olhos, eram os sons das tigelas se chocando. Provavelmente estava na hora do almoço do pessoal de casa.
“Tem de ser agora!”, eu finalmente me levantei. Fui até o local onde estavam comendo lutando contra minhas fortes vertigens. Então mais uma vez eu esfreguei minha testa na tábua da varanda e disse:
“Eu estava errada, não voltarei a dizer mais nada egoísta daqui para frente”, me desculpei com devoção.
Não, não era mais no nível de me desculpar com devoção. Era mais como se, a semelhança de um criminoso que está prestes a perder o pescoço, eu implorasse por minha vida com solene seriedade.
Mas, oh!, isso também foi inútil. Dizem que a sinceridade tem poder de mover os céus, mas minha avó e minha tia não eram os céus.
“O peixe de hoje está esplendido, não?”, minha tia e minha avó conversavam me ignorando completamente. .... Era como se minhas palavras não chegassem aos ouvidos de minha avó...
“Se você sabia tão bem assim que estava errada, por que não se levantou cedo e fez suas tarefas? Você ainda não acha que realmente fez algo de errado, não é? Enquanto você continuar agindo desta maneira, não posso pedir para sua avó te perdoar...”, minha tia ralhou comigo enquanto me olhava com desdém.
Eu sabia que as coisas seguiriam por essa direção, mas ao ser confrontada diretamente com isto eu já não sabia nem se continuava viva. Eu voltei derrotada para meu quarto e chorei mais uma vez deitada no chão. Já nem as minhas lágrimas saiam com facilidade. Me recostei na parede da janela e fiquei por um tempo aérea só observando minhas pernas jogadas pelo chão.
Então, em algum canto de meu coração apático, o conceito de “morte” de repente deu as caras.
“É isto, é melhor morrer de uma vez... O quão mais fácil não seria desta forma”
No momento em que pensei nisto me senti como se tivesse sido salva. Não, era realmente como se eu tivesse sido salva.
Uma força brotou em meu corpo e espírito. Minhas mãos e pés moles se enrijeceram e eu levantei como se não fosse nada esquecendo para todo o sempre a fome que sentia.
O trem expresso das doze e meia ainda não passou. É isso, vai ser ali. É só fechar os olhos e pular na frente dele que tudo estará feito.
Mas, ir desse jeito vai ser um tanto deprimente. Foi o que pensei naquele breve intervalo de tempo. Nisso, eu só troquei apressadamente a saia debaixo do meu quimono, peguei da caixa do canto do quarto meu quimono de forro único com bolsos nas mangas e minha faixa de cintura feita de musselina e os dobrei bem dobrados para amarrá-los dentro do embrulho de pano.
Se eu não me apressasse eu não chegaria a tempo. Escondi o embrulho de pano debaixo do braço e sai pelo portão traseiro. Então eu corri em êxtase. Abandonar tudo e ir atrás da salvação que a morte poderia oferecer, abandonei tudo com esse espírito fresco e radiante...
Fui até os trilhos do lado leste, próximo à estação. O sinal ainda não tinha baixado. Tinha chegado bem a tempo. O trem estava preste a chegar.
Para não ser vista da elevação ao leste da casa de minha tia, eu me escondi à sombra do banco dos trilhos e me troquei ali mesmo. Enrolei o outro quimono, o envolvi no embrulho de pano e enfiei o embrulho na moita de mato que estava ali do lado.
Eu fiquei esperando o trem de cócoras à sombra do banco dos trilhos. Mas o tempo passava e nada do trem vir. Eu percebi, por fim, que o trem já tinha passado.
Ao perceber isto eu, por alguma razão, comecei a ficar preocupada pensando se ninguém estaria me seguindo para me capturar.
“E agora... O que faço...”
Minha cabeça estava a todo o vapor. Então imediatamente eu me lembrei de mais um caminho possível.
“Shirakawa! Tem de ser no Shirakawa! Nas profundezas daquele índigo Shirakawa...
Eu saí em disparada cortando os trilhos. Corri cerca de 1.5 quilômetros sem me deter por um instante sequer passando pela sombra de bancos de terra, corredores de árvores e plantações de milhos-zaburros rumo ao sorvedouro do Shirakawa que fica próximo ao velho mercado.
Felizmente não tinha ninguém próximo ao sorvedouro. Descansei, finalmente, um pouco e cai sobre os cascalhos. Eu não sentia nada, nem mesmo aquele calor incinerante.
Após controlar meu pulso, me levantei e comecei a encher o bolso das minhas mangas com cascalhos. Os bolsos já estavam bastante pesados, mas os cascalhos escorregavam com facilidade então tirei minha saia de baixo de tecido de lã leve, abri-a no chão e comecei a colocar as pedras dentro dela. Então enrolei e amarrei aquilo em meu tronco como se fosse uma faixa.
Tinha feito todos os preparativos. Nisso, eu me agarrei ao salgueiro e espiei cuidadosamente aquele sorvedouro. O sorvedouro estava lá, calmo em seu tom preto-azulado como se fosse óleo. Nem uma ondulação sequer. Ao olhar fixamente, comecei a imaginar que o dragão legendário estaria lá no fundo me esperando assim que eu caísse lá para dentro.
Eu comecei a me sentir um pouco mal. Meus pés fraquejavam de medo e eu tremia levemente. De repente uma grande cigarra começou a cantar bem em cima da minha cabeça.
Naquele momento, dei uma olhada em volta. Como a natureza era bela! Eu apurei meus ouvidos por um instante. Como tudo isso é pacífico e calmo!
“Ah!, está na hora de me despedir! Adeus montanhas, adeus árvores, adeus pedras e flores, adeus animais, adeus até mesmo para esse canto de cigarra, me despeço de tudo...”
No instante em que pensei nestas coisas, eu de repente cai em profunda tristeza.
Eu iria conseguir escapar da frieza e crueldade de minha avó e de minha tia. No entanto, mas, no entanto, ainda existem muitas coisas que merecem ser amadas no mundo. Existem incontáveis belezas neste mundo. Meu mundo não precisa ser limitado a casa em que minha avó e minha tia vivem. O mundo é imenso.
Eu senti um afeto enorme por todo meu passado que se revelava perante meus olhos, um afeto por meu pai, por minha mãe, por minha irmã, por meu irmão, pelos amigos de minha terra natal.
Eu me recostei no salgueiro e comecei a pensar sossegadamente. Se eu morresse aqui, o que será que minha avó e o pessoal diriam sobre mim? Minha mãe e o pessoal diriam que eu morri por quais motivos? Não importa o tamanho da mentira que contem, eu já não estaria mais aqui para dizer: “isso não é verdade”.
Ao pensar nestas coisas, eu cheguei à conclusão: “eu não posso morrer”. Era isso, eu preciso, junto a todos que sofreram, me vingar de todos aqueles que nos fizeram sofrer. Era isso, eu não poderia morrer.
Eu desci mais uma vez até o leito de cascalho do rio. Então tirei de minhas mangas e minha saia os pedregulhos um a um e os joguei fora.
Parte 16
Miserável e tenra garotinha que, a despeito da própria decisão pela morte, não conseguiu morrer de fato. Já seria suficientemente estranho que uma tenra criança que deveria estar crescendo como as gramas verdes procurasse a salvação na morte, mas mais aterrorizador, quer dizer: ainda mais triste, no entanto, era essa mesma criança cultivar como esperança para se manter viva a possibilidade de vingança.
Eu atravessei com metade de meu corpo o limiar do país dos mortos e, de repente, dei meia volta. Voltei, então, para o inferno deste mundo, voltei para a casa da minha tia. Ao voltar, uma única luz de esperanças – uma negra luz de melancolia – brilhava. Eu já tinha força o suficiente para suportar o suplício que fosse.
Eu já não era mais uma criança. Eu era uma espécie de pequeno diabrete cravado por espinhos. Uma voracidade feroz por conhecimento tomou conta de mim. Queria devorar todos o conhecimento do mundo. De que forma as pessoas pelo mundo viviam? O que diabos estaria acontecendo pelo mundo? Mas não me interessava só pelo mundo dos humanos, eu queria, para dizer tudo em uma só palavra, saber tudo que estava acontecendo neste vasto mundo natural, saber sobre o mundo dos insetos e das feras, dos matos e das árvores, das estrelas e da lua. Não estava interessada naquele conhecimento mesquinho que os livros da escola ensinavam.
De fato, eu tinha sido usurpada de tudo, dos exercícios ou brincadeiras na escola, de minha própria liberdade em casa, mas eu não era tão fraca a ponto de atrofiar a chama de vida que trazia dentro de mim por conta disto. Eu tinha desejo pela vida! Eu tinha que encontrar algum lugar em que pudesse dar vazão para tudo isto.
Foi bem nesta época que aconteceu.
Certo dia eu, escorada na parede do pátio da escola, estava lidando com o meu tédio observando as crianças se divertindo como sempre. Então um amigo apareceu carregando uma revista velha com ele.
“O que é isto?”, eu perguntei para esse amigo.
“É a Shonen sekai”, ele me respondeu.
“É legal?”
“Sim, é legal.”
Eu fiquei com muita vontade de ler aquilo.
“Será que você pode me mostrar... você poderia me emprestar?”
“Sem problemas.”
Ao pegar a revista nas mãos comecei a lê-la pela primeira página. Enquanto as crianças brincavam eu lia vorazmente como se estivesse sendo sugada. Não existe nada que não seja interessante de algum ponto de vista. Eu não conseguia esquecer este livro nem mesmo durante o período de aula. Quando as aulas terminaram, eu ainda fiquei mais um tempo na sala de aula lendo. Ao voltar para casa, o fiz andando vagarosamente feito um boi enquanto lia. Ao chegar em casa, aproveitava qualquer intervalo para, escondida, retomar a leitura.
É claro que minha avó descobriu e ralhou comigo. No entanto, não importava o que acontecesse eu já não conseguia me desvencilhar. Após o acontecido eu parei de ler em casa, mas eu aproveitava todas as ocasiões para ler mais um pouco escondida: no caminho de ida e vinda da escola, na hora das brincadeiras e até mesmo durante as aulas. Então eu continuei pegando emprestado e lendo livros e mais livros de meus amigos.
O problema começou foi quando eu saí da escola. Eu tinha que ficar o dia todo em casa. Portanto eu não conseguia pegar nada emprestado com ninguém. Eu só conseguia pensar em se não haveria uma forma com que eu pudesse ler livros. Então, neste momento, uma garota da vizinhança trouxe revistas da Fujokai (Associação das mulheres) que ela recebia todo o mês. Eu peguei elas emprestado. Falei com ela que se ela tivesse volumes antigos daquela revista eu gostaria de pegar emprestado também. Ela, um pouco depois, me trouxe os volumes equivalente a um ano inteiro e me emprestou tudo aquilo bem na frente de minha avó.
Eu não podia me conter de felicidade, mas fiquei receosa ao olhar para o rosto de minha avó. Ela, no entanto, também agradeceu aquela pessoa e aceitou o empréstimo. Assim eu pude ler em público. O pessoal de casa tolerou calado enquanto eu lia uma ou duas revistas. Mas, um pouco depois, minha avó disse:
“Parece que depois que a gente começou a deixar Fumi ler ela tem prestado atenção só nos livros e tem negligenciado suas obrigações. Se a gente ficar calada ela vai começar a ficar cheia de si. Vamos proibir qualquer leitura daqui para frente...”
Minha tia, é claro, estava de acordo.
“Não, por favor!”, eu disse como se estivesse prestes a chorar, “eu prometo não ler mais durante o dia, mas, por favor, me deixem ler durante o período da noite...”, tentei implorar em uma atitude complacente.
Mas minha avó e o pessoal não tinha ouvidos para minhas palavras. Pegaram, então, as revistas que eu estava lendo e, inventando uma desculpa qualquer, a devolveram para a dona.
Após estes acontecimentos, a única coisa que meus olhos leram foram os jornais. Mas eu fui proibida de ler até mesmo estes jornais. Jornais não eram coisas para crianças lerem. Essa era a “nobre opinião” de minha avó e companhia.
Eu só podia me esforçar para apreender o conteúdo dos jornais quando minha avó os lia em voz alta catando as palavras letra por letra. Ocasionalmente eu dava uma olhadela sorrateira e lia as manchetes da terceira página. Em outras ocasiões, aproveitava o período de faxina do café da manhã e, segurando o jornal na mão esquerda enquanto espanava as portas corrediças e as estantes com a direita, lia em intervalos as novelas serializadas. Quando via algum artigo que parecia interessante, pegava-o sorrateiramente e ia até a latrina trazendo-o comigo para ler.
Na escassa caixa de livros de meu tio também tinha alguns livros. Eu sempre quis lê-los, mas nunca tinha a oportunidade. Contudo, em certa ocasião, meu tio e minha tia saíram em viagem e ficaram ausentes por um tempo. Como se essa fosse minha única chance, eu peguei um livro de dentro daquela caixa. Era um conto de fadas de Andersen. Não era como se eu tivesse algum interesse por histórias infantis, mas como na caixa de meu tio só tinha esse tipo de título, eu acabei, sem muita opção, escolhendo este mesmo. Apesar de ter pegado o livro, lê-lo sem que minha avó percebesse é que seria o maior dos problemas. Durante os dois primeiros dias tudo correu bem, mas na tarde do terceiro dia, aproveitando um pequeno intervalo que tive, fui até as adjacências da latrina que ficava no canto das plantações dos fundos para mergulhar na leitura. Nisso, minha avó, como de costume, veio sem emitir ruido algum com os pés – eu, pelo menos, não escutei nada.
“Fumi, vem quebrar esse galho aqui para mim”, minha avó, com sua voz estridente, gritou em minha direção. Assustada, me desesperei e enfiei o livro dentro do bolso de peito do meu quimono. Mas o livro era um calhamaço de quase quatrocentas páginas e, naturalmente, fez um relevo bastante suspeito em meu peito. Minha avó percebeu o volume de imediato e arrancou o livro de dentro de meu bolso. E então, de início, disse “sua ladrazinha!” e, enquanto me tratava feito uma ladra de fato, prosseguiu:
“Mas que audácia a sua em roubar um livro importante de seu tio! Como exatamente você esperaria se desculpar se por acaso esse livro rasgasse ou se sujasse, em? É inacreditável, eu não consigo acreditar nisso...”
Para minha avó e o pessoal livros não eram artigos de leitura e sim de decoração.
Minha avó voltou para casa levando o livro consigo. E rapidamente fechou a parca caixa de livros de meu tio a chaves dentro do armário.
Eu finalmente tinha sido distanciada de meu último companheiro neste mundo: os livros. Depois que saí da escola, fiquei dois anos inteiros até o dia em que sai da casa de minha tia sem poder ler nada. As únicas letras que eu podia ler eram as letras desconexas dos jornais velhos colados em meu quarto. Eu continuei lendo aquelas letras dia após dia. Li ao ponto de conseguir recitar de memória tudo aquilo. Enquanto minha avó e companhia criavam nobres regras que determinavam que jornais não eram coisas para crianças lerem, era bastante cômico que colassem jornais velhos em meu quarto – mas eu falarei disso em outro momento. No entanto, o motivo era bem simples. Era idiotice gastar dinheiro com o quarto da empregada. Era mais do que suficiente colar alguns jornais velhos. Esse era o único motivo. O pessoal de casa pisaria mesmo na alardeada “nobre regra” se o lucro da família estivesse em jogo.
Parte 17
No meio destes acontecimentos, eu estava na primavera de meus quatorze anos e tinha parado de estudar após ter completado somente o curso de segundo grau do elementar.
Ela não só não cumpriu a promessa que havia me feito quando me trouxe de Kôshû de que eu iria estudar em uma universidade feminina, como também nem mesmo deixou que eu frequentasse a escola superior para mulheres. Este teria sido meu mais alto nível de instrução formal. Não, nem isso: como o valor do ensino de segundo grau do elementar não era os usuais quarenta centavos de ienes, eles teriam me feito parar de estudar ainda mais cedo, não fosse o medo que tinham de sujar a reputação da família.
Minha vida após a formatura foi insuportável. Enquanto eu frequentava a escola eu ainda conseguia ficar por volta de meio dia longe dos olhos de minha avó, mas agora, não importa o que acontecesse, minha vida estava, da manhã até a noite, sob a vigilância cruel de minha avó. Mesmo agora, eu ainda acho que aquela época era muito, mas muito pior do que esta atual situação em que me encontro presa nesta cela.
Logo após sair da escola, provavelmente no verão daquele ano, minha avó fez com que forrassem com algumas toras de pinheiro e colocassem dois ou três tatames velhos por cima do chão de terra batida de um galpão de armazenamento e decidiu que aquele seria o meu quarto dali para frente. Minha avó e companhia chamavam, entre eles, aquele quarto de “quarto de empregada”. Eu tinha finalmente decaído até a posição de uma verdadeira empregada.
O quarto de empregada faceava o quarto de minha avó. Há uma parede de distância ficava o barracão de lenha, o quarto da empregada era mais uma parte do galpão de armazenamento. O cômodo tinha mais ou menos três tatames de espaço e, para viver ali sozinha, era o suficiente, mas, no entanto, como aquilo era iniciante um galpão de armazenamento, mesmo após ter sido transformado em quarto de empregada, metade dele ainda era usado como galpão. No chão de terra batida da entrada estavam amontoados baldes, potes de conservas e recipientes de barro enquanto as prateleiras do quarto estavam abarrotadas de recipiente de madeira para arroz, de caixa e jornais velhos empilhados. Quanto aos meus pertences, minhas roupas estavam numa caixa e eu tinha um futon sujo e desbotado, mais nada: nem mesmo uma mesa ou uma almofada de chão para me sentar. Era um quarto triste, escuro, úmido, cheirando a mofo. Quanto a janela, não passava de um buraco do tamanho de meia porta corrediça que abriram na parede que faceava o quarto de minha avó. Eu vivia dia e noite neste quarto detestável junto aos entulhos. Me falaram expressamente para ficar ali quando eu não tivesse nenhum trabalho para fazer na casa principal e então eu passei a levar meus dias ali como um item inútil.
Mas, ainda assim, eu definitivamente não detestava a decadência deste galpão de armazenamento. Eu já estava a muito tempo acostumada com a pobreza e as dificuldades da vida. A única coisa que me deixava impaciente era atestar a insignificância de minha vida dentro deste “quarto de empregada”.
Entre meus amigos de escola, alguns já tinha ido para o próximo nível de instrução. Tinham aqueles que, almejando a independência financeira, escolheram o caminho da especialização em algum trabalho. Outros, por sua vez, estavam em suas casas se preparando diligentemente para a vida que estaria por vir. Em contrapartida, ali estava eu enfiada naquele “quarto de empregada” tendo que fazer trabalhos inúteis que nada tinham a acrescentar em minha vida. Eu não queria aprender nada tão luxuoso como arranjos florais, cerimônia do chá ou danças. Mas eu gostaria de, no mínimo, aprender outras coisas essenciais para os serviços de casa como costura ou etiqueta básica. E, acima de tudo isto, eu queria ler livros. Mas era tudo fora de cogitação, na realidade: tudo estava proibido. Quando raramente eles me davam algo para costurar, não passava de uma ou outra coisa que tinha que ser feita para a casa da minha tia e, por isso, não servia como treino completo de costura. – Na escola não tivemos uma boa professora e, portanto, nunca chegamos a aprender de fato –. Quanto a cozinhar, o máximo que eu podia esperar era que me deixassem cozinhar o arroz ou preparar a sopa de missô. Em resumo, fui relegada a uma vida em que bastava que eu executasse uma ou outra tarefa na casa de minha tia. Eles não tinham a mínima intenção de me ensinar o que quer que fosse acerca das coisas que eu precisaria saber para me tornar uma mulher de verdade. Nem minha avó nem minha tia tinha um pingo de bondade.
Minha jovem chama de vida urgia por crescer desenfreada. No entanto não tinha nada que pudesse me fazer crescer. Eu estava tomada por uma impaciência inelutável. Eu era atacada a todo momento por um medo ao pensar se eu teria mesmo que viver toda a minha vida nesse quarto abafado exalando mofo – neste “quarto de empregada”. Então, finalmente, eu tive um colapso nervoso.
Provavelmente foi por conta de minha privação de sono. Minha cabeça começou a doer enquanto trabalhava e meu corpo ficou mais mole, apesar de eu sempre cochilar sentada quando precisava dormir de verdade, eu não consegui pegar no sono. Uma, duas da manhã, era comum as noites que eu não conseguia dormir nem mesmo depois das três. Eu sofria me remexendo de um lado para o outro na cama e, quanto mais eu tentava dormir mais desperta eu me sentia, por fim, eu começava a sentir meus nervos se contorcendo. Às vezes eu sofria durante toda uma noite e acabava sem conseguir pregar o olho uma única vez. Nesses dias pela manhã, meu corpo ficava mole, meu humor ficava pesado e, de quebra, sentia dores de cabeça. Uma vaga apreensão me perseguia o tempo todo. Sentia minha obscura vida ficar ainda mais sombria.
Parte 18
Parando para pensar, eu fui maltratada desde que cheguei na Coreia. Durante todo esse tempo eu não recebi uma vez sequer um amor carinhoso de minha avó e família. Provavelmente vocês já devem ter compreendido isto pelos meus registros até aqui. Mas tudo que registrei até aqui não passa de uma ínfima parte de todos os maus-tratos que eu sofri. Estes não foram nem os mais expressivos nem os mais cruéis registros. Eu não escrevi propositalmente os mais cruéis.
Se eu escrevesse tais acontecimentos aqui todos iriam pensar que tudo isso não passa de mentiras. Se pouco, certamente diriam “está bem, está bem, já estamos cansados disso. No fim das contas é tudo graças a essa sua personalidade distorcida e corrompida. Por mais cruel que sua avó tenha sido, não tem como ela ter sido tão ruim assim”.
Certamente muitos pensarão assim depois de lerem tudo que eu escrevi, mesmo eu tendo deixado de fora as piores partes. Eu não irei negar que de fato eu tinha uma personalidade distorcida e corrompida. A realidade era que, sim, eu tinha uma personalidade desvirtuada. Sim, eu tinha uma personalidade corrompida. Mas, o que exatamente me fez ficar assim tão degenerada?
Desde muito nova eu sempre fui mais joãozinho do que as outras pessoas. Eu gostava de me divertir com brincadeiras de garotos junto aos meninos. Mesmo hoje eu não acho que seja uma mulher sombria ou uma depressiva retraída. No entanto, durante os sete anos em que estive na Coreia, era completamente o oposto.
Eu fui ficando cada vez mais desvirtuada à medida que era maltratada e não recebia nenhum amor. Eu fui ficando cada vez mais corrompida à medida que tinha toda minha liberdade roubada e era reprimida. Apesar de na escola ser um pouco diferente, enquanto estava em casa eu só dizia algo depois de ter pensado cuidadosamente no que iria proferir. Atualmente eu falo tudo o que quero sem maiores problemas, mas naquela época isso era impossível. Antes de qualquer coisa, eu sempre tentava adivinhar o humor de minha tia e de minha avó. Eu, então, dizia algo sempre profundamente preocupada em não ir contra o humor das duas. Não, não era só com as palavras que eu tomava esse tipo de cuidado, eu monitorava todos os meus atos. Por conta disso, acabei começando a mentir, a agir com dissimulação e, por fim, passei mesmo a roubar. Assim como Rousseau confessou em suas Confissões, eu também, após passar por tantos abusos, acabei completamente corrompida ao ponto de, no fim, estar até mesmo roubando.
Não quero ponderar agora sobre se é certo ou errado roubar. Mas para alguém que, assim como eu, procura ser sempre completamente honesta, verdadeira e justa, eu rejeito completamente o ato de tirar as coisas de outras pessoas e, claro, não roubo mais. Após voltar da Coreia e vir para Tóquio eu, não importa o tamanho da dificuldade por que passava, nunca tomei sorrateiramente para mim uma palha de outra pessoa. E ainda assim, enquanto estava na casa de minha tia, eu até mesmo roubei.
Por que será que eu fiquei assim tão mesquinha? Preciso falar um pouco sobre essas circunstâncias.
Dar dinheiro na mão de crianças para que elas fossem comprar algo era coisa de pobres imundos, não era algo que a refinada alta classe faria. Essa era a filosofia de vida de minha avó e companhia, era o orgulho deles. Por conta disto, eu não tinha dinheiro e nunca pude comprar nada do que queria. Normalmente ou alguém de casa comprava para mim ou eu pegava por meio de nota provisórias na volta da escola.
Mas isso era só quando eu comprava algo para mim, quando precisava comprar algo que era necessário para a casa de minha avó, esse não era o caso. As coisas ficaram ainda piores depois que eu me formei e passei a ser uma habitante daquele “quarto de empregada”. Eles me davam dinheiro para ir às comprar com muita frequência. Principalmente nos dias de “mercado aberto”, era certo que iriam me fazer ir às compras.
No interior da Coreia o mercado aberto abria umas cinco ou seis vezes por mês, em Fukô o mercado abria todo dia dezesseis do calendário lunar.
O mercado antigamente ficava para o lado do Shirakawa e era um dos maiores da Coreia, mas, após a estrada de ferro se expandir, entrou em rápido declínio, teve que ser movido para o centro da vila e hoje, em seus melhores dias, pessoas das vilas vizinhas há até dezesseis quilômetros se juntam para ir até ele. Ainda assim, junta-se bem umas mil ou duas mil pessoas. Deste modo, pessoas de todos os lugares vêm até aqui para montar suas lojas para os clientes, lojas de carne, de bebidas, de quimono, de doces, de remédios e quitandas, montam lojas de todo o tipo. É claro que os pequenos comerciantes japoneses não perderiam uma oportunidade tão boa quanto esta. Do mesmo modo que também não deixavam de ir até áreas mais populosas para comprar produtos mais baratos dos mercados destes locais.
A família de minha tia, que se portava com ares de aristocracia refinada, obviamente não se prestaria ao papel humilhantes de instalar uma loja nestes locais, mas mais do que isto, elas até mesmo se envergonhavam de ir fazer comprar no mercado junto às “senhoras de classe baixa”. Mas, apesar do discurso, sovinas até o osso, eles tinham a necessidade de comprar os produtos baratos que eram vendidos no mercado. Era a mim que essa incumbência era atribuída. E essa foi a única razão que me levou a cair no mundo do roubo.
Foi no final do ano em que eu tinha quatorze anos de idade. Nessa época, tinha pouco peixe, os preços estavam altos e na casa de minha tia ficou decidido que comeríamos ovos no lugar de peixe como prato de ano novo. O preço de mercado de dez ovos era por volta de dez centavos.
Eles sempre me mandavam ir comprar os ovos nos dias de mercado. Sempre quando eu estava de saída minha avó me alertava: “é para pechinchar bastante e comprar o mais barato possível, ouviu? Não quero saber de você chegar aqui com ovos caros”.
No entanto, é obvio que não tinha como uma criança como eu conseguir pechinchar satisfatoriamente. Mais o maior agravante era que eu não sabia se o produto estava realmente caro ou barato.
Às vezes eu conseguia comprar por um baixo preço. E minha avó se alegrava e falava: “isso, esse foi barato”, mas, na maior parte das vezes, minha avó ralhava comigo com uma expressão azeda no rosto: “isso foi um tanto caro, né”.
Certo dia eu fui comprar somente os ovos que haviam me mandado comprar. Quando voltei minha avó colocou os ovos na palma da mão e, enquanto tentava tirar o peso deles nos olhos, disse:
“Esses ovos não estão ridiculamente pequenos? É por isso que eu estou falando que esses ovos estão mais caros do que o normal. Agora mesmo a senhora Miura veio do mercado falando que os ovos estavam ridiculamente baratos... Você certamente comprou um imagayaki e comeu, né?!, igualzinho seus amiguinhos pobres...”
Que suspeita impiedosa! Eu barganhei o quanto eu consegui barganhar. Eu barganhei vergonhosamente até o ponto de o vendedor ficar impaciente. Além disso, mesmo após já ter comprado, eu não tinha até mesmo saído pela rua perguntando as outras pessoas o valor que elas pagaram e durante o caminho de volta não tirava os ovos da embalagem de palha para verificar o tamanho deles me esforçado bastante para agradar minha avó na tentativa de comprar ovos baratos? Ainda assim, ainda assim: seria mesmo possível que eu tenha comprado ovos caros? Eu tinha mesmo que ser vítima de tamanha injustiça?
Não importa o que digam, eu ainda era só uma criança. De fato, na maior parte das vezes eu simplesmente não conseguia comprar as coisas tão baratas quanto os adultos compravam.
Eu sofria por isto. Nisto, eu comecei a pensar em uma maneira de alegrar minha avó. Pensei meticulosamente no assunto. Após pensar bastante, a única saída que encontrei foi justamente a que me levou ao roubo.
Quando era dia de mercado eu, primeiramente, calculava um momento em que ninguém da casa iria perceber, ia até o armário e roubava da caixa de trocados sete ou oito moedas de cobre. Então eu enrolava aquilo em minha faixa de cintura e, quando voltava para casa, acrescentava as moedas ao restante do troco e o dava para minha avó.
Nessas horas minha avó estampava sem falta um sorriso no rosto. Mesmo que ela não se alegrasse, pelo menos também não ficava com a carranca carregada. Eu continuei durante um ou dois meses usando esse mesmo método para ganhar a simpatia de minha avó. Mas é claro que, internamente, eu estava bastante insegura com tudo aquilo. Eu vivia com medo pensando que alguma hora eu seria descoberta. Além disso tinha algumas ocasiões que eram bem desfavoráveis. Isto é, era bem frequente só ter moedas de prata na caixa de trocados e nenhuma moeda de cobre. Ao pegar uma moeda de prata o risco de ser descoberta era ainda maior, já que o valor dos trocados evidentemente diminuía.
Eu voltei a ponderar a questão em busca de uma forma melhor para agir. Então eu consegui bolar mais um plano.
Foi por volta do inverno em que eu tinha quinze anos. Nas manhãs dos dias de mercado eu, inventando um pretexto qualquer, ia até o celeiro de arroz lá do canto do jardim.
No lado esquerdo do celeiro sacas e mais sacas de arroz ainda com cascas se empilhavam e, do lado direito, estavam dispostas cinco ou seis filas de caixas de arroz não polido da altura do meu peito. Eu tirei a tampa da caixa mais próxima da entrada. Abri, então, uma brecha para a luz que vinha da janela e fitei a superfície do arroz. O ideograma de “kotobuki” estava escrito a dedo sobre a superfície plana. – Como o criado Kô ia muito até o celeiro de arroz, minha avó, cogitando se ele não estaria roubando arroz, bolou essa medida ante furto que eu já conhecia de antemão.
Eu olhei fixamente para o ideograma que estava na superfície do arroz. Tentei imitar a letra de minha avó. Quando tive confiança suficiente de que conseguiria falsificar aquela letra peguei rapidamente uma porção de arroz com o medidor de 10 litros e o enfiei em uma sacola. Então escondi a sacola atrás das sacas e nivelei mais uma vez o arroz. Escrevi mais uma vez o ideograma de “kotobuki” imitando o tracejado de minha avó assim como havia treinado.
Finalmente era hora de ir para o mercado. Quando tive certeza de que não tinha ninguém pelas redondezas, sai pelo portão traseiro levando comigo o saco de arroz que tinha escondido anteriormente.
É claro que eu camuflava o pacote debaixo de meu casaco. Além disso, para evitar ser descoberta por alguém lá de casa, eu me enfiava e me misturava sorrateiramente no meio daquela multidão de coreanos que rumavam para o mercado.
O mercado, como de costume, estava lotado. As pessoas seguiam de uma loja a outra. As lojas e os vendedores se encontravam nos mesmos lugares de sempre. Eu já sabia de cor e salteado onde cada coisa era vendida. Também sabia onde eram feitas as trocas e o que era trocado. Mas o que eu deveria fazer com o arroz que trazia comigo? Eu queria trocar aquilo por dinheiro o mais rápido possível. Se não o fizesse, poderia chamar a atenção de conhecidos. Meu tio às vezes vinha dar uma volta pelo lado do mercado e se ele me descobrisse não ia ficar por isso mesmo. Deveria ir até o mercado de arroz? Mas a quantidade que eu trazia era muito pouca para isso. E, além do mais, eu não tinha coragem de ir para um lugar destes só para realizar uma troca. Ocasionalmente eu acabava encontrando algum conhecido da vizinhança de minha tia. Nessas horas eu sempre ficava com a impressão de que todos eles eram como “agentes secretos” da casa de minha tia. Eu começava a tremer de medo como uma ratinha. Nessas horas eu pensava que seria mais seguro jogar aquilo tudo dentro de algum buraco qualquer.
Enquanto eu ia de um lado para o outro perdida, o tempo corria impiedoso. Provavelmente já era perto das quatro da tarde. O sol ia se pondo cada vez mais. Eu tinha que voltar logo para casa. Se não voltasse eles me xingariam mais uma vez dizendo “o que você estava fazendo? Na certa parou para comprar alguma coisa pra comer de novo, né?”.
Eu sabia que as senhoras de outras vilarejos faziam trocas de produtos por dinheiro para poderem comprar os itens que precisavam. Eu só precisava fazer o mesmo. Mas eu não conseguia de jeito nenhum. No fim das contas, eu também tinha que manter as aparências. Eu me preocupava com o que aconteceria comigo se algum conhecido me visse em um momento desse e fosse me dedurar para minha avó.
Mas eu já não tinha mais tempo. Era agora ou nunca. Nisso, eu juntei toda a minha coragem e decidi que iria fazer exatamente como as senhoras estavam fazendo.
Quando me dei por mim, estava na frente de uma loja de bebidas de uma senhora coreana conhecida minha. Tinha que ser ali! Vamos lá, temos que entrar!, eu pensava comigo mesma. Mas alguns clientes ainda estavam na loja. Eu fui e voltei por aquelas áreas umas duas ou três vezes. Então, aproveitando um intervalo quando não tinha mais nenhum cliente na loja, eu entrei silenciosamente na loja e, tentando conter à força um sentimento de mal-estar e culpa que deixavam minhas orelhas queimando de vergonha, disse com uma voz baixa e hesitante:
“Com licença, senhora... Será que senhora não compraria esse arroz na minha mão? É arroz de qualidade... Pode ser pelo valor que a senhora quiser...”
A senhora me olhou com o rosto assustado. Eu fiquei ainda mais aterrorizada ao ver seu rosto. O que eu faria se ela recusasse? O que eu faria se ela contasse tudo para minha avó? Eu já estava ao ponto de querer me enfiar em um buraco se tivesse algum por perto.
Mas, para minha salvação, a senhora respondeu:
“Me mostre lá que arroz é esse.”
Ah!, eu estava salva! Senti um alívio enorme no peito. Fui, então, buscar o saco de arroz que tinha escondido atrás da loja de carne, após ficar completamente perdida pensando em o que fazer, e o trouxe para a senhora.
A senhora abriu a boca do saco e tirou de lá um punhado de arroz.
“Dá para ver que é um bom arroz. Quanto tem aqui?”
“Tem 10 litros, senhora.”
“Tem mesmo por volta disso, né, parece estar tudo certo.”
Certamente tinha mais de 10 litros no saco. Quando eu coloquei o arroz ali usei o medidor e depois ainda acrescentei mais um pouco por cima. Mas isso, naquele momento, pouco importava. Eu só queria trocar aquilo logo por dinheiro, não importa o quanto seja. Eu respondi:
“Sim, creio que tenha o suficiente... Mas qualquer valor está bom.”
A senhora, então, finalmente decidiu realizar a troca. Após receber o dinheiro da troca, o apertei na mão e sai da loja. Me misturei, então, mais uma vez no meio da multidão.
Mas quão envergonhada eu estava! Mesmo eu tendo ficado tão aterrorizada de início, eu voltei a repetir essa mesma ação para cobrir as coisas que eu comprava por um alto valor, para agradar minha avó. Repetia isto enquanto sentia, aterrorizada, que estava me tornando cada vez mais insolente...
“Se tivessem me descoberto naquela ocasião...”. eu ainda hoje tenho calafrios quando às vezes penso nisso. Mas, por mais estranho que possa parecer, eu só sinto isso quando penso no terrível resultado que me aguardaria se fosse descoberta, já que não acho que eu tenha feito lá algo muito de errado. Atualmente eu não acredito que deva ser completamente responsabilizada pelo que eu fiz, eu só fiz o que fiz porque fui levada a tanto. Pelo contrário, eu não consigo deixar de sentir uma indignação sem fim por minha avó e sua avareza e crueldade que – até onde eu calculo – foram os responsáveis por me macular com esta mancha vergonhosa.
Parte 19
Fico me perguntando se não me alonguei de mais nos meus relatos de vida na Coreia. No entanto, de minha parte, eu não podia deixar de escrever pelo menos esse tanto. Foi também para ajudá-los a compreender o porquê de eu ter me tornado essa pessoa tão distorcida e corrompida...
De qualquer forma, chegou a hora de relatar o momento em que eu me despedi daquele inferno que era a casa de minha tia. O momento em que eu consegui escapar das mãos do pessoal da casa da minha tia, mãos que me maltratavam, torturavam, que usurparam toda a minha liberdade e independência, que destruíram tudo o que eu tinha de bom, que obstruíram meu desenvolvimento, que me degeneraram, me corromperam, me distorceram, me fizeram até mesmo me tornar uma mulher dada ao roubo...
Foi por volta de quando chegou a primavera dos meus dezesseis anos. Certo dia minha avó me chamou até seu quarto e disse:
“Então, Fumi, eu estou pensando em ir até Daiden amanhã por conta de um compromisso e, aproveitando que vou estar por lá, pensei em comprar para você um quimono formal, que tal? Não acha que vale a pena tirar um pouco da sua poupança para isso? Não é como se você precisasse de algum dinheiro e é um desperdício só ficar guardando ele. Não vou te forçar a nada, mas acho que essa é a melhor coisa a se fazer, afinal de contas você já está na idade de ter pelo menos um quimono formal, né?”
Apesar de eu não ter sido uma criança que desejava quimonos bons para vestir, não posso negar que fiquei um tanto contente quando recebi sua proposta de me comprar um quimono formal. Mas quando minha avó, logo em seguida, disse que era para eu pagar o quimono com meu próprio dinheiro, me senti indescritivelmente desgostosa com aquilo tudo. Até mesmo uma criança como eu sabia muito bem que era mais do que natural que minha avó comprasse aquele quimono para mim e não que eu tivesse que pagá-lo. Não foi minha avó que apesar de ter me enfeitado com aquelas belas roupas quando me trouxe para cá posteriormente as enviou de presente para Sadako? Pois não era a minha avó quem nunca havia me dado um quimono realmente bom e me fazia vestir uns trapos de padrões respingados que valiam somente um iene e cinquenta centavos ou dois ienes como se fosse um quimono formal durante todos esses sete anos que eu estive na Coreia? Além disso, não foram eles que, mesmo enquanto eu estava na escola, me usaram como empregada? E, após eu me formar, eu não fui empregada por tempo integral por dois longos anos sem, no entanto, receber um centavo sequer de pagamento? Ainda assim, quando chegou minha idade de casamento e eles precisam comprar uma seda meisen para mim, ainda têm a coragem de sugerir o uso do resto da reserva de dinheiro que eu tinha e de onde descontavam a compensação de cada utensilio que eu quebrava. Mais do que inacreditavelmente mesquinhos, esse pessoal era inconcebivelmente desumano.
“Eu não preciso de um quimono”, era o que eu realmente queria dizer. Mas eu não podia dizer aquilo por temer o que poderia me acontecer se, com isso, tirasse minha avó do sério. Eu, então, só consenti com o que minha avó dizia e fui naquele mesmo momento retirar todo o resto da minha poupança para trazer de volta. Eu tinha seis ienes do dinheiro que era deduzido sempre que precisava compensar algo e mais quatro ienes que minha mãe tinha enviado posteriormente, somando um total de dez ienes.
No dia seguinte minha avó trouxe como prometido uma seda meisen. Era um quimono de fundo preto com padrões em xadrez e sem graça do tipo que as mulheres de 36, 37 anos usavam. Eu, quando vi aquilo, fiquei decepcionada. Mas é claro que eu precisava, exteriormente, agradecer devidamente com o indispensável “obrigada”.
Mas para aquilo se tornar algo que pudesse ser chamado de quimono ainda necessitava de abas para a parte de baixo e de um forro. Para as abas minha avó usou um pedaço de pano cinza e velho, já para as bocas das mangas, usou um cetim preto que também tinha em casa. Com o restante das minhas economias ela comprou somente uma cambraia vermelha para o forro.
Mas pouco importava tudo isso. O que eu não entendi era o porquê minha avó de repente me saiu com aquela ideia de comprar um quimono. No entanto, finalmente entendia seus motivos.
Foi por volta do dia três ou quatro de abril. Certo dia, quando eu cheguei em casa depois de ter cumprido minhas obrigações, encontrei na estante do meu quarto uma mala colocada em uma das prateleiras. Ao descer com cuidado aquilo para o chão e verificar seu interior constatei que estava complemente vazio. A única coisa que tinha ali era um pedaço de tecido costurado com linha branca do lado de dentro para tampar um buraco.
“E agora essa, o que isso tudo significa? Será que eu vou...”, era o que eu pensava enquanto olhava para aquela mala.
Ao pensar nisso me senti leve e tive vontade de me levantar e dançar. Mas, ainda assim, eu ainda sentia certa insegurança. Meu orgulho ferido me fazia cogitar a possibilidade de eu estar sendo finalmente descartada.
No entanto, eu não perguntei nada a respeito daquela mala. Eu continuei trabalhando fingindo que não tinha percebido nada do que acontecia.
Meu tio me disse:
“Você esteve conosco durante um longo período, já terminou seus estudos e já está na idade de se casar então acho que é melhor você voltar para Yamanashi, sua avó está com partida marcada para Hiroshima para amanhã e seria o ideal se você fosse com ela. Então faça seus preparativos com isto em mente”, ele disse. Isso aconteceu no dia onze, ou seja, quatro ou cinco dias depois de eu ter achado a mala no meu quarto.
Eu concordei com tudo.
Mas é claro que eles não poderiam me devolver no estado em que eu me encontrava. O pessoal da vila, meus parentes e minha mãe iriam suspeitar da falta de gentileza deles quando me vissem sem as roupas prometidas ou sem mesmo ter estudado até o nível que eles alegaram que eu estudaria. De certo foi por isso que fizeram eu vestir aquele quimono de seda meisen para voltar para casa. Sem dúvida alguma foi com isso em mente que minha avó me fez comprar aquele quimono.
Assim que terminei de arrumar a mesa minha avó me ordenou que trouxesse de meu quarto aquela mala e o quimono. Quando levei o que me foi pedido, elas, sem que eu pudesse tocar em nada, abriram cada uma de minhas vestes e, assim como fizeram durante o exame para eu entrar no presídio, vistoriaram todos os fundos de bolsos e apalparam os colarinhos. E, certamente para mascarar o tratamento que eles me deram, tratamento muito diverso daquele que minha avó havia alardeado aos quatro ventos que daria, separou de lado todos os quimonos em péssimas condições e só colocou de volta na mala aqueles que de alguma forma ainda eram vestíveis. Ainda assim, o que tinha de melhor ali era somente um quimono flácido forrado de seda meisen, com remendas e desbotado e o meu novo quimono de forro gaseado. O quimono de musselina sem forro que eu mais gostava eles haviam dado para Sada-chan em algum momento e, em troca dele, minha avó colocou na mala um quimono de seda meisen de Isezaki sem forro que ela nunca vestiu durante todos os sete anos que eu fiquei lá porque não gostava dos padrões dele. Além disso, minha tia, como se estivessem me fazendo um enorme favor, disse para minha avó:
“É um desperdício eu não ter conseguido ter nenhum filho, né? A gente acaba tendo que passar por toda essa dor de cabeça e essa gastança de dinheiro...”
Minha avó, de sua parte, enquanto seguia colocando minhas roupas velhas na mala, roupas que, a bem da verdade, já não me serviam para nada, me disse:
“Então, Fumi, aquele casaco de musselina que você veio vestido, eu o refiz em uma peça de baixo e estou colocando aqui na mala bem na sua frente, hein? Aquele outro quimono branco sem forro você mesmo rasgou e por isso nem existe mais”, ela continuava se explicando, “além disso, vou deixar bem claro para você, não é para você sair falando por lá que eu só prometi te comprar roupas para te enganar e trazer para cá, hein? Está me ouvindo? Se você tivesse se comportado bem, aquilo tudo era realmente para você. Mas como você não se comportou, bem, não pude te dar nada daquilo. A que se faz a que se paga, não é mesmo? Está me entendendo?”, ela seguiu tomando as devidas precauções para que eu não reclamasse de nada que aconteceu aqui quando voltasse para casa.
É claro que eu respondi “sim”. No entanto, bem lá no fundo, eu tinha ganas de retrucar: “eu não sou mais criança, senhora”.
No dia seguinte eu e minha avó comemos nosso almoço mais cedo e saímos de casa.
A ida de minha avó até Hiroshima já estava acertada de antemão, ela tinha tanto questões para acertar acerca dos estudos de Sada-chan, que iria para a escola de garotas, quanto também havia sido convidada para o casamento do filho mais velho da família de Misao.
Quando estava para me afastar da casa meu tio me deu cinco ienes como, nas suas palavras, trocados para gastar na viagem. Isso foi tudo que eu recebi dos Iwashita. Minha tia foi até a estação conosco. Kô também nos acompanhou enquanto carregava as malas.
O trem chegou sem que precisássemos esperar muito. Eu e minha avó embarcamos nele.
A despeito de estar me separando da terra em que passei sete anos de minha vida eu não derramei uma lágrima sequer. De meu triste coração foi, pelo contrário, da seguinte maneira que rezei:
--Oh, trem! Sete anos atrás você me trouxe enganada. Então me abandonou aqui sozinha para passar por todas essas dolorosas provações enquanto seguia seu caminho. Você passou por mim centenas, milhares de vezes durante todo este tempo. Mas você só me olhava de rabo de olho e seguia calado seu caminho. No entanto, finalmente você veio me buscar! Você não se esqueceu de mim. Oh!, me leve para qualquer lugar! Para longe, para qualquer lugar bem longe. Só me leve para uma terra bem distante daqui!
A volta para a vila
Eu cheguei à estação da vila natal de minha mãe ao entardecer do terceiro dia de viagem. Chiyo, que era uma pessoa do Templo Enkô em que meu pai já esteve anteriormente, estava me esperando.
Chiyo, que era dois ou três anos mais velha do que eu, ao me ver veio correndo em minha direção e segurou forte minhas mãos.
“Fumi! Seja bem-vinda de volta!”
“Obrigada! Finalmente estou de volta.”
Continuamos de pé com as mãos dadas e em silêncio após essa troca de saudações.
Eu não queria conversar. Eu guardei silêncio em meio a sentimentos inomináveis de felicidade e de vergonha.
“E suas malas?”
“Não tenho mais muita coisa além disso. Tem uma mala que provavelmente não chegará hoje.”
“É né, então vamos para casa?”
“Vamos.”
Nós duas passamos pela catraca e saímos para fora. Saímos andando ruma a vila. Mas o sol já estava escurecendo. Não conseguiríamos voltar para casa enquanto ainda tivesse sol. Nisto, resolvemos nos hospedar no templo de meu tio – irei escrever sobre isto depois – que ficava bem no meio do caminho entre a estação e a casa de minha tia. Então, no dia seguinte, quando chegamos em casa já era de tarde.
Era primavera. A vila estava embrumada em um dia radiante. O trigo começava a ganhar cor, as flores de canola já se pintavam de amarelo. Os rouxinóis já cantavam nas montanhas e os jardins das casas já exalavam o perfume das dafnes.
Eu vi a casa da família de minha mãe bem diante de meus olhos. Ao atravessar a tora de madeira que fazia as vezes de ponte do pequeno rio a leste e sair bem na frente da casa vi meu tio que trabalhava na plantação de vegetais bem ali.
Ao partir da Coreia eu estava em completa agitação. Eu desejava fugir daquele inferno o quanto antes. Eu implorei para o trem me levar o mais rápido possível para fora da Coreia. Não importa para onde, só desejava que me levasse o mais rápido possível. Mas, a bem da verdade, não havia um destino para onde ele pudesse me levar. O que exatamente me levou a pensar que ali poderia ser meu verdadeiro local de descanso? Ao ver a vila, ao ver meu tio, eu fiquei ainda mais depressiva.
Meu tio cessou os golpes de enxada assim que me viu.
“Eu voltei, tio, Me perdoe, não sou uma pessoa ruim.”
Eu por fim consegui saudá-lo desta forma. Eu já estava em prantos.
“O que? Não se preocupe com isto, Fumi, eu meio que já entendi tudo o que aconteceu.”
Meu tio que normalmente era calado e taciturno e que mal sabia sorrir me consolou desta forma esboçando um leve sorriso. Fez a enxada de bengala e, me olhando com ares nostálgicos, voltou a falar:
“Não tem nada para chorar não. Você cresceu bastante nesse meio tempo em que a gente não se encontrou, hein? Se você conseguiu se desenvolver tão bem, você consegue virar qualquer coisa. Não tem nada com que se preocupar.”
Eu voltei para casa temendo o quanto eu seria escorraçada quando chegasse. No entanto, longe de me escorraçar meu tio me estendeu suas mãos cheias de afeto e bençãos. O enorme fardo que trazia às costas de repente se foi e eu comecei a me sentir feliz. Eu pensei: “aqui realmente é minha verdadeira casa”.
Meu tio interrompeu o trabalho e voltou conosco para casa. Minha tia preparava o almoço na cozinha.
“Vejam só se não é a Fumi! Bem-vinda! Mas que grande você já está!”, minha tia me recebeu afetivamente.
Tanto meu avô, que estava na plantação no jardim, quanto a minha avó, que estava dando folhas de amoreira para os bichos-da-seda que ficavam no quarto atrás de onde estávamos, vieram correndo ao escutar minha voz.
“Vejam só se não é você, Fumi! Então você realmente voltou. Eu achei um tanto repentino e fiquei pensando se não seria algum engano. Bem-vinda”, meu avô disse.
“Veja como você cresceu, você está bem? Como não tivemos nenhuma notícia sua, a gente ficou preocupado, sabe”, minha avó emendou.
Eu lavei meus pés na água do poço. Chiyo também fez o mesmo. E então subimos para aquele quarto imundo de tatames, conquanto aconchegante.
Já era hora do almoço e então fomos todos para a mesa. Era uma refeição humilde, mas eu saboreei aquilo como se fosse um banquete suntuoso. Eu estava grata por, se pouco, a comida passar por minha garganta sem dificuldade alguma.
Enquanto comíamos meu tio e o pessoal me perguntaram diversas coisas. Eu falei sobre a Coreia, sobre Fukô, sobre a casa de minha tia, sobre a escola, falei sobre tudo de maneira bem fragmentada e resumida. Mas eu não falei uma palavra sequer sobre o quanto eu tinha sofrido na Coreia, ou o quanto tinha sido penoso e o quanto eu tinha sido maltratada, mas meu tio e o pessoal pareciam ter percebido tudo mesmo que eu nada tenha dito.
Meus avós comiam em outro lugar e, portanto, não estavam lá naquele momento, meu tio e o restante do pessoal voltaram para a plantação e eu fui para o quarto dos meus avós. Lá eu voltei a conversar sobre diversos assuntos.
Minha mãe, ao saber da minha volta, também veio para casa bem cedo na manhã seguinte. Ela também parecia ter envelhecido consideravelmente, mas ainda mantinha uma boa aparência.
“Como você cresceu”, ela me disse com voz contente enquanto acumulava lágrimas nos olhos. Ela então penteou meu cabelo com o pente, massageou minhas costas, mas, ao olhar de relance meus braços, disse:
“O que aconteceu com seus braços!? Eles estão cobertos de queimaduras de frio!”
A princípio, assusta, logo em seguida completou: “certamente te fizeram trabalhar com água de manhã até a noite, né?” e então de repente caiu em choro.
Minha mãe que, ignorando meu mísero pedido, tinha saído de casa e me abandonado. Eu ainda hoje não consigo esquecer isto. Mas ao perceber que existe alguém que se preocupa comigo desta forma tão doce, não poderia deixar de me sentir contente. Eu senti uma gratidão ainda mais profunda porque havia acabado de voltar da Coreia onde eu tinha sido maltratada a exaustão.
“O que te aconteceu na Coreia? Até onde deixaram você estudar?
Minha mãe queria, desta forma, saber em detalhes como eu tinha passado meus dias na Coreia. Parando para pensar, eu nunca enviei nada escrito da Coreia para minha mãe. Eu não pude enviar. Eu não tinha permissão para escrever cartas por minha conta. Nas raras ocasiões em que me era permitido, as cartas tinham que passar por uma vistoria completa de minha avó e do pessoal, semelhante as que acontecem neste presídio. Elas sempre me faziam escrever coisas do tipo “Eu estou vivendo feliz e em completa liberdade. Não há nada com que se preocupar”. Deste modo, certamente minha mãe acreditava que eu estava vivendo uma vida de felicidades como minha avó da Coreia tinha prometido no passado.
Eu não falei nada a respeito daquilo tudo. Parte porque eu não me sentia à vontade em ficar reclamando e parte porque eu achava que eles não me compreenderiam de verdade caso eu contasse. Eu só falei que tinha completado o segundo fundamental e que Sada-chan era agora a herdeira da família Iwashita e, portanto, eu não tinha mais nada para fazer lá e, nisto, eles me mandaram de volta.
“Bem que eu achei estranho. Nas primeiras duas cartas seu nome vinha como “Iwashita Fumiko”, mas depois de um tempo foi substituído por “Kaneko Fumiko”. Eu bem que achei que tinha algo por trás disto”, minha mãe disse.
“Mas, ainda assim, eu nunca imaginei que eles te mandariam de volta neste estado e sem uma palavra de saudação”
Minha avó continuou a conversa destilando rancor aos Iwashita.
As duas relembraram tudo que minha avó da Coreia disse e fez quando veio me buscar para ir com ela e, como se tivessem desvelado tudo, amaldiçoaram cada palavra e cada ato da família Iwashita.
Ao voltar para casa depois de sete anos longe, pude perceber que muita coisa havia mudado. Minha avó, anteriormente, já vivia em um aposento separado da casa principal, mas agora a porta de cipreste que separa os cômodos foi devidamente fechada com um prego e já não podia ser aberta. O lago que ficava na parte traseira estava raso, sujo, lamacento e entupido de folhas e outras impurezas. O pomar que meu bisavô cuidava com tanta diligência estava irreconhecível após tanto descaso. Os dois galpões que ficavam a oeste da casa principal estavam destruídos e cebolas estavam sendo cultivadas em suas ruinas.
A atmosfera dentro de casa também havia mudado. A relação entre meus avós e meu tio e sua esposa, que viviam sob mesmo teto, tinha se deteriorada a muito tempo – esse parece ter sido o motivo para que a porta de divisória fosse pregada – e acabaram se tornado algo como duas famílias separadas. Meus avós levavam seus dias cuidando de uma horta interna e, para conseguir alguns trocados, criando, com particular cuidado, bichos-da-seda, já meu tio, dono de uma constituição física frágil e, além disso, que não gostava do trabalho de camponês, fazia a vida comercializando materiais para confecções de quimonos e roupas de segunda mão. Eles já tinham quatro crianças e a mais velha, que eu antigamente carregava nas costas enquanto ia para a escola, já contava a mesma idade que eu quando estive aqui – nove anos.
Minha mãe estava casada, mas não era na mesma família de Enzan de quando eu fui embora. Ela não conseguiu se adaptar à casa do comerciante e, pouco depois de eu ter ido para a Coreia, voltou para casa e, mais uma vez, foi trabalhar para uma fábrica têxtil, mas o monge chefe do Templo Enkô arranjou o casamento dela com um outro monge conhecido seu, mas a coisa toda não durou dois meses já que minha mãe achou aquele monge insuperavelmente mesquinho. Após sua volta, começaram a circular rumores que ela estaria tendo um caso com o mandrião do segundo filho da família Sone que, quando a casa de minha mãe era mais prospera, vivia indo e vindo pela porta traseira da cozinha, para apaziguar os ânimos dos parentes e familiares, minha mãe foi trabalhar por uma terceira vez na fábrica têxtil do grupo Yamajû que ficava em Jôshû. Depois de seu regresso, ela, por fim, se casou novamente com o viúvo Tahara, corretor de seda, que vivia próximo à estação de Enzan.
Como eu havia registrado anteriormente, minha mãe morou e teve relacionamentos com diversos homens e, depois que eu fui para a Coreia, parece que tudo continuou se repetindo como antigamente. Mas agora eu já não penso em culpar minha mãe por isto. Quero dizer, provavelmente minha mãe tem um senso de virtude bem opaco, mas, ao mesmo tempo, ela também tem uma determinação extremamente baixa e é uma mulher que não consegue, de forma alguma, viver sozinha – nisto, ela precisa de um homem ao seu lado para lhe dar suporte. Ou que, ao menos, aparente ter a intenção de fazê-lo, além disso, toda vez que minha mãe fica solteira, alguém sempre vem até ela, inclusive os próprios familiares, com uma proposta de casamento dizendo que o pretendente é abastado, tem uma condição boa e vive bem, parte disto era por quererem fugir da imagem negativa de ter dentro da casa uma jovem divorciada que falhou no seu primeiro casamento e, a outra parte, era por pensarem nos benefícios que a manutenção de um bom relacionamento com as famílias abastadas poderiam gerar e, no fim, sem nem mesmo levarem em conta se a minha mãe seria ou não feliz, acabavam obrigando-a a se casar mais uma vez. É por estas razões que eu não a culpo por mais nada.
Primeiramente tenho que dizer que, no entanto, era mais do que natural que para uma mulher como minha mãe, que voltou para casa depois de ter fugido com um homem que sequer conhecia as origens, que teve que passar por poucas e boas e pela mão de vários homens, para essa mãe, nenhuma proposta de casamento viria de uma família estabilizada ou sem nenhuma condição prévia, ela só conseguiria se casar com aqueles que tinha, eles próprios, um passado. E a realidade era exatamente esta, mas minha mãe, caprichosamente, dizia que não podia aguentar aquilo e acabava fugindo mais uma vez e, no fim, a compaixão de todos se esgotava e sua fama começava a ser da mulher mais intolerante do mundo e até mesmo as condições de seu primeiro casamento com Saeki começavam a ser questionada, gerando dúvidas se minha mãe também não seria tão culpada quanto seu marido para os desfecho que as coisas tiveram, mas não só isso: tendo as proposta de casamento para minha mãe como catalizador, mesmo as relações entre meus avós, entre a família do meu tio e até mesmo entre o monge chefe do Templo Enkô, começaram a ruir. Fora tudo isso, assim como nas propostas anteriores, a história que os mediadores deste casamento com Tahara tinham contado divergiam muito da realidade e minha mãe, assim que voltava para casa e, como se não se cansasse disso, só fazia reclamar e reclamar.
Desta vez, então, também não foi diferente, ela, de início, me recebeu com felicidade, me perguntou sobre a Coreia e se irritou com os acontecimentos, mas logo passou às reclamações costumeiras e, algo como que sem fim, seguiu rezingando suas dores para minha avó.
Não é como se eu não sentisse pena da minha mãe ao escutar suas histórias, mas não se comparavam aos sofrimentos pelos quais eu tive que passar na Coreia. Além disso, eu não podia, a semelhança do que minha mãe fazia agora, reclamar minhas dores para ninguém e acabava pensando, desgostosa, no porquê de minha mãe ser assim tão dada a reclamações. Eu que julgava que, finalmente, havia conseguido respirar aliviada após ter escapado daquele obscuro e lúgubre inferno, ao escutar todas aquelas conversas sombrias não podia deixar de sentir um fardo insuportável em minhas costas.
Não suportando mais ouvir aquelas arengas eu, apesar de ter reencontrado minha mãe depois de tanto tempo, escapei de perto delas. No entanto, para onde eu deveria ir? Seu eu fosse até a casa do dono – a casa do meu tio – e ficasse por muito tempo, iria chatear meus avós, ir para o Templo Enkô também estaria fora de cogitação dado o péssimo relacionamento de minha mãe com o monge chefe de lá. Então, tão logo eu voltei para casa, já me percebi novamente sem um lugar calmo em que eu pudesse viver com tranquilidade.
Por conta disto, acabei somente andando sem rumo pelas ruas da vila. Então, em certo dia, provavelmente uns quatro ou cinco dias depois, enquanto estava parada em pé e distraída em frente ao portão da casa do meu tio, dois ou três amigos dos tempos de escola passaram por ali carregando cestos e foices. Trocamos saudações com ares de adultos e eu perguntei para eles aonde iam.
“Estamos indo apanhar samambaias.”
De repente eu também fiquei com vontade de ir junto deles.
“Vocês não poderiam me esperar um pouco? Também quero ir...”
Eles aceitaram de boa vontade meu pedido. Eu voltei para casa e me preparei sorrateiramente para subir a montanha e sai de casa apressada.
Andamos pela costa do rio do vale de águas claras que corriam por entre incontáveis rochas. Em meio ao denso ligamento de árvores, as itadori, framboesas e os aspargos-da-montanha estavam eu seu pico de crescimento. Diversas plantas que eu não conhecia estavam brotando e as suas flores se abrindo. Os rouxinóis de dentro daquela floresta úmida e silenciosa enviavam seus cantos para as montanhas e vales. Ao atravessar o caminho que passava por dentro desta floresta, montanhas que pareciam cobertas por relvas despontavam a nossa frente. Uma neblina pairava gentilmente sobre as montanhas.
É claro que as montanhas não estavam cobertas de relva. Arbustos bastante altos já haviam crescido naturalmente, mas ainda era cedo para as novas folhagens de maio. Nós conseguimos atravessar com facilidade por entre eles.
Os fetos-reais que pareciam bochechas envoltas em algodão e as samambaias que pareciam ter o cabelo preso à moda ocidental floresciam em profusão. Nada se compara ao contentamento de colher essas plantas pela raiz e colocá-las dentro do cesto.
Nós, ao nos afastarmos, chamávamos uns aos outros em voz alta, conversávamos e até mesmo cantávamos enquanto íamos do pé da montanha ao seu topo, do topo ao seu sopé até que conseguíssemos encher os cestos a ponto de não caber mais nada e, então, voltamos para casa.
Eu voltei para casa animada e com um sentimento de vitória.
“Vó, eu trouxe samambaias.”
Eu disse assim que cheguei em casa e, esperando algumas palavras de deleite de minha avó, colocava em sua frente o cesto pesado. No entanto, minha avó não se alegrou muito.
“Samambaias? Seu avô odeias samambaias”, ela disse sem nem mesmo pegar o que eu tinha trazido.
Eu senti um desapontamento.
“Ah, é? Então será que é melhor dá-las para meu tio?”
Mas minha avó também não pareceu se alegrar com isto. Apesar de viver na mesma casa, agora que o relacionamento entre pais e filhos não era dos melhores, até mesmo um ato tão mundano de gentileza como este era motivo de reprovação.
Minha avó disse:
“Não precisa dar para os donos da casa. Seria melhor levá-las para Motoei.”
Motoei era meu tio mais novo.
Ele era desde muito novo uma criança gentil e calma e, por isso, era o mais querido entre meus tios e parece mesmo que meus avós tinha a intenção de fazer dele o herdeiro da família se valendo do fato de meu tio mais velho não gostar do trabalho do campesinato, mas, quando fez doze ou treze anos, ele deu para dizer que queria virar monge e acabou indo servir como monge mirim e aprendiz de um monge que era, na época, o abade-chefe da Seita Renzai no Templo Erinji, que ficava na vila vizinha a uns quatro quilômetros dali, atualmente meu tio – que já era o novo abade chefe - estava no retiro do antigo abade-chefe localizado no Monastério de Retiro Bôgetsuan que ficava nos recintos do Templo Erinji.
No dia em que cheguei da Coreia, passei a noite no Bôgetsuan junto a Chiyo e, portanto, já conhecia de vista este tio. No dia seguinte, seguindo as diretrizes dadas por minha avó, fui até o Bôgetsuan para levar as samambaias.
Quando eu cheguei lá, encontrei meu tio vestido em um quimono preto sem padrões e com uma faixa pronta na cintura agachado na varanda da frente cuidando de um bonsai.
“Bom dia”, eu disse e ele, erguendo o rosto, respondeu-me: “mas vejam só, é você Fumi?! Bem-vinda”, levantou-se sorrindo. Então continuou: “sente-se, sente-se” e sentou-se primeiro na varanda exterior.
Eu coloquei as samambaias que havia colhido na frente de meu tio. Então contei que ontem eu tinha colhido essas samambaias com meus amigos e, como minha avó pediu para levá-las para ele eu, aproveitando para me distrair um pouco, as tinha trazido.
Meu tio agradeceu minha gentileza. Tirou, então, algumas samambaias do embrulho de pano e as examinou.
“E aí? Onde é melhor, na Coreia ou lá em casa?”, ele perguntou.
Como eu não queria tocar nos assuntos sobre a Coreia, eu só respondi que:
“Meio que a mesma coisa”, e então perguntei: “O tio não fica solitário aqui sozinho?”
“Não é que não seja solitário, mas aqui é mais confortável”, ele, sorrindo mais uma vez, me olhou.
Sem uma razão muito clara, eu acabei sentindo que meu tio era, dentre todas as pessoas que já havia encontrado, a mais refinada. Mas não conversamos sobre nada em especial e só fiquei andando por ali.
Diferente de uma casa campesina, o jardim estava esmeradamente limpo e plantas e pedras estavam todas refinadamente dispostas. Eu, é claro, não sabia muito bem como apreciar aquilo, mas, sem uma razão muito clara, pensei comigo: “que lugar legal”. Então eu, sem perceber, dei uma volta nas redondezas do Retiro e andei pelas adjacências dos recintos do Templo Erijin. Era um templo bastante grande. O jardim também era bastante espaçoso. Tinha árvores bem grandes também. Mas, acima de tudo, aquela tranquilidade era o que me fisgava.
Eu não pensava em nada naquele momento. Eu não era atormentada por nenhum ruído e não sentia nenhuma pressão sufocante. Senti como se, pela primeira vez, eu finalmente tivesse relaxado de verdade.
Quando voltei para o Bôgetsuan meu tio estava na cozinha e preparava algo. Ao olhar em sua direção, ele gritou da cozinha:
“Pode subir e dar uma olhada no jornal, Fumi. Eu estou fazendo uma comida para a gente aqui.”
E já estava para subir assim como ele havia dito. Mas, enquanto subia, eu vi que um cachorro se apressava em minha direção. Eu amo cachorros. Quando eu via um cachorro tinha mesmo a sensação de que algo especial me ligava a eles. Eu fui brincar com o cachorro.
“O tio que está criando este cachorro?”
“Isso mesmo.”
“Como ele se chama?”
“Esu.”
“Esu? Que nome estranho, Esu! Esu! Vem cá, Esu!”
Esu veio pulando até mim enquanto farejava e balançava o rabo e a cabeça. Eu saí para andar junto a Esu pelas extremidades dos campos de arroz no sopé da montanha.
Eu me lembrei do cachorro que criavam na casa da minha tia da Coreia. Me lembrei daquele cachorro que eles botavam para dormir do lado de fora naquelas noites de inverno tão frias da Coreia sem lhe dar um tapete velho que seja. Me lembrei daquele cachorro que vinha se aconchegar em mim com o rabo abanando e o pescoço pesando para baixo, como se compreendesse a tristeza e sofrimento que eu sentia ao ser jogada para fora de casa sem ter comido nada. Lembrei também de quando, nestes momentos, eu me agarrava a seu pescoço e o abraçava com força e chorava sentida e silenciosamente. Me recordei também de pela noite forrar, em segredo, sua cama com palha. E então eu me lembrei do pobre cachorro que meu pai matou a facadas quando eu ainda era pequena.
Durante o tempo em que estive na Coreia, eu sempre achei que estava ligada aos cães. Os cães, assim como eu, eram tiranizados; os cães, assim como eu, eram aterrorizados, eu sentia como se eles fossem meus mais miseráveis compatriotas.
Involuntariamente me abracei ao Esu.
“Você é feliz, Esu?”
Disse com voz baixa do fundo de meu coração.
Naquele momento, a voz de meu tio ressoou:
“Suba, Fumi. O almoço está pronto.”
Eu abracei calada o cachorro mais uma vez e subi.
As samambaias que tinha trazido, em algum momento, foram cozidas e adicionadas a alguns ovos. O arroz também estava quente. Então eu, em muito tempo, consegui comer uma deliciosa refeição.
Após o almoço, dois ou três monges mirins vieram do Templo Erinji para brincar. Todos eles eram três ou quatro anos mais velhos do que eu e eram ótimos companheiros de brincadeiras. Após conversarmos um pouco já éramos como velhos amigos.
Eu estava tão conversadeira com aqueles monges que, mais tarde, senti vergonha de mim mesma. Jogamos até mesmo cartas e tudo aquilo acabou assumindo meio que uma aura de Ano Novo.
Voltei para casa ao entardecer. Ao chegar lá, me deparei com minha mãe ajudando minha avó na sericultura enquanto, como de costume, reclamava da vida. “Mais uma vez isso”, eu pensei comigo mesma. Senti, então, ainda com mais profundidade, saudades daquela tarde de brincadeiras na casa de meu tio. Senti saudades daquele momento em que pude esquecer de tudo, pude me libertar de tudo, senti saudade da liberdade, da leveza e, acima de tudo, daquela força que brotou em meu âmago e fez todo meu sangue ferver.
Após aquele dia sempre que conseguia alguma folga, ia até a casa do meu tio para me divertir.
Rumo ao covil de tigres
Após algum familiar informar que eu tinha voltado para a casa de minha mãe, meu pai veio de Hamamatsu me visitar.
O mesmo pai que, quando eu ainda era pequena, havia abandonado esposa e filha. O mesmo pai, irmão de minha tia e filho de minha avó que viviam na Coreia e que tanto me maltrataram.
Eu não conseguia sentir simpatia alguma por meu pai. O que eu sentia, na realidade, era antipatia. Mas, no entanto, meu pai, que não me encontrava a tanto tempo, parecia sentir algum tipo de afeição por mim. Além disso, ele ainda parecia sentir uma autoridade paternal sobre mim mesmo naquela ocasião. Eu o encarei sentindo um quê de ridículo naquilo tudo.
Contudo, meu pai não ficou por muito tempo na casa de meu avô. Ao saber que meu tio vivia na vila vizinha, ordenou-me que o levasse até lá. Eu não tinha intenção de obedecer ao que meu pai dizia, mas como eu me divertiria indo até lá acabei levando meu pai junto.
Meu tio ficou bastante feliz com a visita de meu pai. Meu pai, por seu lado, também tratou meu tio com uma atitude bem diversa da que havia assumido diante de meu avô.
“Faz tanto tempo que a gente não se vê, não é mesmo? Mas olhe para você! Bem estabelecido e saudável. Agora você já é um grande intelectual, né?”, meu pai disse em um tom meio lisonjeiro, meio brincalhão.
Meu tio esboçou um sorriso tímido.
“Eu fiquei sob seus cuidados quando você ainda estava Okitsu, né? Eu tinha dezessete naquela época, já se passaram seis anos.”
“Isso, isso, foi na época de Okitsu, você foi até minha casa naquela época, né? Você era só uma criancinha, hein...”
“Mas eu era bem sério, né?”
Meu tio gargalhou ao dizer.
“Isso lá é verdade”, meu pai replicou no mesmo espírito.
Meu tio, naquela época a que se referiam, tinha desistido momentaneamente do monastério e tentava se tornar um marinheiro. Ele se hospedou na casa de meu pai até encontrar alguma oportunidade de trabalho.
Neste momento, creio que seja melhor registrar aqui um bocado da trajetória deste meu tio.
Como comentei anteriormente, quando meu tio tinha doze ou treze anos, começou a dizer que queria se tornar monge. A família Kaneko, que almejavam torná-lo o herdeiro, tentou com todas as forças dissuadi-lo da ideia, mas nada parecia quebrar a determinação de meu tio. Nisso, foi minha avó que primeiro cedeu e tomou o partido dele. Ela disse ao meu avô:
“Então, querido, se ele realmente está tão determinado a ir, que tal a gente fazer do jeito dele? Quando ele nasceu, ele não estava enrolado com a placenta sobre os ombros e caindo sob o peito como se fosse uma estola? Aquilo bem que pode ter sido um sinal indicando que o garoto terá sucesso como monge.”
Após minha avó dizer estas coisas meu avô ponderou por um tempo e, por fim, acabou de acordo com as colocações de minha avó.
“As coisas postas desse jeito, até que fazem sentido. De qualquer forma, seguindo este caminho ele terá uma vida bem mais cômoda do que a de um camponês.”
Meu tio se tornou monge mirim do Templo Erinji pouco depois daquilo. O Templo Erinji era famoso por alguma conexão com Takeda Shingen. Lá viviam muitos monges. Meu tio recebia o treinamento monástico ali enquanto frequentava a escola. Ele era muito querido pelo monge chefe de lá.
Contudo, não era como se os motivos que meu tio possuía por trás de sua vontade monástica fossem movidos por uma forte convicção religiosa. Como os outros monges daquele templo, ele só era movido por um pensamento superficial de que, ao se tornar monge, mesmo que levasse uma vida tranquila e despreocupada, não teria dificuldades para conseguir seu alimento diário.
Deste modo, quando fez seus dezesseis, dezessete anos e entrou na fase em que os desejos da carne começam a incomodar, começou a nutrir dúvidas acerca de sua vocação monástica.
A vida no monastério parecia, em sua superfície, bastante pacífica. Mas, para um jovem, somente a paz não tem valor algum, para um jovem, a paz de nada vale. A paz é algo que satisfaz aqueles que foram castrados. Os jovens saudáveis urgem por uma vida mais vigorosa. Eles urgem por uma vida em que consigam estirar livremente seus pés, mãos e desejos.
Era assim que meu tio pensava. Então sentiu uma insatisfação enorme em não poder satisfazer suas vontades enquanto estava preso à vida monástica.
Deste modo, finalmente tomou uma decisão. Ele rasgou sua túnica em pedacinho, jogou os restos para debaixo do quarto dos monges e fugiu do templo sem dar notícias para ninguém. Foi nesse período que ele foi até meu pai em Okitsu. Então, para sua sorte, ao ir até Yokohama encontrou uma oportunidade de emprego como marinheiro em um navio a vapor que ia para Kyûshû, no qual embarcou.
A vida ao mar era radicalmente diferente da vida com a qual ele, uma cria de camponeses do interior das montanhas de Kôshû, estava acostumado. Era um trabalho, se comparado com a vida pacífica que levava no monastério, muito mais puxado. Mas, em contrapartida, era exatamente a vida que a juventude de meu tio precisava para se desenvolver, uma vida cercada pelo infinito mar, pelo céu azul sem fim, pelas ondas, vento e ar, uma vida animada e licenciosa como as que os marinheiros levavam. Meu tio aproveitou essa vida agradável por pouco mais de um mês e, com o fim da viagem, voltou para Yokohama.
Quando desembarcou em Yokohama, foi capturado pelos seus familiares. Então o levaram a força para casa.
Você tem que pensar com cuidado em seu futuro. O que você espera alcançar sendo um marinheiro? Você não era o mais querido entre todos os discípulos do monge chefe? Esse monge chefe não ia se tornar o abade chefe do templo central em Quioto? A promoção do monge chefe não significa, justamente, a sua promoção? Agora é o momento mais importante para você sedimentar as bases do seu futuro através do monge chefe.
Meu tio ouviu essas opiniões e palpites dos seus familiares e do monge chefe do Templo Enkô. Sem outra saída, voltou para o templo.
Mas meu tio já não possuía a mesma inocência de antes. Ele só obedeceu ao que os outros lhe disseram e voltou para a vida monástica. Ele, por fim, foi junto ao seu mestre até Quioto. Lá ele terminou seus estudos básicos na Academia Hanazono.
Mas, nesse tempo, meu tio já era um monge depravado. Enquanto frequentava a Academia Hanazono, vivia atrás da filha de um comerciante de cigarros. Ao voltar para o Bôgetsuan em companhia de seu mestre convalescente, se tornou íntimo da Chiyo do Templo Enkô, ou melhor: ele se apaixonou por ela.
Quando eu voltei da Coreia e Chiyo foi me receber, nós nos hospedamos no Bôgetsuan onde meu tio estava. Nós três dormimos no quarto dos fundos. Como eu estava cansada dos dois dias e duas noites de viagem de trem dormi profundamente, mas naquela noite aqueles dois aproveitaram da ocasião para se divertirem a noite toda.
Todos no Templo Enkô e na vila, inclusive meus avós, sabiam do relacionamento entre meu tio e Chiyo. Mas nem mesmo o monge chefe do Templo Enkô, nem mesmo meus avós pareciam se incomodar com aquilo. Era como se, em segredo, eles se alegrassem calculando que estava bom assim.
Contudo, naquela época, eu não sabia dessas coisas sobre meu tio. E me aproximei dele somente com uma certa curiosidade.
Como meu tio sabia que meu pai era um grande amante de saquê, trouxe todos os tira-gosto e saquês que possuía. Enquanto serviam saquê um para o outro, conversavam sobre o passado, comentavam animados sobre alguns boatos acerca de familiares e os criticavam duramente, passaram, então, a conversar sobre a condição de meu tio e, por fim, falaram até mesmo sobre mim. Muito saquê tinha sido consumido. Meu pai, em um tom formal, disse:
“Falando na Fumiko... Sabe, Motoei, na realidade eu vim até aqui hoje também para falar acerca de uma questão com você, será que a gente não poderia ir para outro quarto?”, ele disse olhando meu tio nos olhos.
“Ah, é? Por mim tudo bem”, meu tio se levantou, “Por favor, por aqui...”, disse se dirigindo ao meu pai.
Os dois levantaram-se e seguiram, com as pernas bambas, até o outro quarto.
Era uma conversa que eu não podia escutar! Não só isso, eles certamente falavam sobre mim. Eu senti uma ansiedade e tive até mesmo laivos de uma rebeldia desnecessária. No entanto, permaneci somente ali, completamente sozinha e calada.
Os dois conversavam em voz baixa sobre algo e, quando a conversa finalmente pareceu chegar ao seu fim, quando davam sinais de que iriam sair do quarto, ouvi a voz de meu tio em seu costumeiro tom:
“Por mim está ótimo, se o senhor assim o quiser. Principalmente porque eu acho que será o melhor para a pessoa em questão”, meu tio disse enquanto regressava junto ao meu pai ao quarto onde eu me encontrava.
Os dois voltaram a beber em ótima disposição.
O que os dois conversaram naquele quarto? Eu não tentei escutar nada do que falavam. E os dois também não me disseram nada a respeito.
Meu pai, de repente, mudou o tópico da conversa e só me disse:
“Eu até hoje não fiz nada por você. Não é que eu não me importo com você, mas do jeito que eu estive até agora não tinha nada que eu pudesse ter feito. Mas agora eu tenho um pouco mais de folga. Atualmente eu sou bem conhecido em Hamamatsu. Então, meio que para pagar o que eu não fiz até agora, estava pensando em te levar para morar comigo. E então, o que você acha, Fumi?”
Eu não gostava de meu pai. Também não confiava nele. Ainda assim, era preferível ir para a cidade e me divertir do que ficar no interior na casa dos parentes de minha mãe e, portanto, decidi que iria com meu pai para Hamamatsu assim como ele havia sugerido.
Na noite em que cheguei na casa de meu pai em Hamamatsu, soube sobre o que ele e meu tio conversaram separadamente no quarto.
Como eu estava cansada da viagem de trem, fui dormir antes dos demais, ao acordar repentinamente de um sono profundo, escutei vozes de pessoas vindas do outro quarto. Ao escutar com mais atenção, percebi que meu pai e minha tia conversavam em seu leito e utilizavam a palavra “Fumiko” com certa frequência.
Ao perceber que falavam de mim meus nervos ficaram em alerta repentinamente. Levantei minha cabeça do travesseiro e tentei escutar a conversa com atenção.
Meu pai falava em voz baixa:
“... Motoei ainda não é, formalmente, o monge chefe daquele templo, mas, para alguém tão centrado quanto ele, sem sombras de dúvidas que isso não tarda em acontecer. ... Além disso, pelo que Motoei me disse, como aquele templo era, em princípio, um monastério de retiro para o abade chefe, ele não agrega nenhum paroquiano, mas, em troca disto, possui toda a propriedade que fica em seu recinto e só com o arrendamento das terras é possível viver muito confortavelmente...”
Quando escutei até aí, pensei: “mas que chatice”. E, então, quando ia colocar a cabeça sobre o travesseiro para voltar ao meu sono, escutei mais uma vez uma voz que dizia “Fumiko”. Voltei a prestar atenção na conversa.
“... De acordo com a esposa do abade, Fumiko, assim que chegou da Coreia, foi se hospedar na residência de Motoei junto a mocinha do Templo Enkô e tem ido com frequência se divertir por lá. Do meu ponto de vista, ela sem sombras de dúvidas está apaixonada por ele...”
Eu fui pega de surpresa por aquelas palavras. Sozinha no quarto, senti que meu rosto estava ficando quente e, ao mesmo tempo, tentei me perguntar “será que é isso mesmo...” “Sem chance”, eu neguei para mim mesma e voltei ao meu estado de espírito anterior.
Mas meu pai continuava falando:
“Então eu fui lá e, sem rodeios, fiz a oferta a Motoei. Falei com ele ‘e então, você não quer se casar com Fumiko?’ No que ele me respondeu, sem um pingo de hesitação, que aceitava sim... O povo vai comentar um pouco toda a situação, mas que falem!, se Fumiko conseguir ficar naquele templo como esposa dele, não terá nenhuma dificuldade por toda a vida com comida ou coisas do tipo e, mais importante, vai ser proveitoso até mesmo para nós...”
Ah!, meu pai estava planejando me casar com meu tio. Não, na realidade ele já havia firmado a promessa de meu casamento. Que situação mais terrível. Meu pai me vendeu para meu tio como se eu fosse uma escrava. Que sacrilégio meu pai estava cometendo! Não, não só meu pai, em que imundice dos diabos até mesmo meu tio que, se pouco, era um monge budista estava se enfiando? Ainda hoje sinto arrepios ao pensar sobre o assunto.
No entanto, quando, naquela época, eu escutei a conversa, coisa estranha, eu não senti nada. Não senti nem tristeza nem felicidade, não pensei que fosse algo bom ou algo ruim. Certamente a necessidade por outro sexo estava começando a brotar em minha vida. Contudo, eu ainda não estava pensando em me tornar noiva de ninguém. Isso não era sequer uma questão para mim. Sem fazer nenhum julgamento, sem sentir nada em especial, eu voltei a dormir.
No entanto, não importa o que digam, tudo isso deve ser considerado uma ignomínia inigualável. Não só para mim, mas para meu pai, meu tio e para toda a humanidade...
Eu não senti nada naquele momento. Não, depois daquilo eu me mantive insensível ao assunto ainda por um tempo. Mas eu definitivamente já não era uma criança. Tampouco poderia continuar na ignorância por muito mais tempo. Quando compreendi o verdadeiro significado daquilo tudo, ah!, como eu chorei e me enfureci!
Meu pai, pensando nas propriedades do Bôgetsuan e em como ele próprio acabaria botando suas mãos naquelas propriedades, planejava me vender para meu tio como se eu fosse somente mais um objeto. Meu tio, por sua vez, buscando satisfazer sua gula e desejos por carnes virgens, sim somente para satisfazer essa sua lesividade, planejava me comprar.
Acredito que a sordidez de meu pai já está bastante clara. Mas com base em que eu digo o que digo a respeito de meu tio? Não era nem preciso dizer que é por causa de ele estar disposto, imoral e depravado, a tomar como sua esposa a própria sobrinha, mas isso, contudo, não era tudo. Ele era um terrível e assustador maníaco sexual. Ao mesmo tempo em que era um monge que havia feito seus votos e negado toda a sordidez do mundo para viver no sacro e puro paraíso, era uma espécie de demônio esfomeado que, ociosamente, só vivia para correr atrás de carne.
Isto é, ao passo que ele, por um lado, estava tendo relações amorosas com Chiyo, por outro, estava pronto para me fazer seu novo brinquedinho. Porque ele, menos de um mês depois de ter feito a promessa com meu pai de se casar comigo, já estava atrás de uma outra mulher. Eu soube disso mais tarde de sua própria boca. Foi ele quem me disse. Sem sombras de dúvidas foi ele que disse:
“Foi uns quatorze ou quinze dias depois – isto é, depois que eu e meu pai fomos até sua casa – que aconteceu. Chiyo trouxe uma amiga dela que vive em Tóquio chamada Mizushima e se hospedaram aqui, aquela tal de Mizushima era uma mulher muito bela e graciosa. Era de uma beleza que Chiyo não chegava nem perto de ter. Eu fui com elas até a estação e, lá, ouvi de Mizushima que ela tinha uma irmã mais nova de uns dezesseis ou dezessete anos e, por muito pouco, pude me conter. Uns quatro ou cinco dias depois, dei uma escapadela do templo e fui até Sugamo, em Tóquio, atrás de Mizushima para dar uma olhada em sua irmã. Mas que surpresa! A irmã mais nova era uma menininha de pele escura, baixinha e bem feinha. Eu me senti um verdadeiro idiota...”
Eu ainda estava trocando cartas frequentes com meu tio quando ouvi esta história. Nossas cartas não eram, de forma alguma, cartas de amor. De minha parte, eu só estava escrevendo para satisfazer uma espécie de admiração sem forma ou conteúdo que sentia. No entanto, mesmo que não fosse nada de mais, nesta época eu definitivamente ainda não odiava meu tio. Além disso, não era como se, a partir desta história, eu tivesse sentido ciúmes ou algo do tipo.
Eu disse para ele:
“Mas porque você foi atrás da irmã mais nova? Se a Mizushima era realmente tão bela seria muito melhor amar a própria...”
Nisso, meu tio deu uma risada e, como se não fosse nada, disse:
“É que não era o que eu queria. Por mais que ela fosse bela ela já não era mais virgem...”
Sim, era isso, o que meu tio desejava naquela época era mulheres virgens. E, como eu mesma ainda era virgem, era obvio que foi só por este motivo que ele tinha feito aquela promessa fantasiosa e estúpida para o idiota do meu pai.
Meu pai morava em Shimotare, em Hamamatsu.
Sua casa ficava um pouco afastada da rua principal e era uma casinha aconchegante na qual provavelmente pagava uns vinte ienes de aluguel.
A casa estava equipada com os móveis básico, como um compartimento para comida, um braseiro alongado e uma cômoda. Portanto, de fato, meu pai atualmente estava levando uma vida muito mais confortável da que o pai que eu conheci a anos atrás levava. Minha tia, em uma conversa franca, me disse: “mas você sabe que seu pai é um incorrigível preguiçoso e, apesar de a gente aparentar estar bem agora, ainda passamos por algumas dificuldades”, de fato, isso lá também era verdade, mas, não importa o que se diga, a condição financeira deles agora era infinitamente melhor do que a de antigamente.
O emprego de meu pai, contudo, era, como de costume, uma charlatanice qualquer em qual, ao que tudo indica, ele era um repórter de um jornal de má fama que funcionava a base de extorsão. Então, temendo este jornal, todos da cidade, superficialmente, fingiam respeitar meu pai. Meu pai ocupava a posição de pessoa respeitável e que era mantida a distância.
O mais interessante era que meu pai ainda era o mesmo grande supersticioso de sempre e a prateleira que ficava na parede da sala-de-estar estava consagrada a deusa Inari e a Kôjin e todos os dias pela manhã ele ia até lá para fazer suas orações. Além disso, havia um nicho no quarto de oito tatames onde meu pai recebia convidados e, ali, ele tinha pendurado um pergaminho de parede escrito por algum monge famoso – meu pai julgava que, como esse monge ainda estava vivo, o pergaminho não tinha lá muito valor, mas, assim que ele morresse, ia valer um bom dinheiro – que trazia o seguinte dizer “Seja feita a Vossa vontade”. Este é outro exemplo da filosofia supersticiosa de meu pai, um devoto da “santa-sorte", que, mesmo naquela época, seguia intacta.
Em um pequeno estande de oferendas, em frente do pergaminho pendurado, uma longa e delgada caixa que trazia escrito “Genealogia da Família Saeki” descansava em segurança e, logo ao lado, tinha um vaso de flores velho que minha tia havia comprado num antiquário, mas que meu pai, com seu largo conhecimento no assunto, jurava que era um item muito valioso. Próximo ao nicho e encostado a porta corrediça de papel, em um canto estrategicamente visível para quem entrava em casa, estava disposta uma mesa devidamente empilhada com manuscritos, alguns envelopes, dois ou três livros de direito e um dicionário antigo de Inglês-Japonês, como se fosse um mostruário de uma loja noturna.
Dessa forma meu pai tentava, através das aparências, maquiar sua personalidade vulgar e sua cabeça oca.
Eu não gostava desta vida que meu pai levava. Por que meu pai tinha que viver em meio a tantas mentiras? Por que ele tinha tanta necessidade de apelar para as aparências? Ainda que meu pai seja uma pessoa madura em idade ele, invariavelmente, só possuía amigos preguiçosos e mandriões. Apesar de tudo isto, meu pai, em casa, vivia criticando a todos com ares afetados de moralista.
Por exemplo, quando minha tia estava fazendo alguma coisa na cozinha e eu estava no meu quarto lendo algo ele, de pronto, alardeava não para mim, mas para que minha tia escutasse coisas do tipo: “mas o que você está fazendo, Fumiko? Por acaso fazer com que só a mãe trabalhe enquanto a senhorita fica no bem bom é sua filosofia de vida?... Vá logo ajudar a mãe, anda!”, ele gritava. Quando minha tia não estava em casa, ele vinha e se sentava a minha frente com os olhos úmidos e dizia: “Fumiko, não é por seu mal que eu te xingo tanto. Eu não quero te fazer trabalhar que nem uma condenada. Mas o mundo não é assim tão fácil com as pessoas. Eu sou chato com você pelo seu próprio bem. E, mais importante, você não pode esquecer que entre você e a mãe só existe um relacionamento adotivo”, e era assim que ele justificava as coisas.
Quando via meu pai nestas situações eu, pelo contrário, tinha vontade de dizer “pobre pai!”. Isto é, por que eu tinha que tratar minha tia como se fosse minha madrasta e lhe devesse alguma obrigação? Meu pai fingia-se de inocente acerca de tudo que ele próprio havia feito e, assumindo ares de um altivo virtuoso, tentava impor a mim um forte senso de obrigação. Nesse sentido, minha tia era bastante consciente das coisas. Ela definitivamente não agia como se fosse minha madrasta por obrigação. Ela verdadeiramente me amava. Era por isso que, quando meu pai vinha me dar sermões desse tipo, eu contava tudo para minha tia e nós duas dávamos boas risadas.
Passados uns dez, vinte dias em que já me encontrava na casa de meu pai, comecei a perceber que a atmosfera daquela casa e a minha personalidade não batiam nem um pouco. Em outras palavras, eu fui entendendo pouco a pouco que eu não fazia parte daquela família.
Mas, dentre todas as coisas, o que mais me atormentava era a oração que acontecia todas as manhãs.
Na casa de meu pai, todas as manhãs antes do café, ele, minha tia e meu irmão iam sem falta até o nicho fazer uma devota oração para a caixa que trazia escrito “Genealogia da Família Saeki”.
Para alguém com as ideias que meu pai tinha, esse ato, sem sombras de dúvidas, era bastante razoável e sincero. Mas, ainda que ignorasse todo o resto, eu, desde meu nascimento, nunca, em nenhuma oportunidade sequer, usei o sobrenome Saeki, como exatamente, então, ele esperava que eu conseguisse louvar a genealogia daquela família?
Era extremamente doloroso para mim sentar-me em frente daquela Genealogia e ter que louvá-los. Meu pai, para piorar a situação, sempre estava muito empenhando em me viajar nestas ocasiões. Com uma reverencia dissimulada eu era obrigada a louvar aquela família. Eu cheguei em um ponto em que não podia mais aguentar aquilo. Então, é claro que meu estado de espírito acabou se refletindo em minhas atitudes. Meu pai certamente me achava a “criança indigna” mais falsa, impudente e arrogante que ele já conheceu.
Após ter vindo para Hamamatsu eu entrei no curso de costura de uma escola prática para mulheres da região. Meu pai tinha me colocado para aprender costura para que eu me tornasse uma boa esposa de monge no Bôgetsuan, já que meu tio alardeava que “o mais importante é que ela consiga costurar propriamente”. Mas, não importa o que me digam, eu não gostava de costura. Quer dizer, não é que eu não gostasse, mas é que nunca encontrei um bom professor que conseguisse me ensinar e, por conta disto, nunca consegui costurar adequadamente. Assim, quando fui para essa escola, todos pareciam ter vindo para 'polir' o que já sabiam, mas eu, que nada sabia, tinha que começar pelo bê-á-bá e os professores, como se aquilo fosse um estorvo, sequer vinha me dar algum auxílio.
Então, naturalmente, eu comecei a negligenciar a escola. Como não tinha outra escolha, eu ia para lá e ficava conversando o tempo todo enquanto vivia um dia de cada vez. É claro que meu pai não ficou muito feliz ao saber que eu não estava correspondendo as suas expectativas e eu, de minha parte, só ficava mais frustrada com tudo aquilo.
Em meados de setembro a escola entrou em recesso. Meu tio Motoei, com quem eu vinha trocando cartas frequentes, havia me dito que, assim que eu tivesse uma folga, fosse visitá-lo para nos divertir um pouco e, meio que aproveitando para dar uma fugida, voltei para Kôshû como se estivesse sendo impelida para lá.
Eu cheguei na estação de Enzan por volta das duas da tarde. Caia um pé d’agua bastante forte.
Nisto, como estava chovendo e eu ainda estava meio enjoada da viagem, me sentei no banco da sala de espera por cerca de trinta minutos esperando que o sol saísse e que minha tontura passasse. No entanto, a chuva não dava sinais de que iria parar de cair tão cedo e, após pensar um pouco no que seria mais prático, decidi que iria para a casa de minha mãe pegar um guarda-chuva emprestado.
A casa da minha mãe ficava para o lado de uma plantação a uns trezentos ou quatrocentos metros da estação. Saí da estação e fui passando por debaixo das árvores e dos telhados até chegar à casa de minha mãe. Mas eu me lembrei que publicamente, para todos os efeitos, minha mãe não tinha filhos e, então, não poderia ir visitá-la assim sem mais nem menos. Eu só poderia ficar ali esperando alguma oportunidade de ver minha mãe do lado de fora. Então, me escondi debaixo da cobertura de sua casa para observar a situação enquanto evitava a chuva. Escutei a vozes estridentes e alegres entremeadas entre conversas e risos de minha mãe e das crianças da casa que, provavelmente estavam tomando um chá ou algo do tipo. Mas minha mãe não apareceu mesmo depois de decorrido um certo tempo. Eu espiei para dentro da residência através de uma fenda na cobertura. Mas com aquela chuva toda, não conseguia entrever nem minha mãe nem ninguém que estava ali.
A chuva então ficou ainda pior. Ao passo que eu não podia entrar, naquele momento, eu também já não podia voltar por onde eu tinha vindo. Só me restava continuar ali de pé remoendo em meu âmago uma raiva muda. Nisso, um homem com um chapéu de bambu e calças amarradas acima do joelho saiu do campo de amoreiras carregando um balde de excrementos e estava para entrar dentro daquela casa.
“Desculpe, com licença...” Eu fui atrás do homem.
“É..., desculpe..., mas, mas a senhora da casa estaria?”, eu perguntei.
“Sim, ela está...” o homem respondeu, mas, aparentando estar um tanto suspeito, só me encarou e entrou na casa pelo portão de trás sem dizer mais nada.
Talvez aquele homem diga alguma coisa agora que entrou na casa. Pode ser, então, que alguém da casa saia para investigar a suspeita. Quando eu pensei em todo o trabalho que eu daria, acabei me sentindo mal. E, sem outra escolha, acabei voltando para a sala de espera da estação.
Não tinha me recuperado do enjoo da viagem e, para piorar, agora estava encharcada da cabeça aos pés pela chuva e, ao voltar para a estação, acabei me sentindo ainda mais desconfortável. Então, finalmente, acabei vomitando a mexerica que tinha comido no trem.
Eu me deitei de bruços sobre o banco e fiquei ali por um tempo. Alguém, um pouco depois, veio até mim e me chamou pelo nome. Eu levantei o rosto. Meu tio da família Komatsuya (o irmão mais novo do marido da irmã mais nova de minha tia que vivia em Hamamatsu) estava em pé ao meu lado.
“Fumiko, o que houve? Por acaso você teve enjoo da viagem? Está passando mal?”
“Sim, eu tive enjoo e logo depois acabei me molhando toda na chuva...”
“Isso não é bom. Espere um pouquinho aqui...”, antes mesmo de acabar de dizer isto aquele homem sumiu para algum lugar, mas voltou logo em seguida me trazendo uma jintan.
Eu não gostava muito de jintan, mas aceitei, agradeci este ato tão gentil e enfiei na boca logo sete ou oito balas de uma vez.
Este homem sentou-se do meu lado e fez massagem nas minhas costas e ombros. Após um tempo, já havia me recuperado bem. A chuva também parecia ter finalmente perdido a intensidade.
“Muito obrigada! Eu já estou bem melhor. Vamos voltar para casa?”
Eu disse e comecei a arrumar minhas coisas, no que ele retrucou:
“Você tá sem guarda-chuva, Fumiko?”, ele perguntou.
“Sim, anteriormente...” comecei e contei sem nenhuma reserva, afinal, julgava ser um parente, que tinha ido até a casa de minha mãe pegar um guarda-chuva emprestado, mas acabei não conseguindo entrar e, por fim, o perguntei: “minha mãe está sossegada estes tempos?”
“Uhum, pareceu que ela ultimamente tem se dado bem com o pessoal”, ele respondeu e me disse para o acompanhar e que iria conseguir um guarda-chuva emprestado na vizinhança.
Eu saí da sala de espera seguindo aquele homem. Ele andou por cerca de cem metros ao quebrar a esquerda na rua logo a frente da estação e entrou em uma loja que parecia um pequeno restaurante. Ele falou uma ou duas palavras com a senhora da loja e, logo em seguida, me chamou.
“Entre, entre por favor. Entre e descanse um pouco”, a senhora disse. O homem tirou os sapatos e entrou. Eu, como não podia fazer nada, também o segui subindo até o segundo andar.
Uma jovem com as mangas do quimono amarrada trouxe duas almofadas para sentar e um cinzeiro.
Por que raios ele está fazendo isto? Eu estava completamente confusa, como se tivesse sido enfeitiçada por uma raposa.
“Será que você não poderia pegar o guarda-chuva emprestado logo? Se eu não voltar rápido para casa o dia vai escurecer...”, eu aprecei aquele homem.
No entanto o homem estava completamente calmo e tinha começado a dar longas baforadas em seu cigarro.
“Não se preocupe, o guarda-chuva logo logo vai chegar, mas como eu pensei que você estaria com fome eu pedi um tempura para nós...”
“Não, eu não estou com fome, e meu estomago ainda está meio ruim...”
“Não importa, não importa, o dia ainda vai ser longo...”
Nisto, a jovem de antes apareceu mais uma vez trazendo duas tigelas de comida e as serviu para nós. Então desceu mais uma vez.
Eu realmente ainda não estava com o estômago muito bom. Então, deselegantemente, só comi um pouco de nada e, logo em seguida, parei e fiquei esperando o homem acabar de comer.
O homem finalmente terminou de comer e eu, que estava esperando até aquele momento, mais uma vez pressionei-o pelo guarda-chuva.
O homem, então, disse “entendi, entendi”, e, enquanto palitava os dentes, levantou-se para abrir a porta corrediça de papel atrás de mim e olhar para fora. E, meio que para ele mesmo, disse: “mas parece que para a nossa sorte a chuva já parou”.
Eu senti como se tivesse sido salva.
“A chuva parou? Que felicidade, deixa eu...”
Quando eu tentei me levantar para olhar para fora... Naquele momento!
Minha visão ficou turva e embasada.
Ah!, quão demoníaco ele poderia ser! Eu tentei me desvencilhar dele com todas as forças e, como um animal ferido por uma flecha, desci aquele íngreme e estreito jogo de escadas correndo desesperadamente.
Eu havia cometido um erro. Quando eu voltei da Coreia, minha avó me levou para a casa da minha tia mais nova que havia casado na família Komatsuya, eu pensei que este homem de agora era o irmão mais novo do marido de minha tia. Mas esse não era o caso, esse homem era somente alguém que eu tinha encontrado naquela ocasião quando fui tomar banho na casa de um vizinho dos Komatsuya.
Até o dia de hoje eu nunca havia verbalizado esta história para ninguém. Mas já não tem nenhuma necessidade de esconder o que aconteceu, já que muito em breve minha existência será apagada deste mundo. Eu preciso expor ao sol tudo que possa ter contribuído para exercer alguma influência em minha vida, em meus pensamentos e em minha personalidade. Mais do que como material para que os juízes olhem para meu caso, tudo isto se faz necessário para a elucidação de uma verdade muito maior.
O remoinho da sexualidade
Eu voltei para a casa dos parentes de minha mãe em Somaguchi. No entanto, do mesmo modo como a casa de meu pai já não era minha casa, aqui também já não era minha casa de verdade. Eu não passava de uma sem-teto que vivia de favor não importava aonde fosse. Além disso, a atmosfera beligerante entre os familiares me deixava ainda mais sufocada.
O único lugar em que eu conseguia respirar com mais facilidade era no templo de meu tio Motoei. Então, com o passar dos dias, eu tive a sensação de estar sendo impelida cada vez mais intensamente para o templo de meu tio por uma força que não compreendia bem. Eu passei a ficar no templo independente do horário, seja pela noite, seja pela tarde.
Desnecessário dizer, mas Chiyo também vinha com certa frequência até o templo de meu tio. Chiyo amava meu tio de todo o coração.
Contudo, mais ou menos naquela época, Chiyo recebeu uma proposta de casamento. Não diretamente, mas sim através de seu pai – que na verdade não era seu pai, mas sim seu irmão, cinquenta anos mais velho, mas não tem necessidade de explicar isto aqui – que a proposta foi feita.
Certo dia, Chiyo recebeu um inesperado telegrama que requisitava sua presença em uma cidade chamada Iwasa, cidade onde sua irmã mais nova vivia como mulher casada. Ela vestiu sua roupa mais formal e saiu apressada de casa. Mas, ao chegar lá, descobriu que, na realidade, não tinha acontecido nada demais. Parece que eles só queriam que ela comprasse alguns doces e servisse um convidado que tinha vindo de Tóquio. Eles também pediram para ela costurar, o mais rápido possível, um casaco com uma seda gazeada para homens que tinham por lá. Não preciso nem dizer que também a fizeram servir a refeição daquele convidado.
A Chiyo ficou por lá durante dois ou três dias e, então, voltou para casa. Pouco tempo depois daquilo, o convidado decidiu, junto à irmã mais nova e seu marido, pela proposta de casamento.
Chiyo já não podia fazer mais nada. Chiyo já tinha alguém a quem amava. Mas ela não tinha a permissão para escolher seu próprio marido. Chiyo foi vendida como uma escrava, como um utensílio.
Chiyo estava angustiada. Ela até mesmo perdeu alguns quilos de tanta aflição.
Ela contou sua situação para mim e para meu tio. Aconselhou-se conosco buscando alguma forma de recusar a oferta. Mas meu tio, que era a chave de toda a questão, já não tinha um amor tão forte por Chiyo como antigamente. Ele, naturalmente, também não nutria a mínima intenção de se casar com Chiyo. Ela já não tinha o frescor necessário para ser a esposa dele.
Meu tio não se comoveu nem um pouco mesmo após os apelos sinceros de Chiyo. Só se deu ao trabalho de dizer uma breve frase, como que por obrigação:
“É uma coisa triste. Não só para você. Eu também estou sofrendo.”
Foi o que ele disse. Mas, logo em seguida, ele acrescentou:
“Mas a gente não tem muita força. Não tem nada que a gente possa fazer. É o destino. No fim das contas o ser humano não consegue escapar do destino...”
Pobre Chiyo! Ela estava sendo empurrada, a despeito de sua própria vontade, a um homem que ela sequer conhecia. Chiyo já havia escolhido a pessoa que amaria. Ela veio até essa pessoa pedir por ajuda. Mas essa pessoa já estava muito distante de Chiyo. Ah!, para onde mais ela poderia ir atrás de ajuda?
Mas, no entanto, os dois, meu tio e Chiyo, mantiveram o relacionamento deles nos mesmos moldes de antigamente.
Meu tio com uma mulher que ele já havia abandonado.
Alegando ser coisa do destino, com uma mulher que ele já tinha dado para outro homem.
Chiyo com um homem que ela já sabia que a havia abandonado.
Imaginando seu novo companheiro, mas junto as ruinas de seu amor passado.
Como eu ficava por um longo tempo no templo de meu tio, os parentes começaram a se preocupar temendo que seu prestígio pudesse cair se os conhecidos dele ficassem sabendo de nosso relacionamento.
Então, enquanto todos tentavam nos afastar e procuravam alguém para ser sua companheira, o nome que acabou surgindo foi a de Yoshie, a segunda filha da família onde minha mãe agora estava casada.
Yoshie era bonita, habilidosa com as agulhas e, acima de tudo, vinha de boa família e a idade dela era exatamente a idade que meu tio desejava.
Meu tio, até aquele momento, ia com certa frequência até a casa da minha mãe para visitá-las. Então é claro que ele conhecia Yoshie. Não: por certo ele não só a conhecia como também era muito mais íntimo do que podíamos imaginar. Diz-se que uma das amigas da escola de Yoshie, que conheceu meu tio através dela, enviou-lhe uma carta de amor ou algo do tipo no que resultou em Yoshie e sua amiga cortando relações uma com a outra.
Mas minha avó não era a única a trazer propostas de casamentos para meu tio. Durante o tempo em que fiquei no templo de meu tio, um monge do interior de Nara, um conhecido do tempo em que esteve em Quioto, veio até ele para oferecer sua filha em casamento.
“A garota até que é bonita. Se ao menos ela vivesse em Quito, mas no interior de Nara...”, foi o que meu tio falou-me sobre o assunto naquela ocasião.
E não para por aí. Cartas de mulheres chegavam endereçadas ao meu tio com frequência. Quando estas cartas chegavam, meu tio, sem nem mesmo tentar escondê-las, as lia todas para mim.
Eu não sentia nem um pouco de ciúmes ou algo do tipo. No fim das contas, eu só pensava nele com um amigo. Mesmo assim, havia uma solidão em alguma parte do meu coração que não podia ser satisfeita, uma solidão de juventude que tinha sido despertada à força. Eu não sabia o que era, mas existia um desejo ardente de buscar por alguma coisa.
As férias de verão estavam terminando.
No dia 26 ou 27 de agosto, eu estava na Komatsuya. E lá, no início da tarde, minha avó veio ver minha tia com um recado.
Naquela noite, minha avó e eu estávamos acompanhadas por meu tio de Komatsuya para ver um filme na cidade.
O filme já havia começado. Minha avó e meu tio finalmente conseguiram sentar-se em um canto na parte de trás das arquibancadas, mas não havia lugar para que eu me sentasse. Nisso, decidi assistir de pé bem lá do fundo.
A primeira parte do drama ocidental tinha terminado. Quando me dei por mim, percebi que um jovem com um boné de estudante azul-escuro e com manchinhas estava bem do meu lado.
Olhei para o jovem por um momento e imediatamente voltei minha atenção para a tela do segundo ato. Depois de um tempo, o jovem de repente falou comigo.
“Desculpe-me, mas isto não é seu? Pensei ter sentido algo em minha perna, então tateei um pouco e isto aqui caiu.”
O jovem estava segurando com as pontas de seus dedos um pente de celuloide usado para prender o cabelo em carrapito. Passei a mão sobre minha cabeça, mas o pente não tinha caído.
“Não, não é meu não.”
“Ah, é? E agora...”, o jovem, murmurando para si mesmo, foi para a janela traseira e depositou o pente em sua soleira, mas voltou para o meu lado novamente.
“Qual foi o último ato?”, ele me perguntou familiarmente.
Eu senti certo incomodo e só respondi friamente “Eu também não sei ao certo, cheguei agora a pouco”. E olhei atentamente para a tela.
Mas o jovem não se importou com isto e continuo puxando conversa comigo insistentemente. Agora que já consigo dissecar meus próprios sentimentos, entendo que naquela época eu, muito provavelmente, já tinha entendido o objetivo daquele jovem. Mas eu não conseguia me livrar daquele garoto com a resolução que deveria. Isto é, naquela época, eu também estava sendo engolida por um remoinho de sentimentos e desejos que eu não entendia bem. Eu, então, finalmente, após duas ou três palavras, comecei a pensar naquele jovem como se ele fosse um amigo que eu já conhecia há muito tempo.
Enquanto estávamos nessa, o jovem repentina e ousadamente agarrou minha mão. Eu me assustei bastante, mas não tentei me desvencilhar ou qualquer coisa do tipo. Naquele momento, argumentava comigo mesmo que seria vergonhoso fazer uma cena no meio da multidão devido aquele acontecimento, mas, na realidade, eu sentia que seria uma pena muito grande me livrar daquela situação.
Fiquei ali parada enquanto segurava a mão daquele jovem. Então o jovem apertou minha mão mais uma vez, mas desta vez me fez segurar algum tipo de papel duro e quadrado. Eu aceitei aquilo calada. E, em segredo, guardei o papel no bolso de meu peito.
Eu não podia esperar para descobrir de que raios se tratava aquele papel. Assim, no caminho de casa, sob as luzes brilhantes da saída, tirei suavemente do bolso e olhei para ele.
Era um pequeno cartão de visita um tanto afeminado, florido e com bordas douradas, com o nome do jovem, Segawa, e seu endereço escrito.
Com o fim das férias de verão eu voltei mais uma vez para Hamamatsu. Voltei com a sensação de ter deixado algo ainda inacabado para trás.
Já era noite. Todos da casa pareciam ter saído e a porta da entrada estava fechada. Mas eu sabia como me virar nestas horas e enfiando a mão por debaixo da cerca do jardim consegui abrir a porta de madeira e entrar em casa passando bem ao lado da bacia de lavar as mãos que ficava nas imediações da latrina.
Como estava quente, eu primeiro abri a porta. Então despi meu quimono que estava molhado de suor. Como, por não ter comido nada no trem, eu também estava com fome, fui até a cozinha e abri a porta do armário procurando por comida, enquanto comia sozinha o que tinha restado, escutei vindo da entrada o som de um geta para dias secos. Minha tia voltava para casa.
“Ah, você voltou, Fumiko? Eu fiquei preocupada por um momento por ter encontrado a casa aberta.”
“Eu cheguei agora mesmo..., como eu estava com fome, peguei esse peixe para comer, tudo bem?”
“Claro, sem problemas... E como estão todos lá em Kôshû?”
“Estão todos bem... Aonde a tia tinha ido?”
“Essa noite teve uma feira lá no templo de Akiba. Como estava quente e a gente não tinha nenhum outro compromisso, fomos até lá.”
“Ah, é? Meu pai e o Taka-chan também?”
“Aqueles dois deram uma passadinha na casa de Ishibashi. Mas como eu não queria ir nessas condições acabei voltando para casa na frente.”
Enquanto conversávamos minha tia trocou de roupa e vestiu um quimono de verão lavado e engomado, ela se sentou em frente ao braseiro alongado e, enquanto começava a mexer nas brasas, falou: “vou fazer um chá, tá bem, Fumi?”.
Enquanto isso eu arrumava e lavava os utensílios que tinha usado para comer. Então, finalmente, me sentei com folga. Minha tia, como se repentinamente tivesse recordado algo, disse: “Deixa eu te mostrar uma coisa incrível, Fumiko”, e foi pegar um embrulho de papel que estava em cima da cômoda, “comprei hoje”, ela abriu o embrulho e me mostrou.
Dois anéis de ouro encravados saíram de dentro do embrulho.
Eu fiquei surpresa. Eu realmente tinha ficado muito surpresa.
“Céus, por acaso vocês ficaram ricos e eu não estou sabendo?”
“Quê? Não é ouro não, Fumi”, minha tia disse com um sorriso no canto dos lábios.
“Os dois me custaram cinquenta centavos, sabe. Se eu usar eles todos os dias eles vão descascar, mas se eu os usar só quando estiver montada eu vou enganar todo mundo, não vou?”
Minha tia parecia estar experimentando os anéis, um em cada dedo anelar, para ver se realmente pareciam ouro, como se estivesse tentando se convencer.
“Mesmo que seja falsificado não é de todo ruim, em, sabe aqueles óculos e relógio de seu pai?, então, eles também são falsos, mas, mesmo depois de dois anos, eles ainda não mudaram de cor, né?”, ela acrescentou.
Ah!, minha tia tinha sido finalmente infectada por meu pai. Mal tinha chegado em casa e já estava me sentindo desconfortável ao pensar em porque esse pessoal é assim tão exibicionistinha.
Fiquei triste que as diferenças que me separavam da família de meu pai estivessem se tornando cada vez mais evidentes. Um desejo de viver minha vida própria, e não esta, começava, naturalmente, a tomar conta de mim.
Eu escrevi uma carta para o Segawa, que eu havia encontrado no dia do filme, uns quatro ou cinco dias depois disso. Eu não sabia bem o que escrever e, nisso, eu tentei lembrar das cartas de mulheres que meu tio recebia e as imitei letra por letra, enfiei a carta em um envelope, escrevi o nome de um homem como remetente e a envie.
A resposta chegou bem rápido. Veio em um envelope meio roseado com um nome de garota como remetente, o conteúdo estava cheio de frases escritas em um inglês bastante suspeito.
Eu tinha que voltar a frequentar a escola. Mas eu não conseguia costurar de jeito nenhum, as matérias eram todas meio estúpidas e, nisso, eu fui ficando cada vez mais aversa àquela escola.
Desta maneira, meio que por desespero, durante o tempo que precisava estar na escola, comecei a intencionalmente bater boca com os professores e, em casa, passava o tempo todo lendo qualquer livro que caia em minhas mãos. Mas os livros na casa de meu pai eram somente livros de histórias, eu já estava cansada daquilo tudo, tudo soava bem estúpido, mas como meu pai não me dava nenhum dinheiro eu também não podia comprar livros novos de modo que as coisas começaram a ficar cada vez mais insuportáveis.
Bem nessa época, pedi para meu pai me deixar ir para Tóquio. Mas, claro, ele não deu sua autorização.
“Não seja idiota, por acaso você está esquecendo que é uma mulher?”, ele ralhava comigo. E então começava mais um de seus sermões provindos de sua filosofia de alta estirpe.
“Você realmente acha que eu posso, assim tão despreocupadamente, jogar uma jovem mulher em Tóquio? Não seja idiota! O mundo lá fora não é tão fácil assim como você pensa não, sabe, deixa que eu te explique com todas as letras, a sociedade vai te julgar até mesmo se um homem só te perguntar o caminho. Quando uma mulher é alvo deste tipo de boato, é o fim para ela. É algo que deixa bastante marcas. Não só isso, você não é uma daquelas solitárias que podem voar à vontade para qualquer lugar, afinal, sou eu que estou tomando conta de você e minha responsabilidade não permite que eu deixe você fazer isso”
Meu pai havia esquecido tudo que ele tinha feito. Mas eu também sabia que o que meu pai decidisse por sua conta, era o que seria no fim do dia, quer eu queira ou não.
Contudo, até quando eu precisaria viver sob o julgo da tirania de meu pai? Será que realmente tenho que me confinar sob tal ditadura em que eu era até mesmo proibida de ir ouvir as palestras ocasionais porque não tinha nada para ler?
Minha alma jovem desejava se desenvolver. Ela não podia ficar sem este desenvolvimento.
Finalmente eu decidi que iria largar a escola. Então, sem falar nada com o professor ou meu pai, eu simplesmente sai daquela insuportável escola.
É claro que meu pai ficou possesso de raiva. Eu, no entanto, não mais obedeceria a meu pai. Não: eu não me dobraria mais a tirania de meu pai. Eu precisava me proteger com minhas próprias mãos. Então voltei mais uma vez para a terra natal de minha mãe.
Meus avos, entretanto, não me davam mais autorização para ir até o templo de meu tio. Me levaram para morar com os Komatsuya e me fizeram mais uma vez frequentar um cursinho de costura.
Eu estava sendo enfiada em outro inferno após ter fugido do anterior. Eu já não tinha forças para fugir dali também. Eu ainda não era um ser humano pleno. Não tinha o dinheiro necessário para seguir o caminho que gostaria de seguir. Eu precisava suportar estar presa a uma vida que não era a minha.
Ao ser colocada nestas condições, devo ser criticada por ter caído em desespero? Sem dúvidas que sim, eu preciso ser criticada. Estava com minhas próprias mãos maculando a minha vida. Mas, no entanto, eu estou, no mínimo, disposta a tolerar estas máculas. Ninguém me entendia, ninguém simpatizava comigo, e foi por isso que tive vontade de cuidar de mim mesma.
Ao cair em desespero, já não fazia mais nada dentro de casa. Eu não tomava conta das crianças e nem mesmo me dava o trabalho de sequer lavar as vasilhas que sujava comendo. Eu já não tinha coragem de adentrar em minha própria cabeça com mais profundidade para pensar nas coisas.
Segawa era do quarto ano, mas ele saiu ou foi tirado da escola, de todo modo, agora que eu tinha vindo para os Komatsuya, ele já tinha ido para Tóquio e estava estudando em uma escola de contabilidade. Nós continuamos trocando cartas. Mas, ao mesmo tempo, eu continuava a visitar meu tio na medida do possível. Eu guardava as cartas que recebia de Segawa em minha mala que ficava dentro de um armário no templo de meu tio.
O casamento de Chiyo ainda demorava a acontecer. Ela, nesse meio tempo, continuava visitando meu tio como de costume. Em certa feita, fui ao templo enquanto Chiyo estava lá com meu tio.
Chiyo, naquela ocasião, tinha levado uma amiga com ela. Quando o sol se pôs trazendo a noite e terminávamos de comer, Chiyo ainda passava o tempo ociosamente dobrando e experimentando seu hakama. Eu compreendi o seu humor e, como sempre faço, a instei a ficar.
“Chiyo, já está tarde, né, por que você não dorme aqui hoje? Se você for dormir aqui eu durmo também...”
Era evidente que Chiyo queria proceder desta forma, mas como estava junto a sua amiga, ficou relutante. Mas sua amiga também a incentivou:
“Se a Fumiko estiver junto de você o pessoal do Templo Enkô não vai pensar nada de mais, né? Por que você não fica aqui esta noite?”, ela, junto a mim, sugeriu mais uma vez que Chiyo passasse a noite.
Chiyo, no entanto, disse: “mas vai ser solitário para você voltar só, não vai?” se sentindo hesitante, mas a amiga, enquanto trazia uma leve insatisfação no rosto, respondeu: “não, está tudo bem!”, e então partiu.
Eu já não conseguia dormir profundamente como na noite em que havia voltado da Coreia. Mas, apesar disso, eu me compadecia por Chiyo.
Depois daquilo, meu tio enviou para Chiyo como presente de despedida um anel com uma pérola encravada que ela desejava a muito tempo. Esse se tornou o símbolo de que o relacionamento entre os dois tinha sido cortado para sempre.
Por volta de novembro, o casamento de Chiyo finalmente ficou decidido. A cerimônia ocorreria em Tóquio e, sob o pretexto de, se pouco, algumas pessoas se despedirem dela, realizaram uma pequena festa no Templo Enkô em que foi servido cavala ao sal, nabo, barbana e outros legumes e vegetais cozidos. Todos se reuniram com o rosto radiante para comemorar a boaventura de Chiyo.
As pessoas do vilarejo que estavam ajudando na preparação do banquete trabalhavam como se estivessem muito atarefadas. Mas o rosto de Chiyo, a convidada de honra, estava sombrio.
“Olha, eu nunca vi uma noiva tão sem graça e cabisbaixa assim. Mesmo que a gente esteja em um templo, se for para ficar assim, a coisa toda vai ficar com cara é de velório”
O monge chefe do Templo Enkô murmurou para Chiyo, mas ela parecia imperturbável. Mas, a bem da verdade, se isso tudo não fosse realmente o velório de Chiyo, o que mais poderia ser?
Naquela noite, Chiyo se levantou escondida e escreveu sua última e longa carta, sua carta de despedidas eternas para meio tio. No dia seguinte, quando eu fui até o Templo Enkô, Chiyo me levou até um quarto escuro ao lado do pavilhão principal e me disse: “Fumi, leve isso, por favor”, e me entregou aquela carta.
Chiyo chorava copiosamente. E naquele momento ela estava vertendo lágrimas incontroláveis mais uma vez. Senti pena de Chiyo. Nós nos abraçamos com força e choramos juntas.
Mas, ainda naquele dia, Chiyo passou pó branco no rosto inchado de choro, se vestiu e foi levada por quatro ou cinco conhecidos para fora da vila e se tornou uma mulher casada.
Chiyo, após mais ou menos meio mês depois de ter se casado, enviou uma carta para meu tio. Ele abriu o envelope despreocupadamente e, após ler tudo em uma passada de olho, disse: “Ts!, fazendo hora com a cara dos outros”, mas não aparentava estar nem irritado nem triste, e, somente com um sorriso fraco no canto dos lábios, jogou a carta na minha frente.
Eu já não me lembro as palavras exatas daquela carta. Mas continha os escritos de alguns registros de seu dia-a-dia, contava que na casa tinha empregadas, estudantes-auxiliares, enfermeiras, que tinha muitos doentes e que, por isso, a condição financeira ia bem e que todos a chamava de “Madame”.
Chiyo havia esquecido por completo toda a agonia que tinha passado até meio mês atrás e, agora, parecia estar aproveitando ao máximo sua nova vida.
Por volta do final do ano, no dia 28 ou 29, Segawa voltou para casa alegando ter terminado o curso intensivo de contabilidade.
A casa de Segawa ficava a uns trezentos metros da casa dos Komatsuya. A gente se encontrava com frequência. Entretanto, não importava o quanto eu estava irresponsável, ainda tinha que ir as aulas de agulha e ajudar em casa durante o dia para que o Segawa não pudesse vir me visitar abertamente. Assim, à noite, ele sempre vinha até porta de vidro da loja dos Komatsuya e me sinalizava assobiando ou tremeluzindo seu cigarro na escuridão. Eu, então, inventava alguma desculpa e saia de casa. Às vezes eu saia de casa após avisar o pessoal, mas na maior parte do tempo eu simplesmente escapava sorrateiramente pelo portão traseiro.
As noites de inverno eram tão frias que até mesmo a respiração congelava. Mas para nós, que tínhamos sangue jovem em nossas veias, isso não importava nem um pouco. Andávamos pela cidade escura envoltos em um mesmo manto ou íamos vagar pelos recintos de algum templo próximo dali. Às vezes nós íamos até o amplo e escuro pavilhão central do templo e, lá dentro, nos beijávamos e abraçávamos.
Assim, durante cerca de meio mês, quase todas as noites, eu saía de casa às escondidas e vagueava com a Segawa até as duas ou três horas.
Apesar desta vida desregrada, eu ainda não havia abandonado meus verdadeiros desejos e propósitos.
Meus verdadeiros desejos! Meus verdadeiros objetivos!
Isto é, ler muitos livros, aprender muitas coisas e fazer com que minha própria alma se expandisse o máximo que pudesse. Entretanto, eu era pobre. Eu não podia frequentar a escola por muito tempo como os filhos e filhas de gente rica, ganhando bastante dinheiro, faziam. O que então eu deveria fazer? Após refletir bastante no assunto, eu pensei em ir para a cidade e frequentar uma escola para formação de professoras, me tornar professora de alguma escola e, assim, conseguir minha independência financeira para, então, poder estudar as matérias que eu gosto no ritmo que eu quisesse. Isto é, seu eu fosse para uma escola de formação de professora poderia estudar com subsídio do governo e iria precisar de bem pouco dinheiro dos meus familiares.
Após chegar nesta conclusão, pedi ajuda ao meu tio que acordou comigo que cobriria o restante do montante para meus estudos. Então, só por conta disto é que eu me preparei com todas as minhas energias para a prova de admissão. Embora as noites fora com Segawa interferissem um pouco em meus estudos, eu fui capaz de aproveitar ao máximo os outros horários para me dedicar e consegui estudar seriamente.
O período para as provas de admissão de diversas escolas estava bem próximo. Nisso, encomendei o livro de regras das escolas e aprontei os formulários de inscrições.
Eu fui até meu tio com aqueles formulários. Mas meu tio me recebeu com uma expressão bem diferente da costumeira. Eu, no entanto, não prestei atenção a isso. Julguei que ele só deveria estar se sentindo sozinho porque Chiyo tinha partido.
Eu, de todo modo, contei o que tinha vindo fazer e elaborei meu pedido.
“Então, eu escrevi os formulários de aplicação e os trouxe hoje, o tio poderia carimbar?”
“Formulário de aplicação!”, ele disse para mim com um ar bastante taciturno. “Ah, claro, o formulário de aplicação para a escola de professores, né? Eu tenho que pensar no assunto e, portanto, gostaria de postergar a decisão. E, na minha opinião, Fumi, você deveria voltar para junto de seu pai em Hamamatsu”
“Mas porquê?”, eu, completamente confusa pelas inesperadas palavras de meu tio, perguntei.
“Não tem nada para saber sobre o assunto”, meu tio disse mostrando um sorriso, mas logo em seguida sua feição voltou a ficar ainda mais tensa e taciturna e ele disse: “você vai entender tudo logo, por hoje pode voltar para casa. Eu estou um pouco ocupado...”
Ah!, como eu fiquei decepcionada! De começo eu pensei que meu tio não estava falando sério. Mas eu não consegui duvidar de suas palavras ditas assim tão claramente, não se tratava de uma piada nem tampouco de uma ameaça. Eu só desejava uma forma para sobreviver no mundo! Será que até mesmo isto seria tirado de mim naquele momento? Eu já não conseguia sequer derramar mais lágrimas.
Eu voltei relutante para a casa dos Komatsuya, mas – o que teria acontecido, no que será que meu tio estava pensando – eu ficava pensando nas coisas e não consegui pregar o olho durante toda a noite.
No dia seguinte, meu tio veio a casa dos Komatsuya acompanhado de minha avó de Somaguchi. Ele, então, comprou duas passagens para Hamamatsu e me colocou junto a minha avó no trem.
“O que aconteceu, vó?”, eu experimentei perguntar para minha avó quando estávamos dentro do trem. Mas ela não me disse nada.
“Eu também não sei o que aconteceu. Mas Motoei disse que virá daqui uns dois, três dias e nesse momento certamente a gente vai entender”
Eu, no entanto, não acreditava que minha avó não sabia de nada.
“Então porque a senhora veio comigo?”
“Não tem um porque não. Só vim porque Motoei me pediu para que assim o fizesse. Eu também queria encontrar com Takano, então aproveitei...”
Eu não perguntei mais nada a minha avó. Eu só sentia como se algum perigo muito grande estivesse à espreita para me subjugar.
Nós chegamos à casa de meu pai. Como eu saí de casa depois de ter brigado com ele, se eu tivesse vindo sozinha ele provavelmente iria reclamar de algo e não me deixaria entrar, mas como eu estava com minha avó ele não disse nada. Além disso, a alegria com que minha tia recebia minha avó não dava espaço para tanto.
Meu coração estava sombrio. Eu não queria conversar nem com meu pai, nem com minha avó e nem com minha tia. Eu só queria ficar só. Ficar só para pensar sozinha. E, na realidade, eu realmente fui para o quarto vizinho para ler jornal e pensar um pouco por conta própria.
Minha avó não parece ter dito nada sobre mim. Ela só disse o que já havia dito na minha frente: que meu tio viria daqui uns dias.
Meu tio finalmente chegou. Mas ele não me dirigiu a palavra. Não, ele não falou nem com meu pai nem com minha tia em minha presença.
Meu pai e meu tio estavam bebendo saque. Minha avó estava ao lado deles. Eu estava sozinha em outro quarto. Meu tio conversava em voz baixa sobre alguma coisa com meu pai. Eu tentei me concentrar para conseguir escutar a conversa, mas nada chegou até mim. Eu só conseguia escutar meu pai que, às vezes, gritar furioso: “aquela idiota!”, “traga ela aqui”, nessas horas meu tio o contia. Mas, a partir de algumas palavras entrecortadas que chegaram até mim eu pude ter uma ideia do teor da conversa. Quando eu entendi sobre o que tudo aquilo se tratava eu só consegui pensar:
“Mas o que? Eles estão pensando que eu sou idiota!”. Eu estava tomada por uma violenta rebeldia. Tive vontade de ir eu mesma até onde meu pai e meu tio estavam e explodir na frente deles.
Mas eu me contive. O que aconteceu já não interessa mais, o importante é o que está por vir, eu pensava comigo mesma.
Finda a conversa, meu tio, sem passar a noite, foi embora ainda no mesmo dia.
Eu acompanhei meu tio até a porta. Meu tio me disse:
“Seu pai vai te falar os detalhes mais tarde, escute-o bem”
Eu avistei meu pai. Meu pai me fitou com o rosto inflado de raiva. Era como se ele estivesse pronto para me chutar dali naquele exato momento.
Após eu ter acompanhado meu tio até a porta e sem nem mesmo ter me levantado do tatame da recepção ainda, meu pai, como se não pudesse mais se conter:
“Essa animal! Essa puta!”, ele gritou enchendo sua voz de ira e repentinamente me chutando na região dos ombros.
Pega desprevenida, caí ali de lado e gemendo de dor. Eu cheguei mesmo a pensar se o osso do meu ombro não havia quebrado. Sem coragem de me levantar, só fiquei ali jogada.
Meu pai continuou:
“Você teve muita coragem para fazer o que fez, não é? Você teve muita coragem de jogar lama em minha reputação, né? Você só voltou da Coreia para fazer isso... É claro, claro que foi isso! Bem, vá lá, faça como bem entender...”
Quando recuperei minha presença de espírito, estava tão irritada que descarreguei minha raiva sobre meu pai:
“O que? Mas o que exatamente eu fiz?”
Nisso, meu pai retrucou:
“Como é que é? Coloque a mão na consciência e pergunte a você mesmo o que diabos você fez, tá me entendendo, ou não? Se não entendeu fale logo que eu te faço entender rapidinho”, ele disse e me chutou mais uma vez, mas agora nas pernas.
“O que você está fazendo? Para com isso! Para com isso, por favor...”, minha tia disse enquanto vinha correndo da cozinha até onde nos encontrávamos, ela segurou o braço de meu pai e jogou seu corpo por cima do meu.
“Que que você pensa que tá fazendo? Por que você tá protegendo essa aí? Sai da frente, anda, sai da frente”, meu pai gritou para minha tia. Mas minha tia, como uma rocha, não se movia nem um milímetro.
“Já chega, já é o suficiente. Eu cuido de tudo daqui para frente...”, minha avó disse, tremendo de medo, enquanto tentava acalmar meu pai.
“Faça o que quiserem! Eu não quero mais saber disso. Faça o que quiserem”
Meu pai cuspiu essas últimas frases e voltou para o quarto em que estava anteriormente.
Quando ele já tinha saído dali, minha tia, após se levantar, me ergueu. Ela dobrou minhas mangas para ver meu braço e apalpou meus ombros.
“Está tudo bem? Não se machucou em nenhum lugar? Seu pai é tão violento que eu nem sei”
“Está tudo bem. Não foi nada demais”, eu respondi agitando um pouco meu braço que havia sido chutado.
Minha tia me levou até um quarto em que meu pai não estava. Minha avó veio junto conosco.
“Takano, cadê meu saquê?”, meu pai gritou.
Minha tia foi resmungando até o quarto em que meu pai estava. Minha avó e eu guardamos silêncio e mergulhamos em pensamentos. Devemos ter passado nisso cerca de meia hora. Meu pai saiu para a cidade com a cara vermelha de tão bêbado.
Minha tia voltou mais uma vez até onde nos encontrávamos e se sentou. Eu, então, finalmente perguntei para minha tia:
“O que meu tio falou sobre mim?”
“Não se preocupe com isso, seu pai é quem estava errado desde o início”, minha tia disse enquanto corria o olhar de mim para a minha avó. “Foi ele quem decidiu por conta própria tentar casar tio e sobrinha, coisa que não se deve fazer, por puro interesse nas propriedades do templo de Motoei. É mais do que obvio que isso não daria certo. Ai quando não dá certo ele fica irritado desta forma, mas a culpa é exatamente de quem está irritado, né”
“Como assim não deu certo?”, mesmo eu já tendo uma ideia do que tinha ocorrido, perguntei para tentar entender as coisas com mais clareza.
“Basicamente o que aconteceu foi que Motoei veio desfazer a promessa de casamento, sabe”, minha tia disse em tom de escárnio para com toda a situação e continuou: “Ele veio até aqui e começou uma lenga-lenga de como você estava trocando cartas com um marginalzinho, de como você estava saindo para se divertir a noite, de como você era joãozinho”, ela disse resumindo os acontecimentos, como se estivesse com pena de mim.
“Ah!, então foi isso. Ele devia refletir também um pouco mais nas próprias ações”, eu disse apenas isso e voltei a me calar.
Eu já tinha tudo bem esclarecido. Não tinha mais necessidade de perguntar nem de falar nada.
Eu fui educada em como uma vida sexual sem pudor funciona desde meus quatro ou cinco anos. Eu sou aquela que foi atraída para um despertar sexual não natural. Meu pai e meu tio pensavam que eu, aos dezesseis, dezessete anos de idade, era culpada de algo sério por ter sido atraída por um poder misterioso que eu não entendia bem e por isso ter saído a procura de algo? No entanto, eu tinha ganas de dizer que eles deviam, isto sim, refletir um pouco nas coisas que eles próprios faziam.
Por eu ter feito as mesmas coisas que meu pai e meu tio fazem, não: por eu ter feito um milésimo das coisas que ambos faziam foi que meu tio, após me usar como um brinquedinho, e meu pai, após me tratar como uma ferramenta, pisaram em mim, me chutaram e, por fim, me descartaram como uma sandalha velha.
Aqueles dois realmente não têm nenhuma responsabilidade no ocorrido? Um deles, sem levar em conta se eu realmente serviria para a vida monástica, queria me transformar em um brinquedinho, o outro, me usando como meios para construir sua própria válvula de segurança, escolheu meu marido e decidiu que eu iria me casar, e tudo isso, vale lembrar, sem que eu tenha sido sequer consultada.
Meu pai realmente acredita que ele não tem um pingo de culpa ou responsabilidade em tudo que aconteceu? Ele abandona a mulher e a filha ainda criança, após dez anos aparece do nada e, alardeando uma autoridade parental, decidi sozinho que iria me vender como um objeto que se tornaria a esposa em templo minúsculo para no fim, quando as coisas não deram certo, vir me chamar de animal.
Eu não tinha mais necessidade alguma de me defender. Eu já não queria ouvir mais nada.
“É melhor assim, sabe. Tanto para você quando para Motoei, é melhor assim. A gente há muito tempo esperava que isto acontecesse, mas seguíamos indefesos. É a coisa certa a fazer”, minha avó disse e nem mesmo pareceu dar mostras de me recriminar pelo ocorrido.
-- Ah!, pobre avó! Meu tio só trouxe a senhora junto como válvula de segurança. Ele sabia que a senhora era contra em nos juntar. Ele só te trouxe para ter alguém ao seu lado se, por algum acaso, meu pai se opusesse a quebra de promessa que ele vinha apresentar. Mas a senhora não precisou intervir. Meu pai é irritadiço e tudo acabou como a senhora viu, com ele me chutando e pisando. A senhora não precisa se preocupar. Minha avó, eu já decidi para onde eu vou após tudo isto...
Em meu íntimo, disse isso para mim mesma. Mas nada saiu de minha boca.
Um período de transformação me esperava, um período de mudança que transformaria completamente minha vida.
Mesmo após tudo isso ter acontecido, não fui expulsa da casa de meu pai. Eu, por meu lado, também não possuía qualquer perspectiva para o futuro e, por isso, também não podia abandonar a sua casa. Nisso, nós – isto é, eu e meu pai – tínhamos que conviver na mesma casa sem que, no entanto, pudéssemos nos reconciliar de maneira alguma.
Entretanto, em muito pouco tempo, o momento da explosão chegou. O momento em que eu e meu pai nos separaríamos para sempre.
O fim de nossa convivência começou por meio de um insignificante bate-boca acerca de Taka.
Eu ainda não falei nada sobre meu irmão mais novo. Portanto, aproveitando a oportunidade, vou escrever um pouco sobre Taka aqui.
Quando minha mãe e meu pai se separaram, como já registrei anteriormente, ficou decidido que eu seria criada por minha mãe e Taka por meu pai, meu pai levou meu irmão quando ele tinha três anos de idade.
Taka foi separado dos braços de minha mãe. Mas, no lugar de minha mãe, minha tia esperava para cuidar de Taka na casa de meu pai. Parece que ele também foi criado em meios a muitos sofrimentos, mas, de qualquer forma, minha tia cuidou muito bem dele e, ao que tudo indica, ele não precisou passar pelas mesmas privações que eu passei.
Ela amava Taka sobremaneira. “Eu tenho certa obrigação para com minha irmã. O mínimo que poderia fazer era cuidar e amar aquela criança da forma que me fosse possível”, minha tia sempre dizia, mas, aos meus olhos, o relacionado que os dois tinham não podia se resumir a um gélido laço formado por uma obrigação para com alguém. Mas não importa qual era o caso, minha tia era gentil e carinhosa com Taka. Ela o educou como seu próprio filho, com um amor genuíno e ilimitado.
Por conta disto, quando Taka completou a idade necessária para poder frequentar a escola, minha tia, sabendo que por ele não ter um registro de nascimento não poderia frequentar a escola, em uma oposição ferrenha ao meu pai foi lá e registrou o menino como filho bastardo seu e conseguiu que ele entrasse na escola sem maiores problemas.
No entanto, quanto à filosofia de ensino com que Taka tinha sido criado, ele não foi muito afortunado por ter tido como modelo a forma deturpada de pensar de meu pai. Taka, diferente de mim, tem o corpo grande, mas é muito quieto e de tão tímido ele sequer consegue conversar com estranhos. Na escola ele era bom em escrita e desenho, mas era ruim em matemática e matérias afins. Mas não era só em matemática, ele, de maneira geral, não era lá muito brilhante. Nisso, minha tia, cansada de sua vida pobre e preocupada com a possibilidade de não poder continuar arcando com os estudos dele, quis transformar Taka em um comerciante. Mas meu pai, sem levar em conta a personalidade de Taka, sem pensar na própria condição financeira, queria porque queria que Taka fosse para a faculdade estudar Direito e virasse um extraordinário e famoso doutor. – Para meu pai as pessoas que sabiam Direito eram as pessoas mais respeitáveis do mundo e todas as outras não passavam de medíocres e inferiores.
Era com esses planos que a filosofia de ensino de meu pai se desenhava. Então, ao tentar, à força, fazer com que Taka, que não levava jeito para os estudos, estudasse com mais afinco, às vezes sentava o menino a sua frente e o fazia ler e resolver questões de matemática, mas quando Taka, naqueles momentos, não conseguia ler ou resolver as questões, meu pai o escorraçava do alto de sua postura e batia em sua cabeça enquanto o chamava de burro. E por conta disso, ele acabou fazendo aquela pequena criança perder toda sua confiança e se atrofiar, impedindo-o de fazer o progresso que precisava fazer.
Além de tudo isso, ele o obrigava a sentar-se diante daquela "Genealogia da Família Saeki" e adorá-la, infundindo-lhe as ideias antiquadas da época dos sistemas de clãs aristocráticos e sobrecarregava-o com um fardo que ele não podia suportar, proibindo o menino de desonrar as 123 gerações do Grande Ministro Fujiwara, Senhor de sei lá o quê.
Meu pai assim ensinava Taka:
“Foi graças a eu ter nascido numa família destas que até hoje, mesmo tendo caído na mais profunda pobreza, não me lembro de ter enganado ninguém. Para falar tudo de uma vez, apesar de haver gente mais rica que eu aqui em Hamamatsu, todos eles se referem a mim como “Senhor Saeki, Senhor Saeki” e me tratam como se eu fosse de uma estirpe superior. Isso tudo é graças a nossa Genealogia. Você não deve menosprezar seus ancestrais”
Deste modo, para aquele jovem que aceitava tudo que os outros lhe falavam, em pouco tempo já estava infectado pela ideologia de meu pai e se acostumara bastante a pensar como ele.
Há muito tempo eu já achava aquilo tudo ridículo. Mas, eu também sempre vi com olhos críticos a forma como meu pai tratava Taka e, a bem da verdade, também já tinha falado abertamente contra a situação. Esse também foi um dos motivos que agravaram a nossas diferenças.
Como meu pai queria mandar Taka para a faculdade para que ele se tornasse um jurista e, se possível, um Ministro da Justiça ou Primeiro-Ministro, inicialmente ele precisava fazer com que Taka continuasse seus estudos. Bem na época em que eu queria entrar na escola de formação de professores, Taka havia prestado o exame de admissão para uma escola de ensino médio municipal e tinha obtido a aprovação.
Meu pai não podia se conter de tanta felicidade.
“Grande garoto! É assim que se faz!...”, meu pai, como se tivesse subido aos céus, elogiava Taka.
“Como esperado de um filho meu! Agora é só manter o foco! No ocidente até mesmo pessoas de 22, 23 anos já viraram juristas”
Meu pai, em sua euforia, mandou minha tia preparar arroz-vermelho e celebrou o início da longa jornada que aguardaria Taka. É claro, se alegrando, bebeu mais saque do que o habitual. Também ocorreu o tão conhecido sermão em frente aquela caixa que contia a Genealogia. Taka também, com a testa pregada no chão, se juntou ao meu pai em sua devoção pia.
No dia seguinte, meu pai penhorou até mesmo alguns quimonos para conseguir arrecadar o dinheiro necessário para comprar tudo que Taka precisava para começar os estudos, os dois saíram para a cidade logo em seguida.
Após uma semana os sapatos que haviam mandado fazer chegaram. Meu pai pegou aquele sapato em suas mãos e, enquanto o examinava com cuidado, disse para Taka:
“Como você sabe, Taka, na loja tinha dois sapatos, um de oito ienes e um de vinte, mas esse aqui é o de vinte, sabe, para a gente ostentar”
Taka, muito animado, foi para escola calçando aqueles sapatos. Mas, assim que voltou um pouco depois do almoço, ele disse:
“O senhor mentiu para mim, né, pai?”, se dirigindo, bastante insatisfeito e irritado, ao meu pai.
“O que você quer dizer com isto?”
“O que eu quero dizer é que ao ir para a escola eu percebi que meu sapato não é dos melhores mais sim dos mais baratos”
Meu pai um tanto desconfortável e com um sorriso amargo no rosto, respondeu:
“Não, seu pai nunca mente. Seu sapato é sim o de vinte ienes”
Mas Taka não pareia ter se convencido.
“Mas o do Umeda e do Suzuki eram o de oito ienes e eram idênticos ao meu. Também tinha alguns meninos calçados com o de doze ienes, eles eram muito mais bem acabados e o couro também era muito melhor”
Meu pai, para disfarçar a sua vergonha, limpou a garganta e respondeu com afetada calma:
“Não... Não importa o quão pobre seu pai seja, ele nunca faria algo para te envergonhar. Eu realmente paguei vinte ienes no seu sapato”
Taka ainda não tinha acreditado nas palavras de meu pai, mas, como não poderia fazer mais nada, foi para seu quarto. Após tirar a mochila das costas, se dirigiu em voz baixa para minha tia que fazia alguns trabalhos com agulha e para mim que também estava por ali:
“Mãe, mana, meu pai falou aquilo, mas meu sapato é o de oito ienes, não é?”
A realidade era exatamente como Taka dizia.
Meu pai, por hábito, olhava as coisas tendo como parâmetro seu valor em dinheiro. Antes de comprar qualquer coisa primeiro ele perguntava o preço e, após isto, ele decidia se a coisa era boa ou ruim. Quando ele comprava algo sozinho, não contava o valor real do produto nem para sua esposa ou filho, ele, a depender da ocasião, tirava vinte, trinta porcento ou dobrava, triplicava o valor real.
Eu carregava uma antipatia desde sempre por essa característica desprezível de meu pai. Naquela ocasião, também não pude deixar de me sentir irritada.
Eu falei em voz alta para que meu pai também ouvisse:
“Não existe ninguém mais exibido do que o pai, sabe. Alguém que mente até mesmo para a família dizendo que comprou um sapato de vinte ienes apesar de só ser capaz de comprar o de oito... Me pergunto por que, ao invés de contar esse tipo de mentira sem sentido, ele não te ensinou que ser ou não alguém ilustre vai muito mais além de calçar um bom sapato...”
Nisso, meu pai se levantou de pronto e me derrubou mais uma vez com um chute.
“Cala sua boca. Como você ousa falar algo tão desrespeitoso para seu pai? Eu não posso deixar em minha casa uma filha tão ingrata quanto você! Suma daqui, vamos, suma daqui agora mesmo! Não foi após você ter chegado que as coisas aqui em casa começaram a ficar essa zona? Antes de você chegar, minha casa era extremamente pacífica. E, ainda assim, que arrogância! Por acaso eu lá posso suportar ter você por aqui perturbando minha família? Suma daqui, suma daqui agora, vamos, suma!...”
Taka estava estarrecido e perdido no meio daquilo.
“Deixe disse, querido. Não é certo dizer coisas tão horríveis”, minha tia, assim que possível, interrompeu meu pai.
Mas meu pai não aceitou aquilo. Quanto mais minha tia o interrompia mais ele aumentava sua ira contra mim.
“É mais do que natural que tenham te expulsado da Coreia. Não foi culpa deles, a culpa foi inteiramente sua. Atrevida, teimosa e perturbada... Quem é que ia querer tomar conta de você? É mais do que lógico terem te mandado embora. Veja só, se até eu, que sou seu pai, me cansei de você... De qualquer modo, eu não posso aceitar uma filha tão ingrata quanto você em casa. Principalmente porque você não serve de exemplo para seu irmão. Vamos, suma daqui, suma daqui agora!”
Meu pai já havia me catado pelos cabelos da nuca. Ele me arrastava pelo quarto enquanto babava de ódio. Minha tia, agarrada em seu braço, dizia: “Pare com isso, querido, pare com isso, por favor!”, e tentava impedi-lo enquanto chorava. Ela, então, conseguiu conter a situação por um momento.
Ainda assim, meu pai tinha dito a verdade quando falou que “a casa tinha entrado em desarmonia depois que você chegou”. Como eu registrei até agora, eu e meu pai não conseguíamos nos dar bem não importa o que façamos. Nossas opiniões também não batiam. Principalmente após o incidente com meu tio, nós nos tornamos realmente dois inimigos. Acabamos em uma condição em que a briga entre esses dois corações incompatíveis não cessaria sem que um de nós estivesse caído e derrotado. Eu sabia muito bem disso. Eu decidi que sairia da casa de meu pai. Eu só estava aguardando aquele momento. Então o momento finalmente chegou.
Adeus, meu pai!
“Se você sair de casa agora os parentes vão achar que a gente te expulsou após te maltratar, então, por favor, tente aguentar só mais um pouco”, minha tia me impediu de partir com este pedido.
Mas eu não podia mais aguentar aquilo. Eu havia decidido partir para Tóquio. Tinha decidido ir para Tóquio e estudar com meu próprio esforço e dinheiro. Todavia, para assim proceder, precisaria me preparar.
Eu certamente não conseguiria fazer nada assim que chegasse a Tóquio. Quando chegasse lá, não teria folga para me preocupar com vestimentas e coisas do tipo. Foi pensando nisso que, enquanto o tempo passava, eu costurava minhas roupas e as lavava com afinco.
Quando o jornal chegava a primeira coisa que fazia era olhar a coluna de empregos, recortar e guardar em minha mala propagandas de escolas de inglês e matemática.
Ainda assim, o que eu poderia fazer em Tóquio? Tentaria ir para algum lugar pedir auxílio? Eu não tinha ideia alguma quanto a isto tudo.
Quando a intensa raiva que meu pai sentiu por mim naquele momento passou ele, claro, já não me odiava tanto assim. No entanto, ele não teve a mínima gentileza de se voluntariar para fazer algo a respeito. Mesmo que tivesse, ele não teria podido fazer nada a respeito.
Não importa o quanto eu pensava no assunto, eu não conseguia elaborar nenhum plano para a coisa toda. Eu sabia que não tinha outro caminho a não ser dar a cara a tapa. Em todo caso, eu só precisava ir e ver no que dava. No dia anterior a minha partida eu disse, resolvida, para meu pai. Não com o intuito de pedir um conselho, mas sim de informar uma decisão:
“Eu vou para Tóquio amanhã”
Nem meu pai nem minha tia puderam me impedir neste momento. Na manhã seguinte eu saí sozinha da casa de meu pai.
Tinha por volta de dez ienes no bolso contando com a taxa do trem.
Não tinha móvel algum, como tampouco possuía um futon. Meu pai não providenciou para mim sequer um guarda-chuva. Finalmente eu teria que, com minhas próprias forças, me proteger de tudo que me atacasse, me proteger da chuva, do vento e do frio. Contudo, eu não temia nada disto. Minha carne estava completamente extasiada.
Eu joguei fora minha casa ficcional almejando encontrar a vida que eu buscava que, eu acreditava, tinha de existir em algum lugar.
Era a primavera de meus dezessete anos.
Adeus, meu pai! Adeus, minha tia!, meu irmão!, minha avó!, meu tio!, adeus a todos aqueles com quem eu tive algum relacionamento até hoje, adeus! É agora o derradeiro momento de nossas separações.
Ruma à Tóquio
À Tóquio! À Tóquio!
Não há, para aqueles que aspiram a fazer uma vida para si mesmos, tentação mais forte do que Tóquio, principalmente para aqueles que desejam se tornar alguém através dos estudos. Não preciso nem mencionar que este é o caso dos jovens meninos e meninas que têm uma enorme riqueza familiar e podem se dar ao luxo de receber grandes quantias para os gastos escolares. Mas até mesmo para aqueles que se encontram nas profundezas da extrema pobreza e não têm dinheiro suficiente nem para a viagem, como é também o meu caso, são atraídos para Tóquio, para Tóquio!
A vida em Tóquio realmente é assim tão desejável e ideal? Eu não fazia ideia. Mas para uma jovem garota que ainda nada sabia, Tóquio parecia ser um paraíso na terra que poderia lhe oferecer tudo que desejasse.
À Tóquio! À Tóquio!
Ah!, tão sonhada Tóquio, você poderia me fornecer a verdadeira vida que eu tanto almejava? Eu acreditava que sim. Acreditava que você poderia me dar o que eu desejava. Não importa o quanto eu tenha que sofrer, por quantas provações eu tenha que passar, você não deixaria de me dar aquilo que eu desejava.
Eu fui infeliz desde o momento que cheguei ao mundo. Eu fui maltratada sem cessar seja em Yokohama, seja em Yamanashi, seja na Coreia, seja em Hamamatsu. Eu não podia ser quem eu era de fato. Mas, naquele momento, eu era grata a todas estas coisas do meu passado. Eu era grata ao meu pai, a minha mãe, a meus avós, a meus tios e tias, não: eu era grata a todo esse destino que não me permitiu nascer em uma família abastada e que em todos os lugares, em todas as esferas de minha vida me fez sofrer o máximo possível. Pois se eu tivesse sido criada na casa de meu pai, de meus avós, de meus tios e tias sem qualquer dificuldade, provavelmente teria aceitado, assim como se apresentava, o pensamento, o caráter e a vida daquelas pessoas que eu tanto detestava e desprezava e não teria finalmente me encontrado. Foi graças ao pouco caso do destino para comigo que eu pode encontrar meu eu. E eu já tinha dezessete anos.
Já tinha chegado à idade em que conseguiria minha independência. Sim, agora eu precisava desbravar os caminhos para minha própria vida, precisava criar os meus próprios caminhos. E era Tóquio que assumia verdadeiramente o papel de ser o vasto, selvagem e não-cultivado campo onde eu deveria construir minha vida.
À Tóquio! À Tóquio!
A casa do meu tio-avô
Eu finalmente havia chegado a Tóquio. Assim que cheguei, fui direto visitar meu tio-avô que vivia em Minowa.
Não era como se eu tivesse enviado uma carta com antecedência informando-o e solicitando algo. Eu, a bem da verdade, nunca tinha trocado uma carta sequer com ele desde que havia nascido. Mas eu estava crente. Se eu for até lá, certamente me acolherá. Ele certamente me acomodaria por um curto tempo até que eu conseguisse me estabelecer e estudar autonomamente, ele não iria se recusar em me receber por este pequeno espaço de tempo. E, de fato, eu fui acolhida amistosamente por meu tio-avô a quem eu tinha ido fazer aquele pedido tão inesperado.
Mas é evidente que eu não recebi nenhum apoio ou assistência da família de meu tio-avô em meus objetivos. Todas as noites, depois de uns copos de saques, meu tio-avô me sentava ao seu lado e me dava sermões enfadonhos.
“Escute bem, Fumi, você deve pensar nas coisas com cuidado. Apesar de você querer muito estudar agora, você tem que ter em mente que, após todos esses estudos árduos e de você ter se tornado uma professora, seu salário vai ser por volta de cinquenta ou sessenta ienes mensais. Como você pretende viver com isso? Enquanto você for sozinha, deve ser o suficiente. Mas não dá para ficar sozinha para sempre, você em algum momento vai precisar se casar com alguém. Assim que se casar, terá filhos. Quando você estiver grávida, não é lá muito apresentável ir para a escola com uma barriga enorme. No fim, você não poderá comprar sua própria comida com esse trabalho. É por isso que eu penso assim. Acho que seria mais proveitoso para você ficar aqui em casa o tempo todo, aprender a lidar com a máquina de costura e se casar com um comerciante honesto. Não importa o que digam, o que move o mundo hoje em dia é somente o dinheiro. Você não vai conseguir viver com esses estudos superficiais, sabe”
Eu entendo o que meu tio-avô sentia ao dizer essas coisas. E a como, naturalmente, ele pensava nas coisas e, portanto, eu era grata de coração por suas palavras. É claro que se, após ele ter me falado essas coisas, logo em seguida eu pedisse para ele: “então, por favor, me ajude a conseguir fazer isto”, ele provavelmente me pediria para ser sua empregada doméstica por um tempo, mas, de qualquer forma, se eu falasse que eu estava disposta a fazer como ele dizia, tenho por certo que meu tio-avô tomaria conta de mim de bom grado.
No entanto, eu já estava cansada de ser um estorvo nas casas dos outros. Até aquele momento eu já tinha sofrido indiscriminadamente exatamente por fazer isto. Meu desejo era me tornar independente e cuidar eu mesma de minha vida. Este desejo inelutável vinha do meu âmago e eu nada podia fazer quanto a isto. Eu não podia, portanto, seguir os gentis conselhos de meu tio-avô. Portanto, foi da seguinte maneira que eu o respondi:
“Eu agradeço, tio. Mas para uma mulher como eu é simplesmente impossível que me torne a esposa de um comerciante...”
Mas meu tio-avô não parecia satisfeito com meu argumento.
“Enquanto se é jovem, qualquer um pensa desse jeito. Os jovens só pensam em realizar seus sonhos. De qualquer forma, só quero que você pense nas coisas com cuidado”
Ele dizia estas coisas e me dava sermões sobre as mesmas questões repetidas vezes, noite após noite. Finalmente, não aguentando mais eu disse:
“Por favor, deixe que eu faça as coisas do meu jeito. Eu vim para Tóquio com uma determinação bem estabelecida...”
“Ah, é?”, meu tio disse com um traço de mal humor. “Se este é o caso, faça como bem entender. Mas eu não posso tomar conta de você”
“Sim, eu compreendo. Eu não vim até aqui para depender do senhor. Eu estou atrás de formas para que eu mesma possa pagar meus estudos”
“Hmm! Bem, faça como bem desejar”
Assim, finalmente pude ir à cidade em busca de uma saída para conseguir bancar meus estudos, para desbravar meu próprio destino.
Contudo, havia uma razão para meu tio tentar tão obstinadamente me impedir de fazer as coisas do meu jeito. Isto é, era um conselho que ele dava baseada em sua própria experiência de vida, no seu próprio sucesso – seu pequeno sucesso – que permitia-o, naturalmente, pensar dessa maneira.
Meu tio era o terceiro filho de meu avô e, quando ainda era jovem, foi dado como filho adotivo para um familiar que vivia na vila vizinha e que administrava um pequeno bar. Mas ele não se sentia satisfeito na vila e, junto a família, veio para Tóquio. No princípio, ele também tentou seguir o caminho dos estudos, mas como a coisa toda não foi como esperado, ele, movido por algo que eu não sei bem, começou um negócio em que vendia roupas de segunda mão.
Não era que meu tio possuísse algo que pudéssemos chamar de talento mercantil. No entanto, depois de incontáveis fracassos, ele tinha se tornado um parcimonioso perfeito. Além disso, também havia se tornado um precavido de mão cheia. E graças a isso, após alguns anos, ele aparentemente acumulou dinheiro suficiente para comer e se vestir sem dificuldades, e, então, pouco a pouco, passo a passo, alcançou a posição que ocupa hoje.
Mas, em meio a tudo isso, ele também foi ajudado pelas forças misteriosas da “sorte”.
Após meu tio-avô conseguir juntar um tanto de dinheiro, a atitude de sua esposa começou a se desvirtuar. Então, parte porque tinha que preservar sua honra como homem, parte porque aquilo estava interferindo nos gastos de casa, ele cortou os laços com sua esposa apesar de já terem três filhos juntos. Logo em seguida, se casou novamente. A nova esposa era, no entanto, uma pessoa muito séria e hábil na condução dos assuntos domésticos, de modo que a vida da família de meu tio-avô prosperou cada vez mais e melhor.
No momento em que eu cheguei em sua casa, o filho mais velho da família tinha saído de casa e estava administrando uma loja de roupas ocidentais em Nihonzutsumi e vivia junto a sua mãe biológica. As duas crianças mais novas foram criadas pela madrasta que cultivava por eles um amor maternal verdadeiro tendo como resulto a grande afeição das crianças a ela, mesmo quando a mãe biológica aparecia esporadicamente, as crianças a chamavam de tia, “mãe” era como chamavam, afetuosamente, a madrasta.
Entre as duas crianças, a mais velha era uma menina e a mais nova um menino. No entanto, como o filho mais novo ainda era muito jovem, o herdeiro da família era o marido de Hanae, a filha mais velha. O genro não perdia em nada para meu tio-avô quanto a parcimônia e a casa prosperava cada vez mais.
A propósito, a história do genro da família era interessante. Eu ouvi essa história da própria noiva, Hanae, então, por certo, não era mentira.
Hanae me contou o seguinte...
-- Naquela época eu tinha por volta de sua idade, eu contava, então, por volta de dezessete anos. Tinha terminado a escola e estava frequentando a loja de vestidos para treinar minhas habilidades com agulha, mas, em um certo dia – provavelmente era meado de outono – quando, como de costume, eu voltava para casa para o almoço, minha mãe me falou para eu tirar a tarde de folga das aulas de costura porque tinha um compromisso pela tarde... Nisso, ao fazer como ela havia pedido, chegou um cabelereiro falando que iria fazer meu cabelo. Eu achei aquilo meio estranho, mas eu me sentei em frente ao espelho como me falaram, e então o cabelereiro tirou minha fita vermelha que prendia meu coque e refez todo o cabelo em estilo tradicional.
‘Porque você arrumou assim meu cabelo?’, eu perguntei para ele, em que o cabelereiro só respondeu: ‘porque sua mãe assim o pediu...’, sem acrescentar mais nadinha. Mas eu ainda não estava achando tudo tão suspeito assim, pensei que talvez ela quisesse que eu a acompanhasse em alguma peça ou algo do tipo...
Mas, oh céus, como eu era criança na época. Eu, então, percebi que minha casa estava mais arrumada do que de costume e que todos pareciam muito atarefados. Quando me dei conta disto chegaram peixes filetados da peixaria ao lado, doces e sopas para cerca de dez pessoas e uns quatro ou cinco parentes também já estavam em casa. Mas que raios estaria acontecendo, pensei comigo mesma, e, por fim, perguntei a minha mãe:
“O que está acontecendo, mãe?”, no que ela respondeu:
“Essa noite vai acontecer seu casamento, vá se aprontar logo” e, imediatamente, ela trouxe um quimono formal com o brasão da família, que havia sido feito sem que eu ficasse sabendo de nada, e uma faixa de cintura fazendo com que eu os vestisse.
Naquele momento, fiquei tão chocada com aquilo tudo que pensei mesmo que tinha caído em alguma traquinagem de raposa e nada daquilo era real.
Mas não havia o que ser feito. Eu vesti meu quimono como meus pais mandaram e fui levada até a sala de tatames no segundo andar. Ao chegar lá, o que eu encontrei? Bem, o homem com quem meu pai conversava naquela tarde estava sentado com um quimono formal bem ali. Meus pais se sentaram ao nosso lado. Trocamos três copos de saque como manda a tradição e, em seguida, todos estavam nos felicitando.
Que tal? Não é uma história gozada? Foi assim que a gente se casou. Além disso, o noivo era sobrinho de minha mãe. E é assim que eu, até hoje, não sei bem nem o que é o amor. Que coisa mais enfadonha, né, Fumi?....
Isso não tinha acontecido somente para a noiva, Hanae. O noivo, Gen, também tinha passado pela mesma situação. Gen era um alfaiate bastante habilidoso de roupas ocidentais e trabalhou por bastante tempo em Nagasaki, mas, ao ser chamado repentinamente por seus pais, voltou para casa e, em menos de três dias, já estava casado com Hanae.
Em resumo, aqui também podemos ver um caso em que os pais dos noivos não pensam nem um pouco em como eles vão se sentir com tudo isto e só têm em mente os benefícios próprios.
Mas, como esperado de alguém a quem meu tio-avô demostrou afeição, mesmo após o casamento, Gen se mostrou um homem bastante honesto e econômico. Ele administrava a loja de roupas usadas da família ao mesmo tempo em que tinha começado um negócio de roupas ocidentais que, na época em que fui para lá, já contava com três ou quatro funcionários. O objetivo de Gen era, antes de chegar aos trinta anos, fazer uma fortuna para si de uns dez ou vinte mil ienes.
Esta era a casa de meu tio-avô. Portanto, é evidente que ele não estaria de acordo com minhas ambições de seguir um caminho através dos estudos.
A vendedora de jornais
Enquanto permanecia vivendo de favor na casa de meu tio-avô, encontrei um meio para me sustentar. Tudo aconteceu por volta de um mês depois de eu ter chegado em Tóquio.
Enquanto eu vagava pela cidade em busca de algum caminho possível que me permitisse bancar meus próprios estudos, eu vi, por acaso, um panfleto colado em um poste de luz que dizia: "Venham bravos guerreiros do conhecimento – Venham para a Keisetsusha”. Era a mim, saída do interior, a quem aquele panfleto chamava. Me senti como se houvesse tirado a sorte grande. Venham bravos guerreiros do conhecimento! Eu repeti comigo mesma. Tinha, em especial, gostado do nome Keisetsusha. Eu fui de imediato até lá.
A Keisetsusha ficava no fundo de uma rua estreita em Ueno-machi próximo a Ueno-hirokôji. Ao chegar lá, percebi que o local funcionava como uma distribuidora de jornais e tinha uma placa pendurada escrito: “Loja de Jornais Shirahata”.
A porta de vidro da entrada da loja estava fechada e só avistei lá dentro um jovem rapaz, aparentando investigar algo no livro de notas, escorado em uma das duas mesas que estavam dispostas naquele espaço de terra batida com cerca de nove metros quadrados.
“Com licença”, disse, um tanto nervosa, para o jovem enquanto abria a porta de vidro.
O jovem desviou os olhos do livro de notas e me lançou um olhar pouco amistoso.
“Então, eu vim pela oferta de trabalho, será que o dono está por aqui?”
“Vai saber”, o jovem entrou nos quartos dos fundos após inclinar um pouco a cabeça. E então, finalmente, um homenzarrão balofo e de cara vermelha apareceu. Era o dono daquele estabelecimento.
Eu falei para o dono que pretendia estudar com meu próprio dinheiro e por isso desejava trabalhar ali. O dono, calado, escrutinou meu rosto fixamente e, tão inamistoso quanto o jovem, me disse:
“É um trabalho bem pesado, sabe. Não é lá algo que mulheres consigam dar conta”
Eu pensei comigo mesmo que não importava o quão pesado seja aquele trabalho, eu daria conta. E renovei mais uma vez minha determinação em não deixar escapar essa boa oportunidade e conseguir aquele emprego.
“Não importa o quão pesado seja, eu vou dar conta. Por favor, me deixe tentar”
Mas o dono não iria dar sua aprovação assim tão fácil.
“Eu já tentei empregar umas duas ou três mulheres, mas nenhuma delas continuaram trabalharam por muito tempo, sabe. Além disso, é um porre ter que lidar com o relacionamento de homens e mulheres...”
“Não se preocupe”, eu retruquei com todo o meu ardor. “Eu já sofri bastante em minha vida até aqui. Eu consigo fazer qualquer coisa se penso nestes acontecimentos passados. E, como o senhor mesmo pode ver, eu sou uma mulher muito semelhante aos homens. Não acontecerá nada de problemático entre mim e os outros empregados”
Após o dono pensar por um momento, finalmente parecia ter chegado a uma decisão.
“Bem, então vamos ver o que você pode fazer? Te esperamos quando quiser”, disse com uma expressão calorosa no rosto.
Eu vi no dono daquela loja uma natureza caridosa.
“Muito obrigada! Eu vou dar meu melhor!”
Logo em seguida o chefe, decidindo tudo com desenvoltura, disse:
“Atualmente temos só dez funcionários, todos homens e que vivem juntos na casa à frente. Mas, como você é uma mulher, não tem como eu deixar você dormir lá e, por isso, você pode ficar aqui mesmo. Nisso, somando os gastos alimentícios, de aluguel e estadia, será retirado quinze ienes mensais de seu salário. Vou deixar você ficar em Mitsuhashi, o lugar que mais vende. Dessa forma você vai conseguir pelo menos tirar o dinheiro para frequentar a escola”
Eu retornei, como se tivesse subido aos céus, para a casa do meu tio-avô. Juntei minhas coisas e segui logo para a Loja de Jornais Shirahata.
A partir da tarde do dia seguinte eu sairia para vender jornais.
A esposa do dono da loja, carregando seu filho nas costas, me levou até o local onde venderia os jornais em Mitsuhashi. Ela me ensinou como carregar o cesto, dobrar os jornais e como chamar a clientela. Logo em seguida ela também me alertou sobre o mais importante – o mais importante para ela – que era tomar um especial cuidado com as estratégias de venda.
“Então, quando um cliente chegar pedindo um jornal, você não precisa perguntar qual que ele quer, entendeu? A gente tem cerca de nove jornais diferentes e, nessas horas, basta que você pegue rapidamente um Tôkyô Yûkan e dê para ele. Em grande parte dos casos o cliente só vai pegar este jornal e ir embora, se, por acaso, ele reclamar, só então entregue o jornal que ele pedir, está bem? Como o Tôkyô Yûkan é nosso principal fornecedor, a gente tem que vender bastante dele...”
O Tôkyô Yûkan tinha uma comissão melhor do que os outros jornais e, portanto, tínhamos necessidade de vender o máximo possível deles. Mas isso era um tanto difícil de executar. Este jornal não oferecia muitas chances para ser vendido e, se não vendesse todos enquanto ainda era dia e seu chamariz de “jornal da tarde” ainda não houvesse passado, depois não tinha mais o que fazer.
Logo após entrar no Jornal Shirahata, o dono da loja me adiantou um empréstimo do valor necessário para que eu pudesse me matricular e, então, comecei a frequentar a escola. O dono da loja costumava insistir para eu frequentar uma escola para mulheres. Meu eu já tinha tido minha cota de escola para mulheres e, se fosse para ir para esse tipo de escola, não tinha necessidade alguma de eu estar aqui trabalhando para pagar meus estudos. Eu tinha decido, por conta própria, que meu objetivo era estudar inglês, matemática e chines clássico em escolas especializadas para, assim que conseguisse o certificado de aprovação na prova de formatura para a escola feminina, seguisse para a Escola de Medicina para Mulheres. Nisso, tirei os recortes que tinha feito enquanto ainda estava em Hamamatsu e escolhi a Escola Seisoku, em Kanda, para inglês, a Escola Kensû Gakkan para matemática e a Nishô Gakusha, em Kôjimachi, para estudar chinês clássico.
Por conta de conflitos de horários, não consegui frequentar nenhuma aula do Nishô Gakusha, apesar de ter pagado a mensalidade, mas eu entrei no curso elementar de álgebra na Kensû Gakkan e na turma da manhã do primeiro ano na Seisoku.
Tanto na Seisoku quanto na Kensû Gakkan não tinha muitas alunas mulheres. Mas eu tinha deliberadamente escolhido essas escolas por conta disto, era melhor para mim que eu só estudasse com alunos homens. Isto é, levando em conta a vida que eu levava, eu queria evitar entrar em grupos de meninas para fugir de me enfiar em irritantes disputas sobre roupas e afins e, além disso, de acordo com minha própria experiência em frequentar escolas somente para mulheres, o nível dessas escolas eram baixos, as alunas e os professores não tinham interesse em estudar e, portanto, uma vez lá, o progresso do aprendizado era bem lento. Outro ponto que também está relacionado a esta escolha é que, ao frequentar uma escola masculina e enfileirar minha carteira com a de outros meninos, eu sentia, um tanto confusa e inconsciente, certa vaidade em, por um lado, me achar melhor que as outras mulheres comuns e, por outro, por nutrir uma espécie de sentimento vingativo para com os homens que não me permitia perder para eles em um embate direto.
Na Loja de Jornais Shirahata, isto é, na Keisetsusha, tinha outras pessoas que pagavam os próprios estudos assim como eu. Tinha o Fujita e mais outro rapaz que frequentavam a Escola de Ensino Médio de Tóquio, tinha o Yoshida, rapazola alto e sem vida que frequentava a escola noturna do Centro de Estudos Estrangeiros do Povo, e tinha também o baixinho, troncudo e gago Okayama que frequentava a Escola Eletrônica pela tarde. Tinha mais alguns jovens que não me recordo o nome, um deles frequentava a Escola de Ensino Médio de Kinjô, dois deles a Escola de Inglês Fukyû e mais outro estava prestando o exame de admissão para entrar na escola preparatória da Seisoku. Os que iam para a escola no período do almoço vendiam o jornal do fim de tarde, os que iam para a escola pela noite vendiam o jornal da manhã e, portanto, mesmo que vivessem na mesma casa era normal que passassem três, cinco dias sem trocar palavras.
Além destes que trabalhavam para pagar os estudos ainda tinham mais três ou quatro vendedores normais.
Um deles, um homem por volta de 32, 33 anos, era conhecido como “Kisaburo do bracinho”, ele, quando trabalhava numa fábrica têxtil, havia prendido o braço em uma máquina e o teve arrancado desde o ombro. Tinha um outro homem em condições péssimas, com uma escrófula que se alastrava por todo seu pescoço, cego de um olho, manco e com o braço esquerdo paralisado. Outro que ainda trago na memória era um senhor já passado de seus cinquenta que tinha um cabelo bem longo e vermelho que ele enrolava e prendia no topo da cabeça. Todos chamavam esse senhor de “Cabeludo”, ele, sempre quando voltava do trabalho, trazia um saque barato de baixo do braço e contava umas histórias malucas. Apesar de ser um fanfarrão, era gentil e cuidava de todos os vendedores mais jovens como se fosse o pai deles. Ele mimava a todos nós.
Os estudantes que trabalhavam para pagar seus estudos geralmente vendiam os jornais de acordo com a comissão preestabelecida, mas estes três homens compravam os jornais eles mesmos e vendiam o que sobrava no dia para as lojas de jornais pelo preço de jornais velhos, ou seja, dois rin. Escusado será dizer que, sob condições tão favoráveis, eles recebiam, em troca, um local de venda muito ruim, de modo que, se fossem descuidados, poderiam até mesmo perder seu sustento.
Entre essas pessoas, havia um indivíduo peculiar. Formado no departamento de filosofia da Universidade Waseda ou algo parecido, ele era um homem de poucas palavras, com um rosto pensativo e estava sempre lendo um pequeno livro em alemão. Ele se chamava Hirata e era, por assim dizer, uma espécie de supervisor. Quando os jornais chegavam era incumbência de Hirata passar os olhos pelas notícias e encontrar casos que pudessem chamar a atenção das pessoas e, nos panfletos que ficavam pendurados nas cestas dos vendedores, escrever com traços grosso e apelativos dentro de círculos vermelhos chamadas do tipo “SETE PESSOAS ASSASSINADAS EM ASAKUSA”, “GRANDE INCÊNDIO EM FUKAGAWA”. Após realizar este serviço, saia com seu casaco de inverno de mangas curtas e sua bandana para fazer entregas de Ikenohata até Yushima. Eu sempre achei esse homem um enigma.
Em Mitsuhashi, em Ueno, era proibido tocar a sineta. Então eu precisava gritar “Jornal da Tarde, Jornal da Tarde” para capturar a atenção da clientela. No início, não conseguia fazer isso com facilidade. Minha voz ficava presa em minha garganta. Levou uns bons dez dias até que conseguisse gritar sem muito sofrimento.
Eu ia para Seisoku pela manhã, estudava até o meio-dia, logo depois ficava até as três da tarde na Kensû Gakkan e, assim que voltava para casa, engolia uma comida fria e às quatro já estava com meu cesto nas ruas de Mitsuhashi vendendo jornal.
Já era verão e o sol do entardecer reluzia inclemente sobre minha cabeça, meu corpo estava completamente sujo de suor e poeira e, além disso, como eu tinha que ficar gritando sem pausa, estava morrendo de sede.
No entanto, eu aguentei tudo aquilo com persistência.
Minhas esperanças eram mais do que suficiente para superar aquele sofrimento.
Certo dia, uma empregada de uma loja de macarrão das redondezas veio comprar um jornal e pedir para trocar dinheiro para ela. Como eu tinha muitas moedas, troquei seu dinheiro de bom grado.
A empregada, como se estivesse com pena de mim, disse:
“Está tão quente, isso não é normal, não é?”
“Sim”, eu respondi com toda a gratidão que consegui juntar em meu peito. “Antes estivesse só quente, mas eu também estou com tanta sede que mal consigo falar”
A empregada voltou para a loja, mas, logo depois, regressou trazendo consigo um pote de água e uma tigela. Dentro da tigela havia a água turva em que o macarrão era cozido.
“Muito obrigada, muito obrigada mesmo!”, eu a agradeci algumas vezes e bebi tudo que me tinha sido dado. Que sensação boa! Recuperei as forças com aquilo e voltei mais uma vez a gritar. Quando minha garganta voltava a ficar seca eu pegava o pote de água que havia deixado próximo a ponte e tomava um gole.
Foi isso que me ajudou a suportar aquela situação. No entanto, em troca, sempre que a empregada vinha até mim, tinha que trocar minhas moedas toda vez que juntava três ou quatro ienes.
Já fazia por volta de meio mês que as coisas seguiam desta maneira. Uma noite, quando eu voltava para casa, a esposa do dono da loja, ao verificar o dinheiro das minhas vendas, me disse com uma cara de desagrado:
“Fumiko, por que você nunca tem dinheiro trocado? Pensei ter deixado claro que não era para vender jornal para pessoas que compram um ou outro jornal com notas de um iene”
Eu expliquei a situação. Mas ela não estava de acordo com aquilo. Ela disse:
“Não vai dar para continuar assim, né... A gente aqui também precisa de trocados, de agora em diante não troque mais dinheiro sem autorização, está bem?”
Havia uma razão pela qual a esposa do dono da loja era tão implicante quanto a isto. Ela costumava levar as moedas coletadas pelos vendedores para os cambistas e recebia uma porcentagem do valor de troca. Eu não estava ciente disto.
Meu expediente de trabalho – as horas que eu passava vendendo – ia das quatro e meia da tarde até meia noite e meia somando, assim, oito horas exatas. Contudo, como eu ficava o tempo todo de pé e indo de um lado para o outro, era bastante exaustivo. Até às sete da noite o movimento por ali era bem grande e era bem o horário que eles queriam ler o jornal da tarde e, por isso, ele vendia bastante. Nesses momentos eu ficava tomada pela correria e conseguia esquecer o cansaço, mas, quando dava nove, dez horas, o movimento ficava bem mais fraco e o tédio, naturalmente se instalava, a tensão se esvaia e o cansaço chegava com tudo. Quando me levantava repentinamente, minhas pernas doíam e eu sentia meu corpo cansado e mole e, nesses momentos, costumava descansar meu corpo me escorando no poste telefônico que ficava ao fundo. Eu, às vezes, cochilava ali ou, dependendo da situação, adormecia tão profundamente que acordava somente quando caia e me assustava com a queda.
Os dias, de repente, que choviam eram ainda mais duros. A maioria dos clientes iam para casa em algum veículo, o movimento ficava bem fraco e mesmo aqueles que ainda estavam andando por ali não tinham folga para comprar jornais. Assim, não só os jornais não vendiam bem, mas muitas vezes eu, vendo pessoas com problemas porque tinham arrebentado a correia do geta, me sentia impelida a ajudar e então tinha que rasgar uma toalha de mão para fazer-lhes uma nova correia.
Mas o ser humano é uma existência engraçada, embora eu não fizesse aquilo esperando qualquer coisa em troca – só fazia porque não conseguia ficar parada ali de braços cruzados – as pessoas se sentiam extremamente compelidas a agradecer e acabavam mesmo colocando injustificavelmente uma cédula ou algo do tipo dentro da cesta de jornais antes de partirem. Provavelmente o faziam não só para demostrar gratidão, mas também para expressar sua empatia com uma jovem garota que trabalhava para pagar seus estudos. Eu acho que este também era o caso quando, mesmo em momentos não tão peculiares como estes, as pessoas normalmente não aceitavam o troco de dois ou três centavos.
Kisa, em segredo, me disse que esse tipo de renda especial era um benefício dos vendedores de jornais. Eu também achava que deveria ser assim. Às vezes, quando estava com algum problema financeiro, colocava os trocados em minha própria carteira, mas, quando não tinha nada em particular, eu apenas os colocava na frente do dono da loja sem dizer uma palavra. Ele verificaria a quantidade de dinheiro e os valores de vendas e, se houvesse algum dinheiro extra, ele me devolvia o excedente. Mas com sua esposa não era assim que as coisas funcionavam. Quando eu vendia muitos jornais na promoção de três por cinco centavos, ela reclamava porque parecia que faltava quatro ou cinco centavos, mas quando tinha dinheiro em excesso ela fingia que não percebia e colocava todo o dinheiro em seu próprio cofre.
Muitos grupos faziam plenárias próximos de onde eu vendia os jornais. Dentre eles, tinha o Exército da Salvação que fazia sermões públicos por ali uma vez por semana, e, embora nem sempre fosse o caso, um outro grupo de três ou quatro jovens com quimonos formais e chapéus de universitários também apareciam no mesmo momento portando, na ponta de varas de bambu, lanternas de papel com os dizeres “Exército da Salvação Budista” e, então, começavam a cantar hinos budistas e a pregar sermões com o intuito de rivalizar com os hinos e vigorosos tamborins do Exército da Salvação. Às vezes, um grupo de socialistas também aparecia por lá. Essas pessoas não portavam lanternas nem nada do tipo, mas, assim que chegavam, tiravam panfletos de seus bolsos e os colavam nos painéis de parede ao lado do “Cozido de Galinha” e, revezando, faziam discurso em voz alta enquanto gesticulavam os braços e agitavam seus longos cabelos. Às vezes esses três grupos acabavam se encontrando todos ao mesmo tempo e começavam a brigar, argumentando que, mais tarde, eles iriam derrubar o que o grupo anterior havia dito. Naquelas noites as atenções iam todas para eles e eu não conseguia vender os jornais.
Uma noite, triste porque não conseguiria vender nenhum jornal, fiquei ali parada com o cesto pendurado, aérea e escutando um daqueles discursos sem nada poder fazer. Nisso, um jovem veio até mim:
“Você trabalha para o Shirahata, não é?”, ele puxou conversa.
Eu fiquei um pouco nervosa, mas respondi claramente:
“Sim, trabalho”
“Ah, é? Meu nome é Haraguchi. Eu já trabalhei para o Shirahata também. Mande lembranças para o Shirahata por mim”
Foi o que aquele homem disse enquanto me entregava um folheto. Nele estava escrito “Revolução Russa” ou algo do tipo.
Quatro ou cinco dias já haviam passado desde aquela noite. O grupo voltou mais uma vez para fazer seus discursos. Quando terminaram o discurso, ergueram cinco ou seis panfletos sobre "Quando o mundo se tornar socialista" e encorajaram aqueles que estavam por perto a comprá-los.
Eu não sabia nada sobre socialistas ou coisa do tipo, mas senti que precisava comprar um daqueles e, então, em voz baixa, pedi: “um exemplar, por favor”.
“Aqui está, são quarenta centavos”, o homem que os tinha consigo me passou um exemplar.
Nesse momento, o rapaz que havia se apresentado como Haraguchi ao ouvir isso, disse:
“Ei, essa aqui é uma que precisa ser nossa camarada. Venda para ela pelo preço de produção”, disse se dirigindo ao outro homem.
“Sim, vamos fazer assim”, concordou e me falou que custaria vinte centavos.
E, de fato, pouco tempo depois eu me tornei uma “camarada”. Após ter me tornado uma “camarada”, percebi que aquele homem que tinha me entregado aquele livro era o Takao, que logo depois foi assassinado por Yonemura, e que aquele grupo era a Rôdôsha de Sugamo.
As vendas de jornais da tarde em dias chuvosos eram completamente deploráveis. Ficar parada de pé com um guarda-chuva deixava as abas de meu quimono completamente sujas de lama e, mais importante, os jornais também se molhavam e, por isso, começavam a rasgar e a colarem-se uns nos outros com facilidade. Em dias de sol eu podia deixar jornais empilhados debaixo do corrimão da ponte e só colocar alguns na minha cesta, mas nos dias de chuva isso era impossível e, portanto, eu tinha que andar carregando todos na cesta desde o início. Além disso, como as vendas diminuíam nessas ocasiões o volume de jornais não mudava e eu começava a não suportar mais aquele peso todo. Eu sentia tanta dor que chegava a pensar se meus ossos dos ombros não iriam quebrar a qualquer momento. Mas isso não era tudo. Como eu tinha que segurar em uma das mãos um pesado guarda-chuva de papel vegetal, precisava realizar todo o resto com apenas uma das mãos, pegar o jornal, tirar o troco etc., e, nisso, às vezes deixava um jornal cair e ficar todo lambrecado e molhado, às vezes me atrapalhava e os compradores que estavam para pegar o trem me apressavam xingando braviamente: “para de enrolar e vamos logo com isso senão eu vou perder o trem”.
Certa noite eu fui pega logo de início por uma chuva de fim de tarde que durou mais ou menos uma hora e, por isso, o movimento da clientela diminui bastante e eu não conseguia vender nenhum jornal. Já era por volta das dez da noite e ainda tinha mais da metade dos jornais comigo. Naquele momento a chuva já havia parada, mas como as pessoas também já tinha, assustadas com a chuva, voltado para as casas delas, depois de cessar, ninguém mais sairia porque já era tarde e, portanto, o movimento de pessoas não chegava nem a um terço do normal.
Contudo, eu precisava vender aqueles jornais. Eu erguia minha voz rouca e gritava: “jornal da tarde, jornal da tarde”. Mas, pelo avançado da hora, todos passavam por mim como se não precisassem mais daquele jornal da tarde.
Me escorei no poste telefônico molhado e, ao olhar para o ponteiro do grande relógio que ficava ali em frente, pensei em voltar mais cedo para casa já que não conseguiria vender mais nada. Mas naquela noite em específico parecia que o tempo sequer caminhava de tão lento.
Eu, como se me lembrasse de algo, gritava com uma voz fraca sempre que alguém passava: “jornal da tarde”. No entanto ninguém parava para me comprar um jornal. Quando eu já havia esquecido de tudo, surgia uma ou duas pessoas que comprava um ou dois jornais, mas, para mim, mais pareciam como se comprassem por pura pena de ver minha figura miserável do que por necessidade.
Com o avançar do tempo, o movimento ficava ainda mais fraco. A falta de vontade de fazer aquilo tudo tornava meu corpo já cansado ainda mais pesado.
Não tinha mais esperança alguma, mesmo que ficasse ali de pé o resto da vida não venderia aquilo. Resolvi, então, ir embora. Deste modo, apesar de ser ainda um pouco cedo, sai dali.
Finalmente já tinha chegado próximo a minha casa. Sai da rua principal, entrei na viela e quando pisei nas tábuas que cobriam as valas ao lado da casa, o dono da loja, assim que escutou esse barulho, gritou do segundo andar:
“Quem será que voltou a essa hora para casa?”
“Sou eu, Kaneko”, respondi erguendo o rosto para o segundo andar.
Parecia que alguma visita estava no segundo andar com o chefe e ambos estavam sentados com uma garrafa de cerveja entre eles.
“Ah, é você Fumiko? Ainda está cedo, não são nem onze horas ainda” ele disse em um tom um tanto suave, mas sem dar mostrar de que seria tolerante. Ele continuou:
“Ninguém voltou ainda. E ainda assim, mesmo com um lugar bom como aquele, não faz sentido você ser a primeira a voltar para casa”
“Sim, mas não estava vendendo nada hoje. A chuva de tarde acabou por diminuir o movimento de clientes”
Eu tentei argumentar meio que tentando apelar para meu lado. Mas o chefe não parecia inclinado a se simpatizar com minha situação.
“De fato, há dias que não são bons, não é? Mas vai ser complicado se você sair de um lugar bom como aquele a essas horas, sabe, mesmo que não esteja vendendo, se você não ficar lá até o horário estipulado pode ser que a reputação do local caia”
Então eu voltei relutante para lá mais uma vez. Mas o fluxo estava tão baixo que eu conseguia contar as pessoas com uma única mão. É evidente que eu já não tinha a disposição para ficar gritando “jornal da tarde”. Às vezes, quando eu gritava uma ou duas vezes, minha voz só ecoava como um soluço choroso na floresta de Ueno e sentia como se pudesse reconhecer minha própria miséria refletida nos ecos.
Me recostei na balastrada da ponte e, entre lágrimas, só esperei o tempo passar. Por cima do grande relógio o céu limpo ostentava duas ou três estrelas brilhantes.
Uma riquixá veio da rua principal e parou na minha frente. Seu puxador descansou a carroça e disse para mim:
“Com licença, mas você poderia me ver uns dois ou três jornais?”
“Claro, qual o senhor gostaria?”
“Ah, qualquer um está bom. Qualquer um que esteja sobrando”
Eu pensei comigo mesmo que este homem também só comprava os jornais porque tinha pena de mim e não porque precisava. Eu olhei o rosto dele sem entregar o jornal.
Ele trazia sobre a cabeça um boné de estudante e escondia a insígnia com um papel branco. Certamente era mais um que, assim como eu, precisava trabalhar para pagar seus próprios estudos.
Recuperei repentinamente minha energia ao pensar em uma futilidade como a de que eu também estava ali tentando conseguir dinheiro para arcar com meus próprios estudos.
“O senhor também frequenta a escola, não é? Estou certa, não estou? Qual escola o senhor frequenta?”
Mas ele só ficava ali sorrindo sem nada me responder. Após eu repetir a pergunta umas duas ou três vezes, aquele homem finalmente respondeu:
“A mesma escola que você, estamos na mesma turma”
“Como? Mesma escola e mesma turma?” levei um susto e perguntei mais uma vez.
“Isso mesmo. É bem capaz que você não tenha percebido, mas eu conheço você faz bastante tempo. Você está sempre tirando um cochilo lá na escola e eu tive certeza de que você também tinha que trabalhar para pagar seus estudos. Sempre vejo você por aqui vendendo os jornais da tarde, sabe”
Nós ficamos por um tempo por ali conversando de pé.
De acordo com o que ele me disse, seu nome era Itô e ele era um soldado do Exército da Salvação – isto é, um cristão. Era estudante de uma escola de veterinária em Asabu, mas como não conseguiu arcar com as mensalidades e por ter ficado doente, ele tinha dado um tempo da escola e, agora, estava se preparando para voltar a estudar no próximo ano enquanto frequentava as aulas de álgebra no Kensû Gakkan. Como eu era a única mulher naquela escola era claro que eu chamava a atenção e, além disso, como ele vinha aos sermões que aconteciam por aqui, já tinha me reconhecido vendendo jornais e, há muito tempo, já reparava em mim.
Em uma noite depois que já havia passado sete dias desde que eu começara a vender jornais, eu quase fui enganada por um homem especialista em raptar estudantes que trabalhavam para pagar seus estudos, meu chefe tinha me alertado para a existência de pessoas desse tipo e, após aquilo, eu tomei bastante cuidado, mas o homem com quem eu conversava naquele momento definitivamente não parecia ser o caso. Eu até pensei na sorte que tive em ter conhecido um homem como este.
Itô me alertou:
“Não tem como sair inteiro desse trabalho. Por agora você ainda vai conseguir ir lidando, mas com o tempo vai começar a te corroer. Eu acho que é melhor você procurar outra coisa para fazer. Se você quiser ajuda, pode falar comigo quando quiser. Eu, como você pode ver, não consigo fazer lá muita coisa, mas farei o que tiver sob meu alcance...”
Até aquele momento eu estava tão triste e desamparada. Fiquei tão feliz com suas palavras que tive vontade de chorar. Nós nos separamos com o peito repleto de gratidão e luz.
A Loja de Jornais Shirahata usava como fachada a promessa de ajudar os estudantes que arcavam com os gastos através de seu próprio suor. E, de fato, havia um grupo que, por conta de trabalharem para os Shirahata, conseguiam frequentar a escola. Esses estudantes, assim como eu mesma, não conseguia fazer mais nada além disso. Desta maneira, por certo, deveríamos ser gratos ao Sr. Shirahata por permitir que frequentássemos a escola. Particularmente, não é como seu eu não concordasse com isto. No entanto, se o Sr. Shirahata falasse algo do tipo “eu salvei vocês e, portanto, vocês têm que trabalhar para mim assim como eu ordenar”, a coisa não soa mais tão certa assim. Isto é, com certeza os estudantes só conseguiam ir para a escola por conta daquele trabalho, mas é igualmente verdade que o Sr. Shirahata mantinha seu padrão de vida graças ao trabalho daqueles estudantes. E, do meu ponto de vista, o Sr. Shirahata parecia tirar de nós muito mais do que nos dava.
De todo modo, apesar de não ter percebido no início, após uns dez ou vinte dias em que eu estava ali eu, naturalmente, pude compreender que a personalidade do Sr. Shirahata não era muito diferente da de meu pai e que a família dele também era semelhante a minha em diversos pontos e, então, ao mesmo tempo, também compreendi que o Sr. Shirahata só fazia o que fazia porque, apesar de possivelmente também existir alguma causa de nascença, ele ganhava muito mais dinheiro do que os estudantes que trabalhavam para ele.
O Sr. Shirahata tinha duas esposas. Uma delas viviam junto com ele e a outra era a que tinha sido expulsa pela atual, ou seja, sua ex-esposa. Quando falamos de “ex-esposas” imaginamos que é alguém que não tenha mais relações com o marido, mas não era esse o caso, o Sr. Shirahata ainda cuidava desta ex-esposa e, por isso, é plausível dizer que, sim, ele possuía duas esposas.
De acordo com as conversas do povo, a atual esposa do Sr. Shirahata era uma mulher que ele encontrou em um café que frequentava em Asakusa, só pelo fato de ela ter expulsado a antiga esposa de Shirahata de casa já é o suficiente para se ter uma noção do caráter firme desta mulher. Mais acertado seria dizer que ela é uma mulher temperamental e que, quando fica histérica, ninguém consegue conter seu ímpeto.
No entanto, o Sr. Shirahata, naquela época, ainda estava se engraçando com mais uma outra mulher em Funabashi e de dois em dois dias ele banhava o corpo em uma colônia e saia de casa. Nesses momentos, como que em retaliação, a esposa atual tirava vinte ou trinta ienes do dinheiro de venda dos jornais e saía em segredo para comprar quimonos ou faixas de cintura. Na realidade, durante o tempo em que estive ali, isso chegou a acontecer uma vez e, quando o Sr. Shirahata ficou furioso, sua esposa o atacou utilizando o seu caso com aquela outra mulher e tudo acabou virando uma enorme briga. Ao fim da briga, a esposa perdeu a cabeça, enrolou uma faixa de cintura feita de cetim no corrimão do segundo andar, desceu por ela até o térreo, foi para a avenida principal onde tomou um riquixá e, após vagar a noite inteira pelos arredores de Mukôjima, acabou indo parar na casa de um conhecido em Honjô, onde ela ficou por dois dias e duas noites sem comer ou beber nada sentada com os joelhos para cima agindo como se estivesse contando dinheiro enquanto murmurava algo. Graças a isso, tive que tomar conta de três crianças durante esse tempo.
Enquanto uma das esposas agia desta forma, a outra esposa, que vivia em um cortiço em Shitayasaka Moto-chô, apesar de receber o valor do aluguel de seu marido, tirava dinheiro para sustentar ela e seus dois filhos vendendo os mais de cem jornais que ganhava da loja do Shirahata. Além disso, o local em que essa ex-esposa ficava não era muito bom e ela conseguia fazer somente dois ienes se fosse capaz de vender tudo e, ainda assim, a esposa atual, inventando alguma desculpa, sempre atrasava a entrega dos jornais para ela. E estaria tudo bem se fosse só isso, mas a atual esposa, por pura maldade, tratava a antiga como se ela fosse uma mendiga.
Fiquei triste que, recém chegada, me deparei com uma situação familiar tão parecida com a de minha própria casa. Para piorar, como tudo isso se baseava a partir de uma condição em que o dinheiro já estava lá – dinheiro que era acumulado centavo por centavo através do suor e sangue dos estudantes em dificuldades – tudo ficava ainda mais difícil de suportar.
De todo modo, como era minha vida na Loja de Jornais Shirahata?
Até o momento eu só falei das vendas de jornais propriamente ditas. Contudo, minha vida ali não se resumia a isto.
Eu saia para vender jornal às quatro da tarde e voltava para casa meia noite. Mas eu não ia direto dormir. A conferência dos valores vendidos era feita em meu quarto. Se era o Sr. Shirahata quem fazia, eu podia dormir em um canto do quarto, mas caso fosse sua esposa quem estivesse encarregada daquilo, eu não conseguia dormir. Ela espalhava jornais por todo o quarto e, naquela barulheira, evidentemente não conseguia adormecer. Como eu não podia fazer nada nessas horas, ia lutar contra o sono na cozinha enquanto lavava o arroz para a manhã seguinte, lavava e organizava os utensílios domésticos que estavam desde manhã sujos, e a esposa do dono, aproveitando destes momentos, sempre me fazia fazer essas coisas. Assim, eu só ia dormir de fato após acabar todo o trabalho lá para uma, duas horas da manhã. Para piorar, tinha que acordar no outro dia às sete da manhã.
Me levantava as sete e, enquanto arrumava meu quarto e fazia os preparativos para a refeição, o relógio, sem demora, batia oito horas. Entretanto, minha escola começava as oito em ponto e como eu saia de casa às oito e ainda tinha que enfrentar mais meia hora de trem, acabava não conseguindo frequentar o primeiro horário adequadamente. Além disso, a esposa do dono tinha me incumbido de levar seus dois filhos para a creche e, quando eles me davam muito trabalho, eu perdia não só o primeiro horário, mas o segundo também.
Até o horário do almoço eu estava na Seisoku, depois do almoço até as três da tarde eu estava na Kensû Gakkan e, após isto, voltava imediatamente para casa e tinha que ir trabalhar. Quando eu voltava meia noite para casa coberta de suor e poeira já não podia ir até a casa de banho. Nisso, apesar de querer descansar nem que seja no domingo, eu tinha que passar o dia me limpando e lavando a roupa suja que acumulava. Bem, meus dias eram mais ou menos assim e, portanto, é possível dizer que eu não tinha folga nem para descansar meu próprio corpo.
Deste modo, tendo que trabalhar tão pesado e após consecutivas noites mal dormidas, era mais do que natural que, não importa o quanto eu tentasse, não conseguisse me manter acordada durante as aulas e, assim que recostava na carteira, eu acabava cochilando. Portanto, acabava não conseguindo entender nada que os professores falavam e nem mesmo conseguia copiar coisa alguma.
Inicialmente eu havia dito para o Sr. Shirahata que enfrentaria qualquer sofrimento, aguentaria o que fosse preciso. E não é como se, mesmo naquele momento, não estivesse fazendo isso. Mas, não importava o quanto meu espírito lutava para continuar com aquilo, meu corpo não estava aguentando mais.
Eu finalmente parei para pensar.
“Não importa o quanto eu insista nisso, é inútil. É impossível continuar assim. Eu só aceitei viver uma vida dessas porque queria estudar, mas isso aqui vai além de puro sofrimento. Eu não consigo sequer estudar. Não faz sentido continuar nisso desta maneira”
Quando pensei essas coisas eu já não conseguia me manter fazendo aquilo tudo.
Tinha decidido que iria deixar a Loja de Jornais Shirahata. Mas, parando para pensar, eu havia pegado cerca de doze, treze ienes emprestados para cobrir meus custos de mensalidade e vestuário. Então, se fosse para sair, eu precisava pagar todo esse dinheiro antes. Ainda assim, não era algo possível de se realizar.
O puxador de carroças riquixá, Itô, me disse: “ficar naquele lugar, viver lá de favor, vai não só te impedir de estudar, mas vai também acabar te corrompendo. É melhor sair de lá o quanto antes e fazer alguma coisa por conta própria”, e parecia preocupado ao ponto de querer pagar minha dívida e me arrumar um bom emprego. Mas como exatamente isso poderia virar realidade? Era de Itô que estávamos falando, ele estava em dificuldades até para tomar conta de si mesmo, que dirá assumir responsabilidade de terceiros, a conversa toda parecia uma fantasia. Então eu contei a Haraguchi, com quem eu tinha me familiarizado após o ouvir falar sobre socialismo, a minha situação e perguntei se ele poderia me ajudar a conseguir algum dinheiro. Entretanto, Haraguchi parecia não confiar em mim e recusou dizendo: “Não é algo que eu possa pagar”.
Como eu não podia fazer nada, fiquei esperando alguma oportunidade. No entanto, alguém deve ter escutado que eu queria sair dali – provavelmente isso surgiu de uma conversa que tive com alguns colegas em que reclamei das condições de trabalho e comentei que queria fazer algo diferente – e, certo dia, o Sr. Shirahata me chamou com o rosto sério e perguntou, inquisidor:
“Fumiko, ouvi falar que você está pensando e se preparando para sair do trabalho, isso é verdade?”
Eu pensava em aguentar até conseguir devolver o empréstimo que me foi feito e, por isso, não tinha falado nada até o momento, mas, confrontada desta maneira, eu não poderia mentir:
“Sim, na realidade meu corpo não está aguentando e, por isso, não tenho conseguido estudar, então, assim que conseguir devolver o empréstimo, gostaria de receber um afastamento...”
“De fato, por isso eu disse o que disse lá no início”, o Sr. Shirahata disse com o rosto taciturno, “pois bem, se você quer sair, que assim seja. Tenho que pensar em meu lado também então, por favor, gostaria que você partisse amanhã mesmo”, ele me disse com severidade.
Já tinha entendido que não poderia ficar ali ao receber tais palavras e respondi: “está bem”. Mas, de qualquer forma, o que eu deveria fazer? Eu não tinha um centavo sequer. Não possuía outro emprego. Estava perdida.
Eu precisava sair no dia seguinte. Mas o Sr. Shirahata, naquela noite, me jogou para a esquina de Hongô San-chôme em que as vendas eram péssimas. Durante aquela noite minha dívida subiu uns cinquenta centavos.
Eu fui expulsa pelo dono da loja. É claro que eu pensei que a dívida tinha sido abatida por isto. Contudo, fiquei sabendo mais tarde, já na casa de meu tio-avô, que assim que eu saí da loja, o Sr. Shirahata montou em um riquixá puxado por duas pessoas e foi até a casa de meu tio em Minowa e, após enfileirar ofensas contra mim, apresentou um extrato detalhado de minha dívida e cobrou dele o seu pagamento. Parece que o Sr. Shirahata, naquela ocasião, tinha ido até meu tio-avô levando de presente uma grande caixa de pão de ló o que deixou meu tio em posição delicada obrigando-o a pagar o dinheiro requisitado. Minha tia-avó, após me repreender, fez com que eu fosse até meu tio pedir desculpas.
Vendedora ambulante
Quando sai da loja dos Shirahata já era fim de tarde.
Finalmente havia saído de lá, mas como fui obrigada a sair antes de estar realmente pronta eu, portanto, não tinha para onde ir e, para meu azar, estava chovendo horrores e, portanto, eu estava completamente sem saber o que fazer ou para onde ir. Eu me agachei, perdida, nos degraus de pedra em frente à entrada da loja de departamento Matsuzakaya.
Não importa o quanto pensasse, não conseguia encontrar uma saída satisfatória. A saída que consegui chegar naquele momento foi ir até Kuromon-chô visitar Akibara, o chefe do pelotão do Exército da Salvação, que eu tinha encontrado uma ou duas vezes através de Itô, para pedir abrigo durante aquela noite.
Como eu não tinha um guarda-chuva, dobrei as abas do quimono, e segui, me abrigando de telhado em telhado, até chegar ao pelotão enquanto erguia barro com minha geta baixa de tempo seco.
Era quarta ou quinta feira. Se fosse uma ocasião normal, as portas estariam fechadas, mas parece que estava havendo alguma reunião ou algo do tipo e luzes cintilavam lá de dentro. Era um indício que havia pessoas.
Eu fiquei um tanto sem jeito de entrar e, por um tempo, fiquei ali de pé e hesitante. Contudo, eu não poderia ficar assim para sempre e, então, abri a porta com resolução seguindo em frente.
Por volta de trinta pessoas estavam sentados nos bancos do local. Itô, que estava sentado no segundo ou terceiro banco da frente, imediatamente me viu e veio até mim.
“Finalmente me botaram para fora”, eu disse assim que bati os olhos em Itô.
Itô me levou até um canto de terra batida.
“Me conte os detalhes depois. O comandante K do quartel general de Kanda veio nos fazer uma visita especial e, por isso, hoje a gente está tendo um encontro extraordinário aqui. Já está para começar. Você chegou em boa hora. Vamos lá, sente-se”
Itô me levou até um assento reservado para mulheres onde eu me sentei. Itô me trouxe uma bíblia e um livro de hinos e me indicou quais seriam os tópicos do encontro daquele dia. Então voltou mais uma vez para seu assento.
Eu não estava em condições de ler a bíblia. Meu peito estava tomado por uma aflição que não cessava vir à tona. Eu me sentia como se a qualquer momento algo fosse me puxar de vez para dentro de um buraco.
Não muito depois daquilo, o encontro teve início, orações foram feitas e hinos cantados. Eu, no entanto, passei por aquilo tudo como que levada. Abaixava a cabeça com todos e me levantava quando todos também assim o faziam. Mesmo os sermões do comandante K não entravam em minha cabeça. Mas, depois de um tempo, talvez por ter me acostumado ao ambiente, talvez por ter me acalmado um pouco, comecei a captar algumas palavras do comandante K. Entretanto, naquele momento seu sermão terminou.
Após o sermão voltaram a entoar hinos. O ritmo daqueles hinos era de uma força enorme e parecia me envolver em grandes vagas de ondas. Senti como se estivesse no topo da crista daquelas ondas e estava sendo levada por elas para um enorme amplo local ainda desconhecido.
O comandante K, como se ele próprio tivesse sido tomado por uma grande emoção, seguiu com algumas preces. A oração do comandante em nome dos espíritos aflitos para sua salvação foi suficiente para fazê-los sentir como se elas tivessem que ser atendidas. Ao fim das preces teve início o “testemunho” dos fiéis. Um jovem, que parecia ser algum funcionário de loja, testemunhou que, após ter começado a crer, tinha sido salvo de um sentimento de sofrimento mortífero. Uma senhora ao meu lado disse: “eu sou realmente grata por ter sido salva por meu Senhor Jesus Cristo”. Todos gritavam “Amem” ou “Aleluia”. Tinha os que também, tomado por fonte emoção, gritavam “é isso, oh, meu Deus!”. Itô, voluntariando-se, se ajoelhou ao pé da mesa para rezar. Parecia estar rezando principalmente por mim e desejando a minha salvação.
Por algum motivo, eu não pude ficar imóvel diante de tudo aquilo. Parecia que existia algo em que eu poderia confiar e que esse algo ou alguém estava me chamando para junto dele. Assim eu fui sendo tragada por uma inexplicável força. Quando dei por mim, percebi que já estava aos pés do chefe do pelotão. Eu simplesmente me prostei ao chão sob as pernas do chefe do pelotão e chorei sem motivo algum.
O chefe do pelotão só gritou um “amem” e pegou meu braço. Então me levantou em seus braços e me perguntou diversas coisas.
Eu fui respondendo tudo o que era me perguntado com honestidade e banhada em lágrimas. O chefe do pelotão anotava cada uma de minhas respostas em um caderninho. Então disse para todos: “irmãos, vamos todos orar pelo bem desta irmã que também foi salva” e, começando por ele próprio, se ajoelhou e começou a rezar com paixão e em uma voz comovida. Após ele, Itô e os outros também começaram a ofertar orações e preces de graças.
Eu estava em êxtase como se estivesse embriagada. Esqueci de todo meu sofrimento e me juntei a todos em glorias à Deus. E foi assim que eu, inesperadamente, me tornei uma companheira dos cristões.
Itô alugou para mim um quarto em Shin’hana-chô, em Yushima. Ele também conseguiu com um conhecido seu de uma loja de sabão em pó uma leva de três ou quatro ienes do produto. Eu imediatamente me tornei uma vendedora de sabão em lojas noturnas pela cidade.
Eu ficava em Nabe-chô, em Kanda. Às quatro ou cinco horas, quando o trompete do vendedor de tofu começava a soar e as pessoas iniciavam os preparativos para o jantar, eu amontoava uma lâmpada de pavio duplo, cinco ou seis jornais e por volta de trinta sacos de sabão em pó no balde de estanho que Itô tinha me comprado, envolvia tudo aquilo em um embrulho de algodão listrado e partia para meu novo negócio.
Minha nova barraca de vendas ficava na esquina da rua em forma de “T” que partia de Nabe-chô.
Próximo a minha localização havia um vendedor de livros usados que comercializava livros do Kodan kurabu, revista infantis e impressões coloridas de ukiyo-e, ao seu lado. uma senhora sentada em uma caixa, abanava com um leque uma churrasqueira colocada à sua frente enquanto assava os milhos que também comercializava ali. Do outro lado da rua em que eu me encontrava havia uma barraca de roupas de segunda mão e, ao seu lado, um homem já com bastante idade, vestido com um hakama e com uma barbicha crescida, tinha a sua frente sobre uma prateleira o que ele dizia ser carbonizados de lobo-marinho, frutos de sagu-de-jardim e tantas outras coisas suspeitas que, em um tom de orador, ele explicava os benefícios. Então, seguindo a linha vertical daquela rua em “T”, ainda existiam diversos tipos de barracas, de pinceis, de jardinagem, de brinquedos etc.
Eu, de início, saudei amistosamente o senhor da loja de roupa de segunda mão que ficava a minha frente e o meu vizinho que vendia livros usados. O vendedor de roupas usadas parecia, à primeira vista, um homem desonestos, mas o senhor que vendia livros era um velhinho que aparentava ser muito boa gente.
“O que será que a senhorita vende aí, né”
O velhinho, enquanto trazia um sorriso dúbio no canto da boca, me disse após dar uma olhada em minha direção.
“Eu estou aqui para vender sabão em pó”
“Hmm, temos aqui então uma vendedora de sabão, né? Bem, boa sorte”
Após me dizer isto ficou em seu canto observando curiosamente enquanto eu tentava montar minha loja, mas, como se estivesse irritado com a inaptidão de meus movimentos, veio até meu lado para me ensinar a fazer aquilo e me dar várias dicas sobre vendas.
Eram todos vendedores de barracas noturnas. É claro que eles não tinham uma vida fácil. Mas todos tinha barracas muito bem equipadas para tanto. No entanto, e quanto a minha própria loja?
Minha loja se destacava por, principalmente, não ter uma plataforma onde eu pudesse dispor meus produtos. Eu colocava os produtos sobre cinco ou seis jornais com que forrava o chão. Além disso, o que eu chamava de produtos não passava de menos de trinta sacolas de sabão em pó que eu iluminava com a luz fosca da lâmpada que trazia comigo. Que loja mais miserável era aquela! A miséria daquilo destacava-se além do necessário. Eu me sentava atrás dos produtos também em uma folha de jornal com a qual forrava o chão e, com o Reader aberto em minhas pernas, esperava desanimada que a clientela viesse.
O velhinho que ficava ao meu lado era uma pessoa interessante e gentil. Sempre tinha o rosto vermelho de álcool, mas quando parecia estar ficando sóbrio ele se virava para mim e dizia: “mocinha, me desculpe, mas você poderia tomar conta daqui um pouquinho?” e saía para algum canto me deixando como responsável por sua loja. Nesses momentos, o velhinho ia correndo até um bar das redondezas para entornar um copo grande de saque e retornar. Ele também tinha o hábito de, com o avançar das horas e com a escassez de clientes, pegar um livro de recitações dramáticas para teatro de bonecos e, enquanto piscava os olhos enrugados por trás dos óculos, entoar em voz baixa e em um ritmo peculiar aquelas passagens. Mas, quando se cansava mesmo daquilo, dizia:
“Mocinha, sua loja é terrivelmente sombria, né. Parece até que um fantasma vai sair daí...”, comentava com um sorriso bondoso no rosto, “tente tirar um pouco a poeira com isso aqui” e jogava em minha direção o espanador de poeira que usava para tirar o pó de seus livros.
Como raramente vendia alguma coisa e, portanto, sempre estava entediada eu, naturalmente, sempre acompanhava aquele velhinho em suas conversas.
Eu respondi para ele:
“Não adianta, tio. Não importa o quanto eu tire a poeira acumulada, como não tenho uma plataforma sempre vai ser isso aí. Meus produtos são cobertos diretamente pela poeira das pessoas que passam por aqui. Além disso, hoje está ainda pior. Quando cheguei aqui mais cedo percebi que tinham jogado água na rua e, por isso, o chão estava todo molhado, como eu não podia fazer nada esperei um pouco até o chão secar. Mas ainda assim, veja aqui, meu sabão e meus jornais ficaram todos úmidos e molhados...”
“Realmente, estão úmidos, e está tudo bem deixar por isso mesmo?”
“Não está não, tio, aqui na parte de trás da embalagem está escrito que o produto não pode ficar úmido”
“Então basta você conseguir uma plataforma, não?”
“Isso eu sei, tio, mesmo que não me digam. Mas eu não tenho dinheiro, sabe. Né, tio, essa caixa aí”, eu disse olhando com rabo de olho a caixa vazia de livros que o velhinho estava sentado, “o senhor não quer me emprestar essa caixa aí, não? Essa caixa que o tio está sentado. Vai me servir direitinho como plataforma”
Nisso, o velhinho, arregalando os olhos como se tivesse se assustado, disse:
“Ah, essa caixa? Essa não vai dar, sabe. Se eu te emprestar essa caixa vai ser bom para você, mas eu foi passar por maus bocados. Se eu tiver que ficar em pé a noite toda, vai ser o fim para esses velho aqui. A vida não está fácil, hein...” e terminou em uma gargalhada.
Desta forma, a gente tinha se tornado bons amigos e bons vizinhos. Mas isso, pelo contrário, me deixava ainda mais triste. Se ao menos esse velhinho fosse meu avô ou meu pai... Era o que eu pensava comigo mesma.
Minha loja era sombria e a maioria das pessoas passavam por ela sem prestarem atenção, mesmo as que percebiam sua existência só lançavam uma olhadela e seguiam seus caminhos, mas, esporadicamente, alguns jovens rapazes vinham até minha loja e, fingindo estarem pensando em o que comprar – provavelmente para tirar sarro da minha cara – levavam, por pura curiosidade, um ou dois produtos. Mas mesmo nestes momentos, eu ficava com dificuldades quando me pagavam uma compra de dez centavos com cinquenta ou com notas de um iene. Mas, graças a minha boa relação com o velhinho meu vizinho, eu conseguia sair dessas situações.
“Por favor, espere um momento”, eu falava para o cliente e ia até o velhinho ao lado com aquele dinheiro para que ele o trocasse por valores menores e entregava o troco por completo para o cliente retendo somente meus dez centavos da venda.
Nesse ritmo, as vendas da noite somavam-se em cinquenta ou setenta centavos de ienes e, nos dias bons, somavam um iene. Deste valor, trinta porcento era de comissão e, portanto, não tinha como sobreviver com o que me restava. Às vezes, mesmo usando todo o dinheiro das vendas, não conseguia comprar comida para passar um dia. Meu estoque, naturalmente, começou a mingar e, com o passar das noites, minha barraca foi ficando mais e mais deprimente.
O velhinho ao perceber isso, me disse:
“Mocinha, desse jeito a coisa toda não vai andar, o ser-humano é um bicho esquisito, quer dizer, mesmo que ele vá comprar só uma tira de papel ele vai querer comprar essa tira numa loja grande e lustrosa. É por isso que as lojas que estão em declínio só declinam mais e mais e as que estão florescendo só florescem mais e mais. Então, se você quer realmente vender algo, é preciso fazer com que sua loja seja mais lustrosa”
Era exatamente como ele dizia, com o passar dos dias e com os produtos ficando cada vez mais escassos, as vendas, em igual medida, também minguavam. E, junto a isto, minha condição financeira também piorava muito. Eu pensava constantemente: “Ah!, como eu gostaria de ter vinte ienes! Se eu tivesse ao menos esse dinheiro, conseguiria manter a loja e ainda estudar por conta própria”
Mas, ao comparar com quando eu vendia jornais e passava o dia todo em pé, o trabalho de agora era muito mais fácil e, independentemente se vendia ou não, eu ficava ali sentada no chão daquela rua noturna até todos fecharem suas barracas enquanto me banhava com o orvalho da noite.
As barracas eram recolhidas por volta das dez da noite. Então eu andava, em um ritmo rápido e constante, cerca de um 1,4, 1,5 quilômetro até Yushima e só chegava em casa quando já eram mais de onze horas. Por essas horas normalmente todos da casa já estavam com portas fechadas e dormindo.
Eu segurava com uma das mãos o embrulho de pano com as coisas da loja e, com a outra, agitava levemente a porta e chamava “senhora, senhora” tentado acordar a dona da casa. Mas eu já começava a me sentir mal em repetir isso mais vezes e, sem coragem para acordá-la, ia me deitar direto sobre o estande da loja fechada de cidra e gelo que funciona durante o dia ali debaixo da pérgola de glicínias-japonesas dos recintos do Templo Kanda Myôjin.
Nessas horas, como era verão, as noites eram bem frescas, mas, em troca, os mosquitos me atacavam com ferocidade e eu não conseguia dormir com facilidade. A estratégia que bolei para amenizar aquilo foi cobrir minha cabeça com o pano que usava para enrolar meus produtos, desfazer as dobras das mangas de meu quimono e me encolher para dentro dele enfiando ali também meus pés.
Como eu estava sempre cansada, eu normalmente dormia profundamente, mas, às vezes, eu era acordada por uma chuva repentina que caia ali de madrugada, ou, então, era descoberta por um policial que me levava até a delegacia.
No entanto, este não era o tipo de vida que eu pudesse suportar por muito tempo. Principalmente quando tomava chuva por quatro ou cinco dias consecutivos, não conseguia fazer quase nenhum dinheiro e nem mesmo uma refeição por dia conseguia comprar, que dirá as três recomendadas. Nisto, comecei a vender ambulantemente o pouco de produto que ainda me restava.
Contudo, este era um trabalho bastante árduo para mim, uma mera novata no assunto. Todos os dias ao chegar da escola eu tirava meu hakama, vestia meu quimono, pegava meus produtos e sai de casa, mas, quando precisava agir, eu não conseguia entrar na casa das pessoas não importa o que fizesse. Pensava que ninguém compraria aquele sabão em pó de mim e, assim que eu entrasse na casa das pessoas, elas iram me escorraçar severamente e, por isso, não consegui a resolução necessária para dar o primeiro passo. Assim, acabei só vagando durante um dia inteiro só para gastar minhas pernas até que ficassem semelhantes a palitos.
Tentei me auto recriminar por ser tão fraca e me autoconsolar pensando que, no fim, isto tudo só estava acontecendo porque eu ainda não havia me livrado de minha vaidade, mas isso também não teve efeito. Quando o fim da tarde chegou e sem outra alternativa, tentei, com uma sensação mortífera, bater em uma das portas das mais de cem pelas quais havia passado, mas mesmo que batesse eu era, normalmente, recusada.
Era início de tarde de um dia quente. Como de costume, eu vagava por Yaegaki-chô, em Nezu, como um vira-lata com meu surrado pano de algodão listrado em uma das mãos, sem uma sombrinha e recebendo diretamente todos incandescentes raios de sol em minha pele.
Durante esses quatro ou cinco dias não tinha vendido praticamente nada e, consequentemente, também não tinha dinheiro para fazer uma refeição e estava quase plana de tanta fome. Sentia como se, a qualquer momento, vertigens de calor e fome fossem tomar conta de mim.
Eu já não estava em posição de pensar se as pessoas queriam ou não comprar meu produto, se seria ou não vergonhoso oferecer o que tinha para vender.
Sai da rua principal para uma rua estreita e, após seguir por uns quinze, dezesseis metros, avistei uma residência pequena e aconchegante com um pequeno jardim. Ao espiar sorrateiramente dentro da casa, avistei da janela do quarto contiguo a área de entrada uma mulher que parecia ser dona da casa em frente do espelho arrumando seus cabelos. Era ali, eu decidi que iria entrar naquela casa. Mas eu ainda me sentia relutante e precisei ficar um tempo parada na entrada enquanto me remoía. Mas me repreendi novamente e, finalmente, abrindo a porta de vidro da entrada, entrei dentro da casa.
“Com licença”, eu disse timidamente.
“Pois não?”, uma voz me respondeu por detrás da porta corrediça de papel.
“Madame, será que a senhora não teria interesse em comprar sabão em pó?... Está bem barato e é muito bom...”
Assim que terminei de falar comecei a tirar o produto do meu embrulho. Mas, antes que conseguisse retirar o sabão, ela me dispensou com clareza e abruptamente:
“Lamento muito, mas agora eu estou com as mãos ocupadas”
Mãos ocupadas? Ela havia me confundido com uma pedinte! Naquele momento eu fiquei tonta como se tivesse recebido uma porrada bem no topo da cabeça. Refiz mais uma vez o nó do meu embrulho de pano e saí daquela casa abatida e como um cachorro ladrão.
“Isso já está ficando insuportável, quase todo dia um órfão vem até aqui, né. No início eu ficava com pena e dava cinco ou seis centavos, mas isso parece que não tem fim e, depois de um tempo, decidi que iria mandar todos embora sem demora”
“Você está mais do que certa, madame. Se a gente ajudar todo mundo de quem tem pena quem vai acabar sem nada somos nós, não é?”
“Pois é, estou farta disso!”
Quando sai para fora daquela casa, escutei as duas falando algo do tipo e rindo ruidosamente.
Minha coragem tinha sido completamente esmigalhada e meu pé havia ficado ainda mais pesado. Eu voltei a vagar mais uma vez. Mas já era fim de tarde. Eu precisava conseguir comida de qualquer jeito. Avistei, então, no fim de uma viela de uma rua estreita uma mulher de cabelos presos com pente e que lavava roupas. Ao seu lado tinha um menino que parecia uma garota de sete, oito anos.
“Sinceramente, não existe criança mais bagunceira do que você, veja a situação em que já está seu quimono novo que acabei de te vestir! Olhe isso aqui, essa graxa de carro não quer sair de jeito nenhum...”
A mulher ralhava com o filho enquanto esfregava na tábua de lavar um quimono de verão branco.
Eu me aproximei deles com determinação. Eu já havia demostrado em minha barraca noturna mais de uma vez como conseguia tirar mesmo de panos brancos a graxa de máquinas. Eu consegui, com confiança, oferecer meu sabão em pó para aquela senhora:
“Eu lhe asseguro que a mancha sai, se for preciso eu demostro aqui mesmo”
“Então me deixe um saco dele, por favor”, a senhora disse enquanto tirava da carteira em seu bolso vinte centavos e me entregava.
“Muito obrigada!” eu disse e, assim que recebi o dinheiro, sai correndo daquela viela para a rua principal. Em seguida, entrei voando pela porta de vidro de uma loja de bolinhos de arroz que tinha escolhido e comi dois pratos de bolinho de arroz com geleia de feijão. Não foi suficiente para saciar a fome de um dia inteiro sem refeição, mas, no entanto, me encheu de um tanto de energia.
Com o tempo, no entanto, eu já estava começando a me acostumar a fazer negócios como uma vendedora ambulante. Eu já não sofria tanto para entrar na casa das pessoas, mas, ainda assim, as vendas não iam tão bem assim. Quando eu conseguia trinta centavos de venda era um grande feito. Tirando os trinta porcento dos trinta centavos, eu só recebia nove centavos. Não tinha como isso ser o suficiente para seguir vivendo um dia depois do outro. Portanto, eu só podia vender o que tinha no estoque sem chance de comprar mais abastecimento.
Como eu andava o dia todo os saltos de meus tamancos altos se desgastavam bastante, mas eu não podia comprar pares novos. Por fim, então, eu ia buscar nos lixos das mansões afastadas da cidade os getas de senhoritas e, às vezes, de rapazinho para calçá-los e continuar caminhando pela cidade.
Quanto a escola, apesar de ter o tempo necessário, não tinha condições de arcar com as despesas e, por isso, continuei frequentando somente a Seisoku. Naquela época eu já estava no nível do segundo ano, mas, como estávamos tendo um curso intensivo de verão, eu precisava estar às sete horas na escola.
Eu acordava bem cedo e lia um versículo da bíblia. Então, próxima a parede, fazia orações de joelhos e sai de casa para ir à escola. Como eu havia vendido o balde de banho, já não podia lavar o rosto e, por isso, eu lavava-o na pia próximo a saída da latrina do Parque de Yushima a caminho para a escola.
Quando tinha dinheiro, passava pela Ponte Shôhei e fazia meu desjejum em um refeitório barato que ficava de baixo dos trilhos, mas nos dias que não tinha um centavo pegava o caminho mais curto para a escola indo por Juntendô e passando por Ochanomizu.
Eu tinha encontrado uma grande benção desde que tinha começado a frequentar esse curso. Isto é, uma das duas ou três mulheres que também frequentava o curso, a Kawada, todos os dias trazia consigo uma marmita cheia de arroz para mim. Kawada era a irmã mais nova de um socialista que vivia nos arredores de Totsuka.
Contudo, ainda assim, eu já havia perdido o controle das coisas. Nisso, eu repentinamente me recordei das minhas roupas de inverno e tratei de colocar duas ou três peças dentro de meu embrulho de pano e seguir para a loja de penhores.
“Seja bem-vinda!”, o atendente me recepcionou desviando os olhos por um momento do ábaco que manipulava naquela loja escura, mas, certamente julgando minha aparência deplorável, voltou-se mais uma vez para o ábaco e para o caderno de contas à sua frente.
Hesitante, tirei os artigos que desejava penhorar e pedi para que fizesse a troca. Ele me olhou um tanto desconfiado e, me encarando fixamente, disse:
“Hmm... Você possui recomendação de alguém? Nós não aceitamos clientes que penhoram pela primeira vez aqui...”
“Não, eu não possuo nenhuma recomendação, mas eu moro bem aqui do lado, se for o caso, o senhor pode ir até lá confirmar...”
No entanto, ele já não queria mais saber de mim. Só me respondeu com fastio enquanto voltava-se mais uma vez para o caderno de contas:
“Sim, eu entendo, mas pelas normas da casa não aceitamos clientes que não possuem uma recomendação”
Como eu não podia fazer nada quanto aquilo, voltei para casa desanimada. Então, buscando algo que poderia vender, revirei minha bagagem.
A única coisa que possuía que podia transformar em dinheiro era um livro de álgebra, que comprei em um sebo por um iene e cinquenta centavos, e um dicionário Inglês-Japonês, que valia uns três ienes. Peguei o livro de álgebra que, na minha atual situação, já não me era necessário e fui até o sebo. Eu achei que receberia pelo livro por volta de setenta ou oitenta centavos. Mas quando fui vende-lo, só me pagaram vinte centavos. – Quando, em outra ocasião, passei por aquele sebo mais uma vez e vi aquele livro com uma placa indicando o valor de um iene e setenta centavos senti um amargo rancor.
Contudo, naquela ocasião, vinte centavos eram o suficiente. Eu peguei aquele dinheiro e corri imediatamente até uma cafeteria. Então enchi meu estômago faminto.
Quando ia para a cafeteria eu, às vezes, estava com Itô.
Como Itô só trabalhava de carroceiro durante a noite seus ganhos eram baixos. Mas, ainda assim, quando eu estava com muitas dificuldades, ele diminuía seus próprios gastos com comida para me trazer vinte ou trinta centavos. Quando nos encontrávamos por acaso indo da escola para casa, quase sempre entrávamos em um restaurante popular.
Mas, nessas ocasiões, ele só falava de questões de fé.
“Como anda sua fé ultimamente?”
Eram essas as primeiras palavras que Itô me dirigia ao me encontrar. Quando trocávamos conselhos intricados a primeira coisa que Itô fazia, não importando o lugar, seja no meio da rua ou debaixo de algum telhado, era se ajoelhar e rezar com fervor.
Itô me disse que eu precisava sem falta participar dos serviços sagrados das manhãs de domingo. Ele me dizia para orar seja quando estivesse com problemas seja quando estivesse sofrendo. “A oração vai lhe dar forças”, ele me encorajava. Mas para mim que, mesmo se recebesse forças, nada podia fazer, as palavras de Itô eram algo que misteriosas. Mas eu agia assim como ele me dizia e comparecia na igreja e realizava minhas orações.
Eu não acreditava em milagres. Mas, mesmo assim, Itô e Akibara me diziam que bastasse que eu rezasse que, uma hora ou outra, eu iria acabar entendendo. É claro, mesmo sem crer eu só precisava acreditar em Itô, ir à igreja, rezar e, além disso, acordar mais cedo para fazer a faxina na latrina da pousada para servir aos outros. – Isso também, claro, porque Itô me disse para assim o fazer...
Desta maneira, eu servia tanto a deus quanto aos seres humanos. Mas eu não recebia retribuição alguma por nada disso. Fazia três dias que eu não comia nada. Sai a procura de um outro emprego, mas nem mesmo com um novo emprego a providência me agraciou. E isso não era tudo, eu tinha recebido uma cobrança do dono da casa porque o valor que eu havia pagado já tinha se esgotado. Obviamente não tinha como eu pagar.
Eu finalmente me decidi ir trabalhar de auxiliar doméstica, como Akibara tinha me recomendado. Reuni meus pertences que ainda não tinha vendido e deixei aquela casa.
Quando estava me retirando, coloquei meus pertences na entrada e, curvando minha cabeça, saudei respeitosamente: “muito obrigado pelo longo período”. O casal que fazia a refeição no quarto ao lado da entrada nem mesmo pausaram a refeição e só viraram a cabeça um pouco para meu lado dizendo:
“Não foi nada, adeus”, essas foram as únicas gélidas palavras que me dedicaram.
Toda a minha consideração em não os acordar quando chegava tarde, em não voltar para ao quarto que tinha alugado e dormir ao leu, de ter mesmo limpada a latrina, que não era sequer minha obrigação, apesar de estar atolada com minhas próprias dificuldades, tudo isso não valeu de nada. O que o cristianismo ensina é realmente o correto? Ou não passa de uma anestésico para enganar o coração das pessoas? Não passa de bravata todos esses ensinamentos se a sinceridade e o amor que influenciam os outros não servir para fazer nosso mundo um lugar melhor para se viver.
Auxiliar doméstica
Através da ajuda de Akibara, consegui um emprego como auxiliar doméstica em uma loja de açúcar de um comerciante chamado Nakagi que ficava em Shôten-chô, em Asakusa.
Viviam ali, contando comigo, onze pessoas: um casal de 54, 55 anos, um casal mais novo e suas duas crianças, outros dois filhos do casal mais velho, um funcionário da loja e uma empregada.
O patriarca mais velho tinha cedido a loja para o filho, não fazia nada dentro de casa e sempre estava fora e voltava, quando muito, uma vez em cada cinco dias. Pelo que eu fiquei sabendo depois, ele passava os dias e noites nas redondezas do Parque Asakusa fazendo apostas e bebendo com outros de seu tipo. Além disso, parece que ele tinha uma amante secreta por aqueles lados e passava a maior parte do tempo lá junto dela.
Já fazia pouco mais de um mês que eu estava ali naquela casa quando uma mulher de 25, 26 anos apareceu por lá dizendo: “faz um tempo que não vinha visitar o templo de Shôten e aproveitei para dar uma passadinha aqui”, pouco depois daquilo a dona da casa me contou: “aquela é a amante do pai”. Era uma mulher que, apesar de trazer um casaco texturizado e de listras largas nos ombros e o cabelo em coque na parte de trás da cabeça, era elegante com um que de experiente.
A matriarca mais velha era uma senhora doente por limpeza que não permitia que se andasse nos tatames do quarto se não estivessem calçando pantufas, mas o mais esquisito era a contradição de que ela não se importava com que aquelas pantufas pisassem diretamente as tabuas da latrina. Ela, ainda naqueles tempos, conservava um lustre de bela mulher que permitia que imaginássemos sua beleza em tempos de jovem, e era do tipo que demorava duas horas inteiras para se preparar depois de um banho.
Quando o seu marido voltava esporadicamente para casa, ambos se sentavam um de frente para o outro entre o braseiro e ela reclamava sem pausa por alguma coisa, mas parece que o motivo era sempre a amante.
“Cala a boca, vê se esquece isso...”, vi muitas vezes o marido dela, que mal havia chegado, sair mais uma vez nervoso após dizer tais coisas.
O casal mais novo era composto por um homem comum, sem muitas peculiaridades e irrepreensível, a mulher era uma mulher bastante bela e a relação entre os dois definitivamente não era ruim, pelo contrário, era harmoniosa bem acima da média.
Mas as coisas entre a sogra e a nora não pareciam ser tão boas, esta última sempre estava se diminuindo em apreensão. Era evidente aos olhos de todos que seu marido a protegia seja da sombra seja da luz. A sogra sempre resmungava algo quanto a isto como se não estivesse de acordo e, às vezes, até chegava a cair em um choro histérico se jogando sobre o braseiro alongado.
Um dos filhos mais novos, Gin, tinha 24, 25 anos e era o mais metódico e, ao mesmo tempo, o mais pão duro da casa. Ele ainda era solteiro e ficava dentro de casa sem um rumo certo, mas, quando ninguém mais estava em casa, ele abraçava e beijava sua cunhada para o constrangimento daquela tímida moça. Ele vivia dizendo que encontraria uma esposa que fosse mais bonita que do que ela e, mesmo que ainda não tivesse nem um nome nem uma data em mente, já tinha comprado um guarda-chuva feminino e preparado um cartão de visita com as bordas douradas escrito somente “Nakagi” que ele se divertia em deixar guardado na gaveta de sua pequena cômoda.
O caçula frequentava uma escola secundária particular em Kanda e era um tanto diferente de seu outro irmão. Ele era um homem magro, alto, silencioso, com um rosto viril que dava às pessoas uma sensação bastante obscura e pesarosa. Não era lá muito estudioso e, pela conversa do funcionário da loja, ele chegou mesmo a enviar um saco de açúcar para a casa do professor responsável por sua turma, mas ainda assim foi reprovado.
Eu não sabia quanto aquela família tinha de riqueza acumulada, mas já tinha sido devidamente dividida entre eles e continuavam somente comendo juntos a refeição do dia a dia.
Quando cheguei a esta casa, pude sentir profundamente a solidão de deixar a escola, que tinha sido meu único objetivo ao vir para Tóquio, e trabalhar como empregada doméstica, e, principalmente, senti também que o ambiente nesta casa não se adequava à minha personalidade e fiquei, por algum motivo, depressiva. Eu não tinha nenhuma ideia do que fazer e meio que só para falar de minha tristeza, escrevi uma carta para Kawada tão logo cheguei naquela casa. Kawada veio me visitar no dia seguinte.
Eu me senti eufórica só de ela ter vindo me visitar. Tirei uma folga e saímos as duas andando sem rumo pela cidade.
Contei para Kawada coisas que não havia conseguido escrever na cara. Ela, ao ouvir minha situação, se apiedou ainda mais de mim. Ela me disse:
“Sabe, ficou decidido que logo logo meu irmão irá abrir uma gráfica na cidade. Então? O que você acha ir trabalhar lá? Acho que você consegue ir para a escola e trabalhar lá ao mesmo tempo...”
É claro que eu gostaria de ir se me fosse possível. Mas, para tanto, eu precisaria me tornar companheira dos socialistas e me sentia mal perante Itô por isto.
“Obrigada! Nada seria melhor para mim. Mas”, eu disse e contei um pouco sobre Itô, “se eu realmente for eu teria que me indispor com o Itô e isso me causa pena...”, terminei relutante.
“Isso é verdade”, Kawada disse e pensou por um momento, mas logo levantou o rosto alegre e disse:
“E o que tem de mal nisso? E se você fosse só depois de retribuir tudo que ele te fez de bom – quer dizer, sentimentalmente é um pouco mais difícil, mas ao menos retribuir materialmente tudo que ele te fez de bom... Eu acho que, assim, se for algo desse nível, eu bem posso conseguir pensar em uma saída...”
Eu já estava, de antemão, em um período em que queria me distanciar da cristandade. Cheguei a pensar que a ideia de Kawada era uma oportunidade única. Então, mesmo que achasse um pouco desavergonhado de minha parte, decidi deixar tudo nas mãos de Kawada.
Dois dias depois chegou uma ordem de pagamento de 25 ienes no nome de Kawada. Eu fui até o correio buscar o dinheiro com o coração transbordando gratidão pelo seu ato de gentileza. Nisso, fui até a matriarca mais velha pedir as contas. No entanto, ela, que tinha acabado de retirar um tumor da mão, enquanto olhava para a mão enfaixada e com o rosto preocupado disse, como se tivesse me pedindo ajuda:
“Então, Fumi. Se você sair agora nossa casa não vai conseguir ir para frente. Como você mesmo sabe, a minha nora tem aquele corpo frágil e, além do mais, está gravida agora, mesmo a Kiyo (o nome da empregada) é uma preguiçosa e não da conta do serviço e, para piorar, minha mão está nesse estado...”
Me sentia mal ao escutar essas palavras, mas, ao mesmo tempo, também me senti culpada perante Kawada.
“Sim, eu entendo a situação, senhora... Mas eu não acho que vou ter outra oportunidade de emprego tão boa quanto esta...”
A matriarca, no entanto, não queria que eu a deixasse de forma alguma. “Então fique pelo menos até minha mão melhorar, eu te peço!”, ela chegou a me dizer.
Eu não conseguiria sair ignorando-a depois de ter me dito tudo isto. Então eu, sem alternativas, desisti de tudo e concordei em ficar por ali até o fim do ano.
Eu estava me sentindo muito mal em desperdiçar toda a gentileza de Kawada. Mas eu nada podia fazer e queria, no mínimo, devolver aquele dinheiro. Mas ela não quis nem receber o dinheiro de volta.
Itô ia até a loja de dois em dois dias para conversar sobre religião com o funcionário da loja, Yamamoto, e alguns familiares da casa que eram todos amigos de fé dele para, logo em seguida, ir embora. Mas, naquela época, ele parecia estar sofrendo muito por não poder estudar tanto quanto deveria porque estava muito ocupado em conseguir o pão de cada dia, apesar de que os exames estavam chegando. Nisso, pensei em dar o dinheiro que tinha ganhado de Kawada integralmente para ele sem nenhuma pompa ou circunstância para tentar ajudá-lo de alguma forma a se acalmar e poder estudar. Contudo, após ter decidido agir desta maneira, Itô não aparecia por ali por nada.
Eu já estava cansada de ficar ali esperando. Nisso, fiz uma ordem de pagamento e a enviei para Itô.
Eu juntei a ordem de pagamento em um envelope junto a uma carta que dizia: “explico os detalhes em outra oportunidade, mas como eu tinha comigo um dinheiro que não estava precisando, decidi lhe enviá-lo. Acho que com este valor você consegue passar por volta de um mês. Por favor, tire uma folga a partir de agora e estude com afinco para a prova”. É claro que no envelope eu assinei como “Kaneko Shô” para me fazer passar por homem.
Dois ou três dias depois Itô veio até a loja. Como de costume, eu o acompanhei até a estação de trem.
Quando ficamos sozinhos, Itô disse:
“Obrigado pelo dinheiro. Mas eu me assustei um pouco com aquilo, né. Se você tiver alguma coisa para conversar comigo, me fale quando eu vier aqui e, por favor, não me envie mais cartas. Se souberem que recebo carta de mulheres minha credibilidade vai acabar...”
“Sim, mas eu não podia mais esperar. Além disso, foi pensando nisso que eu escrevi o conteúdo e assinei como um homem o faria...”
“Sim, eu sou muito grato por isso. Mas não me envie cartas...”
“Me desculpa”, eu respondi com tristeza. Então nos separamos.
Mas eu definitivamente não tinha remorso algum por Itô. Muito pelo contrário, a confiança que sentia por ele tomava cada vez mais conta de mim. Sempre que Itô vinha nos visitar eu o acompanhava até a estação. Mesmo quando já era de noite a gente seguia conversando longamente enquanto eu dizia coisas do tipo “só até aquela lâmpada ali”, “só até aquele poste”. Como o pessoal da casa confiava tanto em mim quando em Itô, nenhum deles suspeitariam de nada entre a gente.
Naquela época, eu tinha uma vida relativamente mais tranquila porque tinha acabado de tirar o fardo da escola de meus ombros por um tempo. Portanto, diferentemente de antes, eu ajudei bastante Itô.
Sempre que eu acumulava um ou dois ienes de gratificação e os enviava a Itô. Mesmo quando não tinha dinheiro para enviar, eu ficava pensando no que poderia fazer por ele. Então, aproveitando do tempo que tinha ganhado por conta do costume que aquela família tinha de ir dormir sempre a meia noite ou uma hora, eu fazia algo para Itô.
Certa noite, como de costume, eu acompanhei Itô até a estação. Sai pela porta de trás para alcançar Itô enquanto trazia nos braços um embrulho de pano volumoso. Quando Itô viu aquilo, disse:
“O que raios é isso?”, perguntou suspeito.
“Isso? Ah, tem ficado bem frio, não é? Então eu fiz uma almofada de sentar para você. E fiz um travesseiro também” eu respondi, “você não tem uma almofada de sentar e seu travesseiro está imundo, não é?”, eu disse.
Itô se assustou e replicou:
“Como você sabe que até meu travesseiro está imundo?”
“Como eu sei? O funcionário lá da loja foi até sua casa para tirar um cochilo tarde dessas, não foi? Quando o Yamamoto voltou para casa ele falou que seu travesseiro estava mais sujo que estrado de pocilga. Também fiquei sabendo da almofada nessa ocasião”
“E por isso você os fez para mim?”
“Isso mesmo. Na realidade, eu pensei em usar as mangas de minha camisa feitas de musselina, mas como ela é vermelha achei melhor comprar um tecido de chita. Mas, para que fosse bem confortável, fiz a almofada bem maior e mais grossa do que o normal. Quanto ao travesseiro, como não sabia o tamanho que te agradaria, fiz do meu jeito, mas se você não gostar é só me falar que eu refaço”
“Obrigado”, ele repetiu várias vezes o agradecimento. Eu, de minha parte, também senti uma alegria radiante.
Nunca vou me esquecer, foi na noite do dia trinta de novembro.
Itô apareceu repentinamente depois de uma longa ausência. Mas, diferente do habitual, trazia o rosto pálido e não parecia bem. Preocupada com o que tinha acontecido, tratei de terminar o mais rápido possível os afazeres da casa. Então, como de costume, acompanhei-o até a estação após comunicar o pessoal da casa.
Andamos cerca de setecentos ou oitocentos metros e Itô continuava em silêncio. Ele só reagia a minha conversa e mais nada. Mas, assim que chegamos em um local escuro e que não tinha muita movimentação, ele parou repentinamente e disse:
“Fumi, eu preciso fazer uma confissão”, ele iniciou a conversa com um tom sério.
“Eu me equivoquei ao seu respeito. Na realidade, eu pensava que você fosse uma delinquente. No entanto, eu finalmente pude entender. Você é verdadeiramente uma pessoa do amor. Faz muito tempo que acompanho o chefe do pelotão e já estive com muitas outras irmãs de fé. Mas eu nunca conheci alguém com um sentimento feminino tão caloroso e terno quanto você. Eu peço perdão diante de você por minha ignorância”
Aquelas palavras me pegaram de surpresa. Eu olhei para o rosto de Itô. Ele o tinha sério. Então é claro que ele não estava mentindo para mim.
Delinquente! Eu senti como se tivesse sido espetada por uma agulha bastante afiada ao escutar estas palavras. Mas, o “nunca conheci alguém com sentimentos femininos tão calorosos” que veio depois me deixaram indescritivelmente envergonhada. Um sentimento esquisito de felicidade e tristeza.
Eu escutei sua conversa calada. Eu não disse uma palavra. Então, quando me dei por mim, já tínhamos passado pelo portão Kaminarimon e chegávamos a Ponte Kikuyabashi. Além do mais, vi que o relógio da estação já marcava mais de onze horas e que as lojas ao redor já estavam fechando.
Eu parei assustada.
“Já são mais de onze horas! Vamos nos despedir por aqui”
“Verdade. Já está bem tarde, ne?”, Itô disse um tanto calmo. Mas, apesar de ser ele sempre a me dizer para ir embora, hoje, pelo contrário, não fez menção de se separar de mim.
“Na verdade, eu ainda tenho algo para falar com você. Não quer ir andando até Ueno? Você pode voltar para casa de trem”
“Está bem, então vamos andar mais um pouco”, respondi rapidamente como se algo no fundo de meu coração expulsasse minha razão.
Então voltamos a andar em silêncio e pensativos. Quando chegamos próximo às margens do lago Shinobazu de Ueno nossos pés pararam instintivamente.
Era uma noite sossegada. Não havia ninguém por ali. Itô se agachou debaixo do salgueiro as margens do lago e, enquanto escrevia algo no chão com um graveto, retomou sua conversa:
“Como eu te falei agora a pouco, desde que você foi morar em Yushima eu tenho lutado para me controlar... Mas recentemente eu percebi que já não podia fazer mais nada. Eu já não podia me satisfazer em te ter somente como vizinha... Você certamente sabe o que eu quero dizer... É você que vem a minha mente enquanto eu leio os livros. Se fico um dia sem te ver, fico inconsolavelmente triste. E, por isso, meus estudos não progridem, minha fé começou a ficar abalada, eu tenho sofrido intensamente durante todo esse mês...”
Era, sem dúvidas, o que eu secretamente esperava ansiosa que acontecesse. Eu controlei meu peito saltitante e o escutei em silêncio.
Itô continuou:
“Nisso, eu pensei muito no assunto, e a solução que eu cheguei foi de que eu preciso te esquecer para retornar a quem eu era antes... Foi o que eu decidi. Eu acho que assim é melhor para nós dois... é um grande pecado fazer algo incautamente mesmo que não tenhamos nenhuma segurança de poder vivermos juntos até o final. Isso iria arruinar nossos destinos. Você também não acha? Não tem como isso ser uma coisa boa...”
Fiquei um pouco decepcionada ao me perguntar o porquê de ele pensar dessa foram. Mas Itô continuou. Enfatizando cada palavra como se quisesse se autoconsolar:
“Então eu decidi que hoje seria a última noite que nos encontraríamos. Sim, se eu não me encontrar mais com você por certo que também deixarei de pensar em você. Hoje também é o último dia de novembro. Eu vim te encontrar para fazer com que hoje seja um marco para o dia em que nos separaríamos, será que você entende meus sentimentos... A partir de hoje eu não te visitaria mais. Vou provar que consigo vencer este eu que carrego aqui dentro. ... Então é isso, vamos nos separar. Eu rezo pela sua felicidade...”
Ele se levantou assim que terminou o que tinha para dizer.
Interiormente eu estava insatisfeita. Mas que apostolo de amor mais covarde! Eu queria dizer algo. Mas como Itô já estava demostrando que iria partir eu, sem mais o que pudesse fazer, só respondi:
“Então vai ser assim? Entendo, adeus...”
Itô partiu em passos rápidos sem olhar para trás como se tentasse fugir de algo que o perseguia obstinadamente.
Eu fiquei com meus olhos sobre ele sentindo-me solitária, triste e, ainda assim, de alguma maneira, sorridente. Até que sua figura sumisse ao longe...
A família da Loja de Açúcar Nakagi levava uma vida bem displicente. Shin que ainda frequentava a escola precisava sair de casa às sete da manhã e, portanto, nós tínhamos que acordar às cinco para fazer os preparativos necessários, mas o jovem casal da casa só acordava quase uma hora depois de Shin sair para a escola, Gin, por seu lado, acordava por volta das dez e, por último, a matrona acordava às onze e interditava a apertada cozinha por quase meia hora enquanto lavava seu rosto. A sopa de missô esfriava e, portanto, tinha que ser requentada umas três, quatro vezes. Quando ela terminava seu café da manhã e saia com um nabo para dar de oferenda no Templo Shôten, já precisava começar a fazer os preparativos para o almoço do jovem casal sem tempo nem mesmo para tirar a mesa do café. Dessa maneira, acabávamos passando o dia todo só com trabalhos na cozinha. Não, não era só isso. Não era tão frequente acontecer para o café ou almoço, mas para a janta era costume daquela família mandar que fossemos buscar comida ocidental, donburi, sushi ou ensopados, mas, como acordavam tarde, o jantar só era servido lá para as nove, dez horas, dependendo da situação só lá para as onze, meia noite e nós precisávamos ir buscar aquilo nesses horários. Enquanto o pessoal da casa comia e conversava até uma, duas horas da manhã a noite ia ficando cada vez mais avançada e nós só conseguiríamos dormir umas quatro cinco horas por noite.
Era uma rotina uma tanto sofrível. O excesso de trabalho e a falta de sono me custou tanto quanto qualquer outro trabalho que já tive. E, mesmo assim, eu queria ser fiel àquela família. Neste momento preciso fazer uma confissão. Eu, a bem da verdade, não fazia tudo aquilo pelo bem daquela família, fazia para que gostassem de mim, eu me levantava mais cedo que minha companheira Kiyo e, quando ela acordava, os preparativos para a refeição já estavam quase todos prontos, quando os amigos de Shin vinham até a casa eu, como que para mostrar que não era uma mera empregada, propositalmente levantava tópicos sobre a escola, olhava seus cadernos de matemática e apontava erros, fazia tudo isso para me exibir. Em outras palavras, eu estava tentando ofuscar meus companheiros de trabalho para me tornar a queridinha da casa. Eu até mesmo cheguei a ferir a autoestima de Shin para me gabar de minha superioridade.
Pensando em retrospectiva, não existe nenhum outro ato que eu tenha feito que se compare a ignobilidade deste. O quão egoísta e desprezível eu era! Sempre me arrepio toda vez que me lembro daqueles momentos.
O tão esperado fim de ano finalmente chegou. Já passava de meia noite quando finalmente tinha terminado todo o trabalho, arrumei, então, minhas malas, penteei meu cabelo e fui até onde todos se encontravam para me despedir.
A matriarca me agradeceu: “você nos ajudou muito”, e continuou: “aqui está um agradecimento de meu marido. Queríamos poder lhe dar mais do que isto, mas, como Kiyo é mais velha e está conosco a mais tempo, precisávamos equilibrar as coisas, espero que você entenda”, então me entregou disposto sobre uma bandeja um envelope embrulhado em papel de arroz com cordões entrelaçados de enfeite.
Sentindo-me livre, sai pela porta da cozinha com o embrulho de pano nas costas. Fui até a estação de trem e o último trem chegou bem junto comigo. Embarquei e fui para Koishikawa onde Kawada vivia.
O trem estava somente com treze ou quatorze passageiros. Sentei-me em um assento largo e vazio próximo a porta e abri o envelope que havia ganhado dos Nakagi. Me assustei com o fato de que dentro do envelope só havia três notas de cinco ienes.
Era o valor que eu recebia por três meses e uma semana de trabalho ininterrupto e privação de sono. Aquilo ia muito além das minhas expectativas. Tive vontade de me amaldiçoar em voz alta.
Eu que estava errada em não ter determinado quanto eu iria ganhar. Mas eu só agi assim seguindo os ensinamentos de Akibara. Foi o Akibara que me disse: “você não deve falar sobre dinheiro. Isso seria vulgar de sua parte. Mesmo que você não fale nada sobre isso, os Nakagi são uma família de comerciantes prósperos e não te pagarão um valor insignificante. Basta confiar neles”. Mas não era justamente um valor insignificante que eles haviam me pagado? Eu não tinha abandonado minha única ambição para ficar trabalhando para os Nakagi mesmo querendo tanto estudar, mesmo após todo o esforço de Kawada, eu não tinha feito tudo isso para o bem dos Nakagi? E, ainda assim, eles não me pagaram mais do que cinco ienes por mês por todo o meu serviço. Quem me pagou aquele mísero salário foi o patriarca que sustentava uma amante, vivia em cafés e em meio a apostas, foi a matriarca que levava duas horas para se vestir, ia dormir altas horas da madrugada e passava a noite acordada aproveitando todos os luxos só para eles mesmo enquanto permitiam só quatro ou cinco horas de sonos para as empregadas e nenhum direito a folga. Mas que mundo injusto! Mas que atitude egoísta e insolente!
Senti-me mais inclinada a zombar de mim mesma do que me zangar com os outros. Amassei aquelas notas e papeis nas minhas mãos e os enfie em meu bolso.
Andarilha das ruas
Após deixar a loja de açúcar eu fiquei hospedada por um tempo na casa de um ou dois “revolucionário” e, finda essas andanças, eu acabei caindo novamente na casa de meu tio-avô em Minowa.
“Eu não te falei que isso era impossível? É impossível conseguir estudar enquanto vende jornais ou toma conta de barracas noturnas. Mesmo um homem não conseguiria dar conta de tanto, imagina uma mulher! O melhor que você tem a fazer e desistir de uma vez dessa ideia de querer estudar”
Meu tio-avô me repreendeu. Mas, mesmo assim, talvez resignado ao fato de que não havia nada que ele pudesse fazer em relação aos meus desejos obstinados, não tentou me forçar a abandonar a escola. Nisso, eu passei a ajudar nos afazeres da casa dele enquanto voltava a frequentar a escola.
Eu acordava às cinco e estudava sob uma luz baixa enquanto preparava o arroz e sopa de missô. Então, após montar para todos a mesa do café, terminava primeiro meu café e saia para a escola enquanto eles ainda dormiam e voltava só depois do almoço. Assim que chegava em casa me devotava a lavar roupa, preparar comida e fazer faxina na casa.
Não tinha muita diferença da correria em que eu vivia na loja de açúcar. Mas, de qualquer modo, aqui era a casa de parentes e eu, portanto, tinha uma maior flexibilidade nos horários. Além do mais, eu recebia cinco ienes por mês pelos meus trabalhos e, destes, dois ienes eu destinava a mensalidade, outros dois ienes e trinta centavos iam para meus gastos de locomoção me sobrando, no fim do mês, só setenta centavos que era o suficiente para comprar caneta e tinta. Entretanto, foi algo bem doloroso para mim não poder comprar nenhum livro bem nessa época que meu apetite por leitura estava mais forte do que nunca.
Eu conheci dois socialistas na escola. Um deles era um coreano de poucas palavras, quieto e de feições pesadas que se chamava Seo. Ele se sentava na cadeira logo a minha esquerda e nos intervalos ficava calado em seu canto lendo a revista Kaizô.
Ele não estava no Japão fazendo intercâmbio porque sua família na Coreia era abastada, mas, assim como eu, estudava enquanto tinha que enfrentar o dia a dia e, provavelmente, não tinha mais folga para frequentar uma escola. Finalmente, depois de um tempo, parou de vir. Mas, um ano depois daquilo, quando eu já estava vivendo junto a Pak, Seo voltou a frequentar nossos grupos e publicamos juntos boletins e organizamos movimentos. Ele, no entanto, tinha a constituição frágil e sempre estava doente e, pouco depois, retornou para sua terra natal, contudo, no primeiro inverno em que já estávamos presos, chegou-nos a notícia de seu falecimento em um hospital em Keijô por alguma complicação na pleura ou algo do gênero.
O outro socialista era um homem chamado Ônobô, provavelmente um dos demitidos devido à greve dos trabalhadores da Ferroviária Municipal de Tóquio no ano anterior, e que se sentava bem a minha frente lendo o Reader com uma voz chorosa. Naquela época, ele pertencia à Associação Shin’yûkai, mas não era lá um homem muito centrado e era o que poderíamos chamar de “socialista de fachada”. Mas ele sempre trazia boletins, panfletos e folhetos da associação e, graças a ele, conseguia pegar esses textos emprestados para ler e pude, com o tempo, compreender bem o pensamento e a essência desse tal de socialismo.
O socialismo não me acrescentou especialmente nada de novo. A única coisa que ele me ofereceu foi uma teoria que justificava como legítimo tudo que eu sentia a partir de minhas próprias experiências até aquele momento. Eu era pobre. Eu ainda sou pobre. E, por conta disso, eu fui sistematicamente escravizada, maltratada, culpabilizada, oprimida, usurpada de minha liberdade, explorada e governada por pessoas com dinheiro. É evidente, portanto, que eu sempre guarde no fundo do meu peito uma antipatia para com aqueles que detêm tais poderes. Ao mesmo tempo em que me solidarizo profundamente com aqueles que se encontram em uma situação similar a minha. Enquanto eu estava na Coreia, eu empatizava com o servente da casa de minha avó, Kô, e até mesmo sentia como se o pobre cão que eles criavam fosse meu camarada, e, além disso, apesar de não ter registrados aqui, também me solidarizava infinitamente com os coreanos abusivamente oprimidos, maltratados e explorados que tive contato enquanto estive na casa de minha avó na Coreia, e, no fim, tudo isso é a manifestação destes sentimentos. As ideias socialistas serviram como estopim para todo esse sentimento de revolta e simpatia que queimava dentro de meu peito.
Ah!....... Como eu gostaria de fazer algo! Queria lutar sem me importar em sacrificar minha própria vida pelo bem de nossa classe de oprimidos.
Entretanto, eu não sabia como colocar em prática essas ambições. Eu era impotente. Mesmo que quisesse fazer algo, eu não tinha condição alguma para tanto. Eu não passava de uma jovem rebelde sem direção com o peito cheio de insatisfações, queixas e revolta.
Naquele momento, eu sentia isso tudo e transbordava de raiva. Certo dia, quando eu estava voltando para casa da escola e seguia pelo beco da loja de meu tio-avô para entrar pela porta de trás, alguém me chamou:
“Fumi, Fumi!”
Eu me virei pensando em quem poderia estar me chamando.
Segawa estava ali bem diante de mim. Eu me assustei. Senti como se a palpitação em meu peito tivesse ficado mais violenta.
“Mas não é você Segawa? O que aconteceu?”
Ele me respondeu sereno e com um sorriso no rosto:
“Te esperei um tempão por aqui nessas vizinhas”
“Como assim me esperou? Como você ficou sabendo que eu estava por aqui?”
“A gente acaba sabendo essas coisas, né, eu te procurei bastante. Mas isso não importa, vem cá. Eu queria conversa com você”
Eu dei meia volta com Segawa me puxando. Fomos até uma beira de estrada fora da vista lá de casa e ficamos conversando de pé a sombra de uma cerca. Mas não era como se ele tivesse algo em especial para tratar comigo. Ele só veio me encontrar. Então tentou me convidar para ir visitar seu alojamento.
Ele ficou sabendo que eu estava com meu tio-avô através de meu tio do templo que ele encontrou em um curso noturno de alguma faculdade privada. Parece que ele estava trabalhando para algum departamento do governo.
Desde que eu tinha vindo para Tóquio para trabalhar e estudar por conta própria eu sequer tinha pensado em Segawa, mas, ao reencontrá-lo naquele momento, eu realmente sentia que algo me atraia a ele. Eu combinei que iria fazer uma visita ao seu alojamento e nos separamos.
Quando estava chegando as férias de verão, meu pai me enviou um pouco de dinheiro, uns quatro ou sete ienes, de Hamamatsu me falando para ir para lá durante as férias. Não era como se quisesse voltar para a casa de meu pai, mas desde que eu havia vindo para Tóquio estava exaurida e pensei que seria a oportunidade perfeita para um descanso e então acabei voltando.
Eu estava grata por conseguir descansar um pouco minha carne depois de uma rotina tão cansativa para meu corpo. A própria cidade, se comparada com a agitação e correria de Tóquio, era como se estivesse dormindo de tão sossegada. Eu ficava indescritivelmente feliz principalmente quando sentia um revigoro ao acordar cedo para andar à beira-mar ou quando andava pelos arrozais e plantações cobertos pela neblina úmida da manhã. Ali era quando eu realmente parecia poder vagar pelo paraíso da liberdade. Involuntariamente, eu abriria toda a minha boca e inspiraria e expiraria ar rico em ozônio tanto quanto podia, sentindo como se eu estivesse fundindo com o próprio solo.
Contudo, a atmosfera na casa de meu pai era a mesma de dois, três anos atrás. A presunção, a vaidade, a ostentação vazia e sua avareza estava mais forte do que nunca e cada uma dessas coisas me deixavam depressivas. Eu e meu pai continuávamos repetindo nossas querelas, discussões e detestáveis conflitos.
Então, sem suportar ficar mais tempo na casa de meu pai, fui para Kôshû. Mas lá também não era diferente. Minha mãe tinha saído da casa dos Tawara e estava mais uma vez solteira enquanto trabalhava na fábrica têxtil, minha avó e tia, se aproveitando do fato de eu estar estudando por conta própria, tentavam me persuadir para que eu me formasse, virasse professora do primário e sustentasse minha mãe. Estavam tentando me imputar a obrigação de cuidar de minha mãe, a mesma mãe que abandonou a própria filha em busca de sua própria segurança, obrigar a mim que me matava de trabalhar para poder estudar sem nem mesmo saber o que me aguardaria no fim disso tudo.
Eu já não suportava ficar ali também. Eu precisava voltar para Tóquio.
Eu voltei para Tóquio no fim de agosto. Em um entardecer, quatro, cinco dia depois de ter chegado, eu tomei uma chuvarada na estação de baldeação, em Kasuga-chô, no caminho de volta para casa após uma tarefa que me deram para fazer na cidade. Nisso, eu, depois de muito tempo, me enfiei no alojamento de Segawa que vivia naquelas redondezas.
Como de costume, fui até lá sem avisar, subi as escadas correndo e abri a porta corrediça de papel do quarto de Segawa. Ele parecia estar escrevendo uma quarta ou algo do tipo enquanto estava virado para sua mesa, mas ao se virar e me ver, abriu um sorriso e me recebeu: “Ah, é você Fumi? Mas que susto!”
“Peguei uma chuvarada e passei por um mau bocado. Veja só! Eu estou pingando água da cabeça aos pés...”, me pus de pé atrás dele e enquanto torcia meu quimono lancei um olhar para sua mesa e perguntei: “O que você está fazendo?”
Segawa escondeu as cartas dentro da gaveta da mesa com certo afobamento e, recostando as costas sobre o móvel, disse: “Vamos, sente-se”
Obviamente eu não era uma donzela bem-educada. Eu estava mais para um rude delinquente. Estiquei as bordas do quimono que estavam molhadas e me sentei de pernas cruzadas.
“Quando você voltou?”
“Uns quatro ou cinco dias atrás”
“Foi uma viagem bem longa, né. Por onde você andou durante todos esses cinquenta, sessenta dias? Pensei em te enviar cartas, mas não sabia onde você estava, seria pedir muito que você tivesse pelo menos me dito algo nem que seja uma única vez?”
“Mas é que não tinha nenhum assunto em particular para tratar”
“Não tinha assunto? Entendi, entendi, você é do tipo que se não tem nenhum assunto não envia cartas, não é? Aposto que enquanto estava longe esqueceu completamente de mim”
“Vai saber, né. Talvez seja isso mesmo, exatamente como você... Mas, mais importante, eu estou faminta, você não poderia pedir uma comida para nós?”
No entanto, ele já tinha terminado sua refeição da tarde no alojamento e, portanto, só pediu um macarrão de soba para mim.
Quando estava próximo ao horário em que acenderíamos as luzes, a chuva parou, mas eu já havia decidido que não iria embora e fiquei ali sentada. Nisso, conversamos sobre diversos assuntos e, pouco depois, dois homens entraram em seu quarto.
Os dois pareciam também ter por volta de 23, 24 anos, um deles era alto e de pele clara, o outro de estatura mediana, rosto magro, cabelo preto e longo todo penteado para trás e um óculos de armação de celuloide preta.
Segawa me apresentou os dois. O de cabelos longos era um coreano socialista chamado Hyeon de que Segawa já havia comentado antes, mas que, no dia a dia, usava o nome japonês Matsumoto. O mais alto era um amigo de Hyeon e se chamava Zhao.
Segawa já havia me dito um tempo atrás: “nesse alojamento vive um coreano socialista chamado Hyeon que sempre tem duas pessoas o seguindo, é um cara e tanto”, era natural que eu olhasse para ele, então, com certo interesse. Mas, não era como se ele tivesse algo de diferente e, tampouco, falou qualquer coisa sobre socialismo. Além disso, provavelmente sentindo que estava atrapalhando porque eu estava ali, ele só conversou um pouco com Segawa e foi embora.
Naquela noite, como de costume, eu dormi junto a Segawa no único futon de solteiro que tinha por ali.
Na manhã seguinte, a empregada trouxe o café da manhã em uma pequena bandeja, mas só havia o suficiente para uma pessoa. Segawa, no entanto, não pediu uma porção para mim. Após ele pegar seus hashi, disse:
“Fumi, você vai comer? Se você for, eu deixo um pouco da minha parte para você...”
Eu estava um tanto insatisfeita.
“Não se preocupe, eu vou comer quando chegar em casa”
Eu disse e, recostando na mesa, peguei uma revista para ler. Segawa, terminado sua refeição, foi até a janela e olhou para fora.
“Fumi, vem cá, está um tempo ótimo lá fora”
“Ah, é?”, eu respondi sem interesse. Então falei com Segawa sobre o que eu estava pensando sozinha pouco antes:
“Então, Hiroshi, a gente tem feito essas coisas... O que a gente vai fazer se eu ficar grávida?”
Eu realmente estava pensando nisso com seriedade. Eu pensava assustada: “e se eu ficasse gravida...”, mas, ao mesmo tempo, me pegava fantasiando já mãe e segurando o filho que nem conhecia ainda em meus braços. No entanto, Segawa, como se não tivesse um pingo de interesse nisso tudo, se virou um pouco para meu lado, esticou os dois braços e entre um bocejo respondeu languidamente:
“O que a gente vai fazer se você ficar grávida? Eu sei lá o que a gente vai fazer...”
Repentinamente eu senti uma solidão tão completa como se tivesse sido empurrada para as profundezas do inferno. Contudo, mesmo que ele tenha dito estas coisas, pensei que ele realmente iria pensar seriamente na situação e fiquei na espera de suas próximas palavras. Mas Segawa não disse mais nada. Ele pegou o violino que estava encostado na parede próxima a janela e, sentando-se no batente da baixa janela, começou a tocar despreocupadamente.
Eu já sabia que não existia um amor verdadeiro entre nós. Portanto, não tinha a intenção de culpar Segawa por tudo, mas, ainda assim, se por acaso aquilo acontecesse, ele também tinha a obrigação de tomar alguma responsabilidade quanto aquilo. A despeito disto, que rapaz irresponsável! Era a primeira vez que eu tomava consciência de que, no fim das contas, eu não passava de um brinquedo.
Eu estava inflamada por ressentimento e por desolação. Me levantei rapidamente e sai do quarto de Segawa.
Segawa tentou me parar dizendo alguma coisa. Mas eu não o respondi e desci direto a escada traseira até um lavatório que ficava por ali. Uma vez lá, avistei, em um quarto próximo ao lavatório, Hyeon que conhecera ontem.
Ele vestia um quimono de verão de listras grossas e estava lendo um livro voltado para a mesa próxima a janela. Por alguma razão tive vontade de entrar no quarto dele. Mas como o tinha conhecido a pouco, não pude fazer isso, então abri a torneira d’agua.
Lá lavei meu rosto. Enquanto secava o rosto com uma toalha, olhei mais uma vez para o quarto de Hyeon. Naquele momento ele tinha fechado o livro e me olhava também.
“Bom dia. Desculpe por ontem”, eu me dirigi a ele.
“Que isso, eu que peço desculpas... Ontem choveu bastante, mas hoje está um clima bom, não é?”, ele respondeu a minha saudação.
Eu fui até a entrada de seu quarto.
“Seu quarto é bem bom, não é? Dá para ver o jardim...” disse olhando as plantações que eram visíveis de seu quarto.
“Você não quer entrar? Eu não tenho nenhum compromisso em especial...”
Assim que terminou de falar foi buscar mais uma cadeira para colocar ao lado da mesa. Sem reservas eu entrei em seu quarto e me sentei. Então, curiosa, passei o olho por seu quarto.
Estavam afixados pelas paredes do quarto retratos de revolucionários famosos e outras fotos. Muitos papeis que pareciam panfletos estavam pregados também.
Eu me levantei e olhei aquilo tudo com atenção. Quando cheguei perto de uma foto em particular, me dirigi a ele:
“Mas olha só, esse pessoal é do Grupo G, não é?”
“É sim, você conhece esse pessoal?”, ele me perguntou tirando a foto da parede a colocando em cima da mesa.
“Sim, uns três ou quatro”, eu respondi enquanto espichava o pescoço até a foto, “Esse é o T, esse aqui é o H, esse aqui é o S e esse aqui é você. Acertei, não acertei?”, eu disse enquanto apontava um por um o rosto daquelas pessoas, Hyeon também trouxe seu rosto para próximo da foto e, quando nossos rostos pareciam que iam se juntar, disse: “isso mesmo, isso mesmo”, e então:
“Eu sabia que não estava errado! Quando te vi ontem à noite eu meio que adivinhei. Seria meio estranho se te perguntasse então preferi ficar calado”, ele parecia feliz em me ver como um camarada deles.
Esse foi o início de tudo e ele repentina e evidentemente estava bem à vontade comigo. Eu, de minha parte, me sentia nostalgia principalmente pelo fato dele ser coreano. Me senti alegre como se encontrasse um amigo íntimo que não via há muito tempo.
Conseguimos conversar relaxadamente sobre várias coisas. Contei para ele dos sete anos que vivi na Coreia. Ele me contou sobre a sua própria família que vivia lá. Pelo que ele me contou, ele era filho único em uma família com alta posição social e considerável fortuna e que estava matriculado em um curso de filosofia na Universidade de Tôyô, mas que quase nunca aparecia nas aulas e estava sempre vagando e se divertindo por aí com seus amigos.
“Entendi, então você se dedica só ao movimento?”, eu perguntei para ele.
“Não, o pessoal do movimento me chama de pequeno-burguês e de intelectual e não deixam eu participar”, ele me respondeu com um riso triste.
Naquela época eu não pertencia a nenhum grupo do tipo, e nem estava envolvida seriamente em nenhum movimento, então não existia nenhuma razão para eu fazer pouco caso dele ou excluí-lo de minha vida. Eu apenas me sentia contente em encontrar um amigo em Hyeon que se sentia da mesma forma e com a mesma intensidade que eu própria.
Então, de repente, sons e passos atrapalhados chegaram até meus ouvidos. Ao virar despreocupada o rosto na direção dos passos vi Segawa que estava parado na porta de Hyeon e me disse:
“Fumi, você não pode ficar entrando e saindo no quarto das pessoas dessa maneira, vá logo para sua casa”
“Como é que é?”, a raiva que sentia até pouco tempo atrás tomou conta de mim. Eu gritei:
“Mas que bela preocupação! Que eu saiba eu vim até aqui com meus próprios pés, então por que exatamente eu não posso entrar e sair? Faço como bem entender. Cala a sua boca”
“Mas você não percebe que está incomodando Hyeon? Onde já se viu ficar incomodando as pessoas assim cedo pela manhã...”
“Cala a boca!”, eu gritei ainda com mais fúria. “O próprio Hyeon me deixou entrar, que direito você tem de dizer qualquer coisa? Se for para ficar se metendo assim, vá pelo menos trazer uma marmita para mim, vá. Isso combina muito mais com você”
“Você me paga!”, Segawa disse explodindo de raiva e foi embora.
Provavelmente ele foi trabalhar aquele dia sem sentir grande vergonha ou frustração, mas, de todo modo, ele não voltou ali.
A empregada da estalagem escutou atônita quando eu praguejava contra Segawa. Mas eu não dei a mínima para aquilo. Que os outros pensem o que quiserem pensar, naquela época achava que deveria agir como bem entendesse.
Fiquei conversando com Hyeon por cerca de uma hora após o ocorrido. Estimulada pela prazerosa sensação de ter escorraçado Segawa, conversei animada e profusamente.
Eu saí da casa dele por volta das nove. Mas assim que andei uns cem ou duzentos metros após ter saído da viela para a rua principal, escutei uma voz me chamando.
Ao olhar para trás, lá estava Hyeon. Ele tinha trocado de roupa, vestido um terno, colocado uma gravata boêmia e vindo atrás de mim.
Eu parei para esperá-lo. Ele me disse:
“Você já comeu algo?... Na realidade, eu ainda não comi nada. A comida da estalagem é péssima, sabe. Então eu estava pensando em ir comer algo por aí, você não quer vir junto? Mas não quero tomar seu tempo..."
“Ah, é? Muito obrigada! Na realidade eu também não comi nada até agora”
“Perfeito!, então vamos?”
Nós dois subimos uma colina afastada do caminho por onde os trens passavam. Quando chegamos na frente do correio, ele me deixou esperando e foi até o quichê de notas de pagamento. Certamente ele foi pegar algum dinheiro. Hyeon voltou com a mão dentro do bolso de sua roupa ocidental.
Subimos até o segundo andar de um aconchegante restaurante ocidental próximo ao Templo Tenjin. Como ainda era cedo, não havia mais nenhum cliente no restaurante.
Nós já éramos como dois velhos amigos.
Quando voltei da escola no dia seguinte, uma carta de Hyeon me esperava em casa. Era um pequeno envelope branco escrito “envio expresso” em vermelho. Ao abrir, encontrei, em um papel de alta qualidade, escrito cuidadosa e belamente que ele queria me encontrar naquela noite na Ponte Kangetsukyô, em Ueno.
O calor de final de verão ainda estava forte. A ponte estava repleta de pessoas reunidas em busca de uma brisa fresca. Eu atravessei a ponte prescrutando, com olhos atentos, cada uma das pessoas que estavam ali. No entanto, não conseguia achar Hyeon. Atravessei mais uma vez a ponte desconfiada enquanto acreditava que ele não mentiria para mim. Então, finalmente, o avistei em pé do outro lado no sopé da ponte.
“Ah!, Fumi, ainda bem que você veio!”, ele disse e tomou minha mão repentinamente.
Nós andamos pelo parque.
“Eu fiquei completamente apaixonado por você”
Hyeon disse.
“Eu também gosto de você”
Foi como eu o respondi.
Nós fomos para um pequeno restaurante depois daquilo. E então, Ah!...
Eu contei meus desejos e minha atual condição para Hyeon.
“Vamos arrumar uma casa para a gente viver juntos, então”, ele me prometeu.
A partir de então eu fiquei cada vez mais atraída por ele. Se eu ficava alguns dias sem o ver, caia em uma tristeza insuportável. Nessas horas, saia andando por onde ele poderia estar a sua busca. Às vezes eu acabava, por fim, voltando para casa exausta e sem ter conseguido o encontrar.
O pessoal da casa de meu tio-avô também começava a aumentar sua vigilância. Ficava cada vez mais difícil de sair.
“Você ainda não achou nenhuma casa”, eu sempre perguntava para Hyeon quando nos encontrávamos.
“Tenho procurado todos os dias, mas nada ainda”, ele dizia tirando e me mostrando jornais de anúncios de aluguéis do bolso.
Eu só conseguia pensar em ter uma casa para mim, em finalmente poder sair da casa de meu tio-avô.
Já passava das noves da noite.
Recebi um telefonema de Hyeon quando estava na sala de estar preparando algumas costuras para o inverno.
Ele me disse por telefone:
“Fumi? Você sabia que a Kunô estava bem doente? Não sabia? Pois é, eu também não sabia de nada, ouvi a história agora e parece que ela já está em uma situação de risco, então estava pensando em ir fazer uma visita para ela agora, você não quer vir junto?”
A Sra. Kunô era uma socialista de 35, 36 anos. Parece que ela tinha dois filhos com algum pensador e, apesar disso, deixou o marido e mergulhou de cabeça no movimento. Eu já havia encontrado com ela diversas vezes até então. Ela vivia com jovens socialistas em meio a miséria enquanto seguiam a luta sangrenta deles. Quando será que essa senhora se adoeceu? Eu precisava ir visitá-la.
“É mesmo, então vamos. Já estou indo, então me espere um pouco”
“Espero. Venha logo”
Então avisei para a família de meu tio-avô e sai de casa às pressas.
“Mentirosa. Aposto que ela pediu que a ligassem para ir encontrar com aquele homem mais uma vez”, enquanto fazia meus preparativos para sair, ouvi Hanae dizer como se fosse para que eu escutasse.
É claro que eu estava feliz de poder encontrar Hyeon. Mas, naquele momento, eu realmente só me preocupava com a condição de Kunô. Portanto, eu não me importei com que Hanae resmungava em seu canto.
Eu cheguei, depois de aproximadamente trinta minutos, na estalagem de um amigo de Hyeon, aonde ele me esperava.
Ao ser dirigida para o quarto daquele amigo, encontrei três ou quatro homens deitados de pernas para o ar conversando sobre algo.
“Boa noite, desculpe por fazê-los esperar... Então, vamos indo, Matsumoto?”
Tensa, eu apressei Hyeon enquanto me mantinha parada no limiar da porta corrediça de papel aberta.
Mas ele não deu sinais de que iria se levantar e só deu um sorriso leve. Em vez disso, um dos amigos dele se levantou e, me puxando pelo braço para dentro, disse: “aquilo era mentira, vamos entre, entre”
“Que crueldade! Como assim era mentira?”, eu tentei me enfurecer e esbravejar, mas, no entanto, também estava um tanto feliz.
“Então, o que está acontecendo? Você liga para as pessoas assim do nada? O que vocês vão fazer?”
“Sabe, Fumi”, Hyeon, então, disse, “a gente acabou de escutar um cego tocando shakuhachi, sabe, enquanto a gente escutava aquilo em silêncio parecia que estávamos sendo tomados por uma tristeza sem fim, eu chorei um monte, sabe. Mas, entre, entre, está todo mundo muito triste aqui, então não tinha o que fazer...”
Hyeon parecia, de fato, estar um tanto triste. Sua voz tinha um que de sentimental.
“Vocês não têm jeito, hein... seus mauricinhos”
Eu disse e entrei no quarto.
Todos me receberem calorosamente.
“Hoje é realmente uma noite triste, né, mas como você veio nos dar o ar da graça, já estamos bem mais animados”, o amigo de Hyeon, dono do quarto, disse e me serviu muitos pratos de culinária ocidental e chinesa.
Eles bebiam cerveja e comiam frutas. Nós conversávamos, ríamos e cantávamos sem parar.
Eu tinha que voltar para casa logo, apesar de não o querer. Enquanto estava ali não conseguia simplesmente partir para ir embora. As dez horas já haviam passado e já entrávamos nas onze. Mas ninguém dava indícios de que iriam embora e, então, começaram a jogar carta. Cartas era meu passatempo predileto e, então, fui tomada mais uma vez pela atmosfera. Nisso, quando me dei por mim, já não conseguia ouvir sequer o barulho dos trens.
Por fim, tive que passar a noite ali. O amigo de Hyeon emprestou um quarto separado para nós.
Na manhã seguinte, assim que abri os olhos, a primeira coisa que me veio à cabeça foi o pessoal de minha casa. As palavras que Hanae tinha dito ontem quando saí reverberavam em minha cabeça.
Mesmo que não tenha sido uma história fabricada por mim, o fato era que eu não tinha ido visitar Kunô. A bem da verdade, eu tinha encontrado Hyeon e sequer tinha voltado para casa. O quanto eu seria ferozmente escorraçada na casa de meu tio-avô? Ao pensar nestas coisas, não pude deixar de ficar inquieta.
Nós nos reunimos mais uma vez no quarto do amigo de Hyeon. Eles voltaram a pedir comida ocidental e retomaram as brincadeiras da noite passada. No entanto, eu não tive nem apetite nem ânimo para me enturmar. Cabisbaixa, pensava sozinha sentada próxima a janela com os olhos no pátio para qual o quarto dava.
“Fumi, vem para cá. Tem algo de errado com você?”, às vezes um deles lembrando de mim dizia, mas como eu me mantinha em silêncio e nada respondia, eles voltavam a se concentrar em seus jogos.
Eu já não podia suportar aquilo por mais tempo. Me dirigi a Hyeon:
“Matsumoto, será que você pode vir aqui um pouco? Eu estou pensando em voltar para casa e queria conversar uma coisa rapidinho com você”
Ele deixou relutante seus amigos e veio até mim. Nós fomos até o quarto onde tínhamos passado a noite.
“Sabe, Hyeon”, eu disse assim que nos sentamos no outro quarto. “Eu tenho saído por aí e passado a noite fora com frequência, não é? Tem ficado difícil permanecer em casa nessas condições... Então, sobre aquilo que conversamos... Como anda tudo, você não acha que consegue alugar uma casa para a gente logo?”
Desde quando havíamos nos conhecidos ele disse que alugaria uma casa em um subúrbio tranquilo para que vivêssemos juntos. No entanto, ele não dava mostras de manter o combinando depois daquilo. Eu começava a duvidar se Hyeon realmente estava sendo sincero comigo. Mas, enquanto eu pensava nisto tudo, mais me sentia atraída para ele. Desta forma, eu saí de casa incontáveis vezes, passei a noite fora e estava ficando cada vez mais doloroso ter que voltar para casa.
“Aqueeeeeela conversa?”, ele respondeu logo em seguida, mas seu rosto claramente trazia um que de embaraço. “Aquela conversa, né... Então, eu tenho procurado casas, na verdade existe mesmo uma casa, mas... Tem uma casa que um amigo está alugando em Ueno, mas como ele voltou para sua terra natal, não conseguimos chegar a alugar nenhuma ainda... Mas muito em breve vai estar tudo resolvido. Vou resolver”
Como de costume, só palavras escorregadias. Eu sabia perfeitamente que ele só estava tentando arquitetar uma fuga que mantivesse as aparências intactas.
“É mesmo?...”, eu fiquei pensando comigo mesmo.
Não adiantaria dizer nada agora. No fim eu não tinha outra escolha a não ser acreditar nessas palavras vagas e esperar desamparada. Contudo, deixando isso de lado, eu ainda precisava fazer algo sobre ontem à noite para conseguir acertar as coisas com Hanae. Nisso, eu disse para Hyeon:
“Então, deixando isso de lado, eu saí ontem de casa para ir até a casa de Kunô, não foi? Por isso eu não posso voltar desse jeito para casa. Então eu queria algo que servisse de prova que eu tenha ido até Kunô e, pensando no assunto, lembrei que, na primavera, levei meu quimono para penhorar com ela, então eu queria ir até lá para voltar com esse quimono para casa como prova de que eu estive lá...”
E, desta maneira, eu estava, indiretamente, pedindo dinheiro a Hyeon. Isso não seria nem um pouco suspeito entre duas pessoas que se amam. Mas se ele só pensava em mim como um brinquedinho, meu pedido de agora serviria muito bem para ele usar de desculpa afirmando que eu demandava uma compensação pela venda de meu corpo. Eu detestava isso. Contudo, senti como se aquele quimono fosse extremamente necessário para explicar as coisas lá em casa e, sem saber se era o certo ou errado de se fazer, aquelas palavras saíram da minha boca.
“Ah, claro. Entendi, entendi. Pode ser assim, pode fazer assim”, ele respondeu calorosa e amistosamente ao meu pedido. E enquanto falava procurava algo em seu bolso, mas se levantou dizendo: “espere só um momentinho”
Bem naquela hora duas empregadas com suas vassouras passaram por ali espiando pela fresta da porta corrediça de papel que Hyeon tinha deixado semiaberta.
Enquanto elas passavam pude escutar as duas sussurrando entre elas:
“Né, Fumi, quem diabos é aquela mulher?”
“De certo que é prostituta dos arredores da estalagem, né?”
Nesse momento Hyeon voltou. Ele colocou uma nota de cinco ienes nas minhas mãos. Eu engoli minhas lágrimas e aceitei aquele dinheiro.
Deixei o pessoal na sua farra e sai da estalagem. Já passava das dez da manhã. Uma chuva fraca caia. Eu não tinha nem guarda-chuva nem uma geta apropriada, mas precisava ir recuperar um penhor, não podia me dar ao luxo de comprá-los e, nisto, segui andando até a casa de Kunô, em Sugamo, me molhando e levantando lama com minhas geta baixas.
“Com licença”, eu disse entrando na recepção da casa de Kunô.
“Pois não?”, alguém me respondeu, contudo não era Kunô.
“Desculpe, mas a Kunô está em casa?”
“Kunô? Não conheço ninguém com este nome...”
Eu saí dali um tanto desconcertada. Então fui até ao Rôdôsha me perguntando o que estaria acontecendo.
Chegando lá, não encontrei ninguém que eu conhecesse. Mas, por outro lado, consegui descobrir o paradeiro de Kunô.
“Kunô? Se for, ela se mudou para Osaka com o Mikimoto”, foi o que um dos associados dali me contou.
“É mesmo? Que complicação”, eu respondi.
“Você tinha algo a tratar com ela? Desculpe, mas quem é você?”, ele me perguntou me sugerindo a ir até lá visitá-la, mas eu saí dali sem nem mesmo dizer meu nome.
Eu sabia onde Kunô tinha penhorado meu quimono. Então fui até a loja de penhores.
“Sim, de fato tínhamos algo assim conosco”, foi o que o atendente disse quanto ao produto que estava em meu nome. “Mas, infelizmente, o prazo venceu mês passado e nós já demos um fim para o produto. Afinal, nunca recebemos nenhum pagamento de juros mesmo após incontáveis tentativas de contato...”
Meu último fio de salvação tinha, por fim, arrebentado e me senti como se tivesse sido jogada em um poço de desespero em que nem sequer chorar eu podia.
Não era como se eu desejasse aquele quimono. Mas nas atuais condições, eu precisava dele sem falta. Mas, além disso, como Kunô pode agir com tamanha má fé? Senti como se naquele momento tivesse acabado de presenciar cristalinamente o tamanho da babaquice vazia que era ter acreditado que aqueles “socialista” eram uma espécie de ser especial, de ser humano ilustre. Senti uma desilusão como se me atirassem de um divino e belo sonho direto para uma vala imunda.
Meu tio do templo tinha adoecido e veio visitar meu tio-avô de Minowa. Ele estava completamente em frangalhos. Ele tinha me envergonhado absurdamente pouco tempo atrás, mas diante dele naquele estado não pude continuar sentindo a mesma antipatia. Eu o acompanhei em diversos hospitais. Mas não importava aonde fôssemos, nenhum hospital podia nos garantir a melhora de meu tio.
Meu tio teve que voltar para casa de mãos vazias. Eu o acompanhei até a estação de Iidamachi.
“Adeus e melhoras”
“Obrigado, estude com afinco”
Meu tio não sabia que estava prestes a nos deixar. Mas eu o sabia e não pude deixar de me sentir triste ao pensar que aquela era nossa última despedida.
Quando o trem partiu, dei meia volta. Já passavam das seis da tarde. A cidade já acendia suas luzes por todos os lados. Eu queria dissipar aquela tristeza em algum lugar. Nisso, sem chegar atentar a nada, diversos trens passaram.
Parada ali, sob as luzes da cidade sem saber ao certo o que fazer, senti uma vontade inelutável de ir me encontrar com um homem. Queria ir me encontrar com um homem que nem sequer podia mais chamar de meu namorado. Então corri em direção de um telefone público que tinha ali perto. Liguei para algumas pessoas que me vieram a mente e, por fim, pude confirmar o paradeiro de Hyeon.
“Bem na hora. Eu também gostaria de conversar uma coisa com você e estava querendo te encontrar”, ele disse e combinamos de nos encontrar na casa de Zhao, em Hongô.
Eu fui até a casa de Zhao. Hyeon tinha chegado ali uns dois, três minutos antes.
“O que você queria conversar?”, eu perguntei.
“Eu queria conversar sobre”, então ele, com suas expressões circulares e pouco precisas, disse que ele e Zhao iriam fazer intercâmbio na Alemanha e, portanto, a gente precisava se separar.
Eu já havia desistido.
“Entendi, por mim tudo bem”
“Vamos aproveitar essa despedida da melhor forma possível”, Zhao disse enquanto trazia comida ocidental e saquê.
Eu não me sentia nem triste ou tampouco frustrada. Só sentia uma espécie de desespero borbulhando dentro de mim.
Eu bebi whisky com avidez e sem nenhum escrúpulo. Eu bebi até que não conseguisse sequer ficar de pé.
Após tudo isto, eu já não podia suportar continuar na casa de meu tio-avô. Deixei sua casa trazendo no peito as feridas de um amor perdido.
Ao trabalho! Ao meu próprio trabalho!
Após deixar a casa de meu tio-avô, acabei indo trabalhar em um pequeno restaurante em Hibiya.
A loja se chamava “Oden Socialistas” e seu dono era um simpatizante do movimento, parecia-me ser mesmo um socialista, e, portanto, isso servia de chamariz para que parte dos intelectuais da sociedade, tais como jornalistas, socialistas, trabalhadores de escritórios, se juntassem ali.
Eu trabalhava ali pela tarde e estudava durante a noite. O acordo era de que a loja pagaria a mensalidade e o transporte até a escola...
Eu frequentava a escola até aquele momento durante o período da tarde, mas desde que tinha me transferido para o noturno, havia encontrado uma amiga. Seu nome era Niiyama Matsuyo.
Matsuyo provavelmente era a única mulher daquele tipo que eu encontrei durante toda a minha vida. Eu aprendi muitas coisas com ela. Ela não só me ensinou muitas coisas. Eu também recebi dela a força e a ternura de uma amizade verdadeira. Depois que eu fui presa, um oficial da polícia foi até Matsuyo e perguntou: “quem é a mulher de quem você mais gosta?”, no que ela, sem hesitar um segundo, teria respondido com meu nome e, portanto, gostaria de registrar aqui que ela também é minha mulher preferida. Matsuyo, no entanto, não está mais entre nós. Ao escrever até aqui, sou movida por fortes impulsos de estender minha mão para Matsuyo. Mas ela já não poder receber minhas mãos.
Matsuyo era dois anos mais velha do que eu, mas, naquela época, ela tinha acabado de fazer 21 anos. Ela era extremamente inteligente e, ao mesmo tempo, possuía também uma personalidade mais masculina, no bom sentido da palavra. Era dona de uma determinação sólida e tinha a força necessária para se impor em qualquer lugar sem que fosse dominada por ninguém.
A família de Matsuyo, apesar de não ser abastada, também não era lumpeniana como a minha. De qualquer forma, ela definitivamente não teve uma vida fácil através de ajuda familiar. Seu pai era um beberrão que não se preocupava com os filhos e que, ainda por cima, tinha falecido quando ela ainda estava no segundo ano do colegial para garotas. Pouco depois disto, ela ficou doente do pulmão e teve que voltar por mais de meio ano para sua terra natal no interior de Niigata para repousar. Parece ter sido nesta época que Matsuyo começou a se inquietar com questões sobre a vida e a morte e a pesquisar o budismo. A doença, no entanto, não era grave. Ela, então, voltou mais uma vez para Tóquio e se formou com excelência em segundo ou terceiro lugar em âmbito municipal.
Quem conhecia as aptidões de Matsuyo sempre a instava a prosseguir os estudos. Mas como seu pai já estava morto e ela não podia depender de sua mãe que já tinha que cuidar, a duras penas, de sua irmã mais nova, decidiu-se por encontrar um estilo de vida em que conseguisse ser autossuficiente. Nisso, após frequentar uma escola de datilografia, se tornou uma datilógrafa ela mesmo e, naquela época, frequentava as aluas de inglês da Seisoku concomitantemente com seu trabalho recente como profissional da área em uma empresa administrada por um inglês.
Eu não me lembro com precisão como me tornei amiga de Matsuyo. No início nós, estudantes do sexo feminino – umas quatro, cinco estudantes –, porque tínhamos que sentar juntas na parte de frente da sala daquelas aulas noturnas, só nos saldávamos sem dizer uma palavra, mas acho que tudo começou quando ouvi uma discussão entre ela e os estudantes do sexo masculino sobre a questão da morte em que eu também me intrometi.
Desde então, me senti de certa forma profundamente atraída pelo que Matsuyo era e fazia e, desnecessário dizer, comecei a nutrir a ideia de me aproximar dela sempre que a via pela escola.
Matsuyo disse o seguinte sobre a questão anterior:
“Eu tenho uma doença pulmonar. Portanto, já pensei bastante e com aprofundamento acerca da morte. E, então, eu acho o seguinte. Não seria a dor do instante da morte o que as pessoas temem e não a morte em si? Isto é, por acaso alguém tem medo do sono? Dormir, no que tange a perca de consciência, é o que podemos chamar de uma morte momentânea, não é?....”
Ao ouvir aquelas palavras, novamente reconheci com clareza aquele sentimento que tive quando decidi morrer enquanto ainda estava na Coreia. Então, a partir de minha própria experiência, julguei que aquela argumentação de Matsuyo estava equivocada e, assim, me pronuncie:
“Eu não acho que seja assim, né. Eu posso afirmar a partir de minha própria experiência. As pessoas têm medo da morte porque se sentem pesarosas de, eternamente, deixar para trás essa terra. Se fosse preciso dizer de outra forma, pode até ser que as pessoas não estejam o tempo todo conscientes de todos os fenômenos desta terra, mas, em verdade, todos nós também somos parte deste fenômeno e ficaríamos tristes se, por acaso, o perdêssemos. No sono definitivamente esse conteúdo não se perde. Durante o sono a gente só se esquece disso tudo”
É evidente que meu argumento, assim como o dela, não poderia ser tomado como inquestionavelmente certo. Mas, de todo modo, essa foi a oportunidade para que começássemos a conversar.
“Você já experenciou a morte?”, ela me perguntou.
“Sim, já”, eu respondi.
Então, depois disto, após o encerramento da aula, nós voltamos juntas para casa continuando a conversa de antes. Nós instantaneamente nos tornamos grandes companheiras.
Pensando agora, não acho que aprendi algo diretamente das ideias de Matsuyo. Mas aprendi muito dos livros que ela possuía. Durante muito tempo eu desejava ler, mas não podia comprar livro algum. No entanto, após ter me tornado amiga dela, li muitos livros que ela me emprestou.
Foi ela que me permitiu ler o inspirador Trabalhador Sheviriof.
Ela também me emprestou o Shi no zenya. Foi ela também quem me apresentou aos pensamentos, ou, se pouco, os nomes de Bergson, Spencer e Hegel. Dentre estes, os que mais influenciaram a forma como penso foram os pensadores niilistas. Foi nesta época que conheci Stirner, Artsybashev e Nietzsche.
As nuvens avolumavam-se pesadas e languidas, era um fim de tarde que dava sinais de chuva a qualquer momento. Eu saí da loja às quatro, mas ainda faltavam duas horas até a primeira aula, então fui até a estalagem de um amigo de Hyeon próxima a escola.
“Entre, entre”, Jeong disse assim que me viu e, logo em seguida, me entregou uma carta que tirou da gaveta de sua mesa dizendo: “estava aqui te esperando para te entregar uma coisa”.
Era uma carta de Hyeon e parte dela era endereçada a mim. A carta dizia que ele tinha recebido um telegrama informando que sua mãe estava em condições críticas e teve que voltar para casa as presas sem conseguir se despedir e, por isso, pedia desculpas. Mas isso era uma completa mentira já que ele havia decidido que voltaria para casa a muito tempo atrás.
“Hmm”, eu disse deixando aquela carta de lado, mas eu já não sentia raiva alguma. Jeong também não falou nada a respeito.
Pelo contrário, ele, como se aguardasse o fim da leitura da carta, me mostrou três ou quatro folhas impressas. Eram as folhas de prova de uma revista mensal em octavo demy da qual ele já havia me falado anteriormente.
“É mesmo? Então já está tudo pronto?”, eu disse enquanto compartilhava da alegria de Jeong e tomava em minhas mãos as folhas. Contudo, eu já conhecia o conteúdo. Ele só havia juntado tudo que tinha escrito e impresso, eu já tinha lido o original e, portanto, já estava ciente do que se tratava.
Meus olhos só se detiveram em um curto poema que preenchia o canto inferior da última página.
Eu li aquele poema. Quanta força tinha ali! Meu coração foi cativado verso após verso. Quando terminei de lê-lo, era como se estivesse em êxtase. Meu sangue dançava dentro de mim. Um sentimento muito potente se elevou em meu âmago.
Conferi o nome daquele escritor. Era o nome de alguém que eu não conhecia. Era de Pak Yeol. Cogitei ser o pseudônimo de alguém que conhecia. Mas descartei a ideia imediatamente. Isto é, até aquele momento eu ainda não tinha encontrado nenhum homem coreano digno daquele poema.
“Quem é esse aqui? Quem é Pak Yeol?”, eu perguntei para Jeong.
“Ele? É um amigo meu, sabe, mas ainda não é muito conhecido, é um pobre coitado”, ele disse tratando aquele escritor de forma leviana.
“É mesmo? Mas essa pessoa tem um vigor indescritível, sabe. Eu nunca vi um poema como este”, eu disse como que zombando de Jeong por não reconhecer o talento daquele escritor.
Jeong disse em um tom não tão alegre:
“Onde esse poema é bom?”
“Não é questão de onde. É ele por inteiro. Não é que ele seja bom, é que ele possui essa força nele. Tenho a sensação de que encontrei algo que vinha buscando a bastante tempo neste poema”
“Parece que você ficou bem movida, né. Quer se encontrar com ele?”
“Sim, por favor. Faço questão de encontrá-lo”
Não sei quando exatamente teve início, mas podia ouvir o leve ruido de neve fina caindo lá fora. O relógio do andar de baixo bateu seis horas. Os estudantes que moravam ali desceram as escadas conversando em voz alta.
“Ei, e sua escola?”, Jeong me alertou.
“Escola? Tanto faz a escola”, eu respondi como se nada tivesse acontecido.
Ele analisou meu rosto com curiosidade.
“O que aconteceu, você não era uma estudante dedicada?”
“Sim, eu era uma estudante bastante dedicada que trocava refeições para poder ir a escola, mas agora não é mais esse o caso”
“O que aconteceu então?”
“Não é como se tivesse uma razão, sabe. É só que eu perdi qualquer interesse em me tornar alguém respeitada nesta sociedade”
“Agora essa! E o que você pretende fazer quando largar a escola?”
“Pois é, eu tenho pensado nisso com bastante frequência... Eu quero fazer alguma coisa. Mas eu mesma ainda não sei ao certo o que é. Mas, de qualquer forma, estou certa de que não tem relação com trabalhar para financiar meus estudos. Tem algo que eu preciso fazer. Algo que não posso deixar de fazer. É isso que tenho procurado ultimamente...”
Eu realmente estava pensando nestas coisas naquela época. Meu único objetivo era, com todo o fogo de minhas esperanças, estudar com meu próprio dinheiro para me tornar alguém ilustre. Contudo, eu tinha finalmente entendido tudo perfeitamente. Compreendi que, em nosso mundo, não é plausível se tornar alguém ilustre enquanto trabalha para pagar os próprios estudos. Não, não era só isso. Compreendi que, por assim dizer, não há nada tão estúpido quanto ser uma pessoa ilustre. Qual é o valor de ser chamado de ilustre pelas pessoas? Eu não estou vivendo para mim mesma. Eu não tinha que conquistar minha verdadeira liberdade e satisfação? Eu precisava existir para mim mesma.
Eu havia me tornado escrava de muita gente. Fui feita de brinquedinho por muito homens. Eu não vivi para mim mesma.
Eu precisava trabalhar para mim mesma. Sim, meu próprio trabalho! Mas o que seria de fato esse meu próprio trabalho? Era o que eu queria descobrir. Queria descobri-lo e colocá-lo em prática.
Talvez isto se deva à inspiração dos livros que a Matsuyo me deu para ler desde que eu a conheci. Ou ainda foi seu próprio estilo de vida e personalidade que tenham me impactado de tal maneira a ponto de eu começar a pensar desta forma. Seja como for, eu só pensava nestes assuntos naqueles tempos.
“Isso mesmo, existem coisas bem diante de nós que precisamos fazer”, Jeong, sério, concordou comigo.
Nisto, conversamos, com uma seriedade que eu nunca tive até aquele momento, sobre diversas coisas. Mas, de repente, eu me lembrei. Me lembrei que naquela noite aconteceria no Seinen Kaikan, em Mitoshiro-chô, o “Encontro de Estudos sobre Pensamentos Sociais”.
Me despedi de Jeong. Fui, então, até a escola e convidei Matsuyo para ir comigo até lá. A rua já estava completamente branca de neve.
Naquela época eu começava a entender cada vez mais o que era a sociedade. As faces do mundo, que até agora estavam envoltas em um fino véu, tornavam-se cada vez mais visíveis. Também pude compreender os motivos por trás de uma pobre como eu não conseguir estudar nem se tornar alguém ilustre. Também entendi os motivos por trás dos ricos ficarem cada vez mais ricos e daqueles que detêm o poder serem capazes do que quiserem. E, além disso, compreendi que também existem boas razões para aquilo que o socialismo prega.
No entanto, eu definitivamente não consegui aceitar o pensamento socialista assim como ele me era oferecido. O socialismo pregava que buscava a revolução em prol dos povos oprimidos, mas restava a dúvida se o que eles realmente faziam era em pró do bem-estar destes povos.
O socialismo iniciaria uma revolta para “o bem do povo”. O povo, por sua vez, iria se erguer para lutar dando suas vidas junto àqueles que iniciaram a revolta. E, quando a mudança finalmente chegasse, ah!, o que o povo ganharia?
Os líderes manteriam o poder em suas mãos. Eles iriam construir um novo mundo com esse poder. Então o povo se tornaria mais uma vez escravo desse poder. Nesse caso, o que raios é a xxxxxxxxx? Não passaria de uma troca de poderes de uma mão para a outra?
Matsuyo menosprezava o movimento daquelas pessoas. Se pouco, ela os olhava com um ar frio.
“Eu não carrego um ideal deste tipo para as sociedades humanas. É por isso que eu, de início, juntaria algumas pessoas de quem eu gosto, viveria da forma que me agradaria, essa, eu acredito, é a saída mais plausível, é a forma de viver que tem mais sentido”, Matsuyo disse.
Um dos nossos companheiros dizia que essa forma de pensar era um tipo de escapismo. No entanto, eu não concordava com ele. Assim como Matsuyo, eu também não acreditava ser possível que a sociedade, no estado em que já se encontra, possa ser transformada em uma sociedade de bem-estar para todos. Assim como ela, eu também não conseguia carregar esse tipo de ideal. Mas eu discordava de Matsuyo em um ponto. Isto é, mesmo que eu não compactuasse completamente com os pensamentos socialistas, eu acreditava na existência de um verdadeiro trabalho próprio para mim. Se esse trabalho realmente iria se realizar ou não, não nos dizia respeito. Bastava que acreditássemos ser nosso verdadeiro trabalho. Fazer esse trabalho era o que dava forma a minha verdadeira vida.
Eu queria fazer aquilo. Ao fazer isto, nossas vidas passam a existir conosco aqui e agora. Não é como um objetivo idealista e distante de nós mesmo.
Era uma noite especialmente fria. Eu, como de costume, escape da minha conversation para ir até a casa de Jeong.
Como sempre, eu abri sua porta corrediça de papel sem avisar e o dirigi a palavra: “boa noite!”. Ele conversava em voz baixa em volta do braseiro com um homem que eu não conhecia.
O estranho era um homem não muito alto, magro, de cerca de 23, 24 anos, com tufos escuros de cabelo que caíam em seus ombros. Vestia um roupão de operário azul escuro e um sobretudo marrom que tinha os botões em fiapos e prestes a cair, as bocas das mangas puídas e buracos abertos nos cotovelos, marcas de longo uso.
“Entre, entre”, Jeong me recebeu.
O desconhecido só olhou para meu rosto e continuou em silêncio voltando os olhos para o fogo do braseiro.
“Está bem frio, não é?”, eu falei enquanto entrava decidida no quarto e me ajeitava ao lado do braseiro.
“Faz uns dois, três dias que não te vejo, né? Aconteceu algo?”, Jeong me perguntou.
“Não, nada de especial”, eu respondi, mas, me lembrando repentinamente do convidado maltrapilho que estava ali, disse:
“Outro dia eu tenho quase certeza de que te vi ao lado do palco do Chûka Seinen Kaikan enquanto acontecia o concerto em prol dos Famintos Russos, era você, não era?”
“É mesmo?”, ele respondeu.
E ele só disse isso, não confirmou nem negou minha pergunta. Então se levantou com calma.
“O que foi?”, eu tentei pará-lo. “Pode continuar sua conversa, não é como seu eu tivesse algum compromisso em especial...”
Mas ele, sem responder nada, se manteve de pé no tatame e me dirigiu um olhar gélido por entre as bordas de seus óculos pretos de celuloide e suas sobrancelhas grossas.
De certa forma eu me senti um tanto intimidada.
Após um breve momento ele deixou o quarto dizendo claramente: “Com licença”.
“Ei, espere aí, onde você vai ficar hoje? Pode passar a noite aqui em casa”, Jeong, como se repentinamente tivesse recordado, foi atrás dele gritando.
“Obrigado. Hoje eu vou ficar na casa de um amigo em Komagome”, ele respondeu com uma voz calma e triste.
Eu me sentia, de certa forma, culpada. Meu espírito estava tenso.
“Jeong, quem era aquela pessoa?”
“Ah!, aquele? Aquele é o dono daquele poema que te comoveu tanto um tempo atrás, Pak Yeol”
“O que? Aquele era Pak Yeol?” Eu gritei instintivamente com o rosto vermelho.
“Isso mesmo, aquele homem é ele”, Jeong me respondeu com calma.
Eu ainda perguntei diversas coisas sobre Pak Yeol para Jeong. De acordo com o que ele me contou, Pak até então tinha trabalhado de uma infinidade de coisas, puxador de riquixá, vendedor ambulante, entregador, mas que não possuía uma ocupação fixa e vivia noite após noite andando da casa de um amigo a outra atrás de abrigo.
“Se for assim, ele é meio que como um cachorro sem casa, né, como ele consegue se manter tão imponente nessa situação? Ele age como se fosse um monarca”
“Age daquela forma e vive às custas de amigos, né”, Jeong disse com um leve tom de zombaria, mas eu, com uma ponta de insatisfação, disse: “mas é louvável, sabe. Não tem muitos homens como aquele entre os nossos companheiros que pensa e age com tanta seriedade assim”
--Não tenho dúvidas disso, não tenho dúvidas. Eu gritava para mim mesma dentro de meu peito.
Algo dentro de meu peito se contorcia. Alguma coisa nascia dentro de meu coração.
O que será que aquele homem trazia dentro de si? O que permitia que ele fosse tão cheio de vigor e força? Eu queria descobrir. Eu também queria ter aquilo para mim.
Eu me despedi de Jeong. Após deixar sua casa, voltei para a loja.
No caminho eu voltei a pensar.
--É isso, o que eu busco, o trabalho que anseio realizar, definitivamente está dentro daquele homem. É ele quem eu procuro. É ele que possuiu meu verdadeiro trabalho.
Um deleite misterioso correu pelo meio peito. Eu não pude dormir aquela noite de tanta agitação.
No dia seguinte, fui visitar Jeong ainda cedo pela manhã. Eu queria conhecer Pak e, portanto, pedi para que Jeong me levasse até ele.
“Mas, sabe, aquele homem está sempre vagando por aí e é difícil a gente encontrar com ele assim do nada”, Jeong disse.
“Eu não me importo. Basta que ele venha até a loja. Se você puder ao menos falar isso para ele, vai ser o suficiente”, eu respondi.
Jeong concordou com aquilo.
No entanto, Pak não aparecia. Após quatro, cinco dias eu voltei a visitar Jeong.
“Você falou com ele?”
“Sim, falei, dois, três dias atrás encontrei com ele em uma assembleia e dei o recado”
“E o que ele disse?”
“Então, ele só respondeu com seus ‘é mesmo?’ e mais nada. Não parecia muito interessado não, sabe”
Eu senti uma leve decepção. Fiquei apreensiva ao imaginar que ele não queria conversar com alguém como eu. Mas eu não pude simplesmente abandonar minhas esperanças. Eu continuei esperando o dia em que Pak viria me visitar.
Se passaram dez dias. Mas Pak ainda não tinha aparecido. Doze dias se foram. E nada de Pak vir me visitar.
--Ah!, será que isso não vai dar em nada, eu pensei comigo mesma.
Eu estava triste. Tive, reforçada por Pak, a impressão de que eu não era nada demais e fiquei ainda mais desolada. Não tinha o que fazer, cheguei mesmo a me decidir a, assim como Matsuyo, me tornar uma datilógrafa ou algo do tipo e arrumar um emprego.
Então, cerca de um mês depois de ter pedido para Jeong transmitir minha mensagem, no quinto ou sexto dia de março, Pak apareceu repentinamente na minha loja.
Ao ver o rosto de Pak meu coração palpitou com vigor.
“Vejam só, então você finalmente veio”, eu disse em voz baixa para Pak enquanto o levava para a mesa ao fundo e atendia dois grupos de pessoas.
“Espere só um pouquinho e fique à vontade, eu logo vou sair”
Após dizer isto, servi um cozido com tofu e nabo para que ele comesse.
Finalmente era a hora de eu ir para a escola. Eu subi até o segundo andar para me preparar. Pedi para que Pak me esperasse do lado de fora da loja...
Como de costume, saí com a bolsa em um dos braços. Pak me aguardava de pé na viela. Então seguimos juntos até os trilhos de trem.
Mas, quando chegamos ali, ele estacou repentinamente e disse:
“Você vai para Kanda, não é? Eu tenho um compromisso em Kyôbashi então acho que a gente se despede aqui”
No que ele saiu andando com rapidez.
“Ah!, espere um pouco”, eu disse indo atrás dele. “Apareça amanhã também, vou preparar algo bem gostoso para você”
“Obrigado, eu vou estar lá”
Sem se preocupar com seu entorno ele seguiu seu caminho. Era como se eu não fosse suficiente.
Era o horário de almoço do dia seguinte.
Me sentei ao lado da mesa em que Pak estava e disse de forma que os outros não escutassem.
“Você não poderia vir até minha escola hoje à noite? Queria conversar rapidinho com você”
“Onde é sua escola?”
“É a Seisoku, em Kanda”
“Tudo bem, eu apareço lá”, ele respondeu com convicção.
Eu finalmente me acalmei. Então esperei até o fim da tarde.
Então, assim como havia prometido, Pak me esperava debaixo de uma árvore desfolhada de calçada.
“Obrigado, você esperou muito?”
“Na verdade, não, acabei de chegar”
“É mesmo? Obrigada, vamos andar um pouco?”
Andamos por onde tinha menos gente. Mas nenhum de nós dois dizia palavra alguma. Eu não intentava conversar sobre algo leve e simples que podia ser dito assim no meio da rua. Eu procurava um local mais calmo e silencioso.
Quando saímos da avenida em Jinbo-chô, eu avistei um grande restaurante chinês.
“Vamos entrar aqui”, eu disse e fui subindo os degraus com determinação. Pak me seguia calado.
Nos ajeitamos em um quarto pequeno do terceiro andar.
O atendente nos trouxe um chá. Eu pedi para que ele me trouxesse dois ou três pratos deixando a sua escolha.
Quando o atendente nos deixou, eu tirei a tampa da tigela que ele tinha trazido e disse:
“Você sabe como se bebe isso aqui? Se tirar a tampa as folhas de chá vão acabar entrando na boca, mas beber com a tampa também não parece certo, meio complicado, né?”
“Como será, né, eu nunca estive em uma loja tão chique quanto esta então também não faço ideia...”, ele disse enquanto, assim como eu, tirava e colocava a tampa, “mas se é de beber, basta beber, não é? Tem alguma regra por trás disso?”, ele afastou um pouco a tampa e bebeu o conteúdo pela fresta que surgiu ali.
“É verdade, basta fazer assim, né, deve ser assim mesmo”, eu também bebi imitando Pak. O chá não tinha lá um gosto muito bom.
Quando o atendente trouxe a comida, nós só conversamos amenidades enquanto comíamos. Eu não comi muito, mas Pak parecia estar faminto e comeu bastante.
Eu queria passar logo ao assunto principal, mas era um tanto difícil falar mais seriamente naquela ocasião. No entanto, eu finalmente consegui, de forma um tanto grosseira, levantar o assunto:
“Mudando de assunto... Eu acho que você ouviu de Jeong que eu gostaria de me tornar sua amiga, não é...”
“Sim, ouvi sim”
Pak tirou os olhos dos pratos e os dirigiu a mim. Nossas pupilas se encontraram pela primeira vez naquele momento. Eu fiquei envergonhada. Mas, chegada nessa altura, eu precisava dizer, resoluta, o que trazia dentro do peito.
Eu continuei:
“Então, vou ir direto ao ponto, você é casado, ou, se não for, tem alguém... quer dizer, tem alguma namorada ou algo do tipo? Se por acaso você estiver comprometido, eu gostaria de ser só uma amiga de causa, mas... E então?”
“Eu sou solteiro”
“É mesmo... Então tem algo que eu gostaria de te perguntar, mas, por favor, vamos conversar com honestidade”
“É claro”
“Então... Eu sou japonesa. Contudo, eu creio que não tenho nenhum preconceito com os coreanos, mas, ainda assim, você nutri, por acaso, alguma antipatia para comigo?”
Eu sabia o que os coreanos, de maneira geral, sentiam em relação aos japoneses, portanto eu precisava perguntar isso antes de qualquer outra coisa. Eu temia esse sentimento dos coreanos. Mas Pak respondeu:
“Não, eu só tenho antipatia pela classe dominante japonesa, não é contra o povo comum. Principalmente para com pessoas como você que não nutrem preconceitos eu sinto até certa simpatia”
“Obrigada!”, eu sorri me sentindo mais leve. “Mas me deixa perguntar mais uma coisa, você está envolvido em movimentos identitários, certo?... Eu vivi por bastante tempo na Coreia e, a bem da verdade, entendo as razões das pessoas nestes movimentos, mas, no fim do dia, eu não sou coreana e não sou oprimida como os coreanos o são nas mãos do Japão, e, portanto, não tenho intenção de me envolver junto a estas pessoas em um movimento independentista. Desta forma, se você for uma independentista, eu, infelizmente, não vou poder me juntar a você nessa empreitada”
“Eu acredito que existem pontos que devemos simpatizar com os movimentos identitários dos coreanos. Eu mesmo já fiz parte destes movimentos. No entanto, atualmente, não é bem este o caso”
“Então você é contra os movimentos identitários?”
“Não, de jeito nenhum, mas eu tenho cá para mim minhas próprias ideologias. Tenho meu trabalho. Não posso me erguer nas linhas de frente das batalhas deste movimento”
Todas as barreiras tinham sido depostas. Eu estava aliviada. Mas não podia deixar de sentir que ainda não estava pronta para o momento de dizer o que eu realmente queria. Após isto, voltamos a conversar algumas outras amenidades. Quanto mais conversávamos, mais eu conseguia sentir um certo poder que ele exercia dentro de si.
Senti como se fosse cada vez mais atraída em sua direção.
“Eu encontrei em você algo que estava procurando. Eu ficaria feliz se pudesse trabalhar junto com você”
Por último eu finalmente consegui dizer. No que ele:
“Eu sou inútil. Sou só um homem que vive porque não conseguiu morrer”, respondeu com uma voz fria.
Já eram quase oito horas. “Vamos nos encontra novamente”, pedimos a conta ao atendente. Gastamos três ienes ali.
“Deixa que eu pago, eu tenho dinheiro aqui comigo hoje”, ele disse enfiando a mão no bolso de fora de seu sobretudo tirando de lá e colocando sobre a mesa três ou quatro cigarros Bats, duas ou três notas amassadas e sete ou oito moedas de cobre e prata.
“Não, eu pago”, eu disse o impedindo. “Parece que eu sou mais rica do que você”
Então saímos juntos da loja.
Nós nos encontramos diversas vezes depois disto. Já não conversávamos desconfortavelmente. Sentia como se já estivéssemos ligados pelo coração. Então, finalmente chegamos ao nosso último ponto do acordo.
Decidimos tudo no segundo andar de um restaurante ocidental em Misaki-chô. Já passavam das sete horas da noite. Já era tarde para ir para escola e cedo para voltar para casa. Nisto, andamos sem destino certo seguindo o fosso escuro em direção à Hibiya.
A noite estava fria. De mãos dadas e enfiadas no bolso do sobretudo de Pak, caminhávamos, sem rumo, para onde nossos pés nos levassem.
Não tinha alma viva no parque. Somente o som seco dos trens rompia o silêncio da noite. Gentilmente brilhavam no céu as estrelas e, na terra, os postes de luz e nada mais.
Pak falou com alegria não costumeira.
De acordo com o que contava, ele havia nascido em uma área rural em Keishô Bokudô. Sua família era de pessoas comuns que, por gerações, tiravam seu sustentado através do campesinato. No entanto, entre seus ancestrais também havia os que eram bastante estudados e que desfrutavam de alta posição social. Seu pai morreu quando ele ainda tinha quatro anos e sua mãe era uma mulher tão benevolente que Pak, quando era pequeno e por tanto a adorar, só conseguia dormir com as pernas enroscadas nas delas. Ele havia frequentado uma escola administrada pelo templo a partir dos sete anos e, aos nove, quando uma escola regular foi construída em sua vila, passou a estudar nela, mas ele era maravilhosamente inteligente. Pak desejava continuar os estudos, mas bem naquela época a sorte de sua família começou a mudar e seu irmão mais velho quis levá-lo para trabalhar a terra. Pak efetivamente trabalhou como camponês. Mas ele não pode suprimir todo seu desejo em continuar os estudos. Então, aos quinze anos, em segredo, deu uma fugida até Daikyû, prestou o exame de admissão para uma escola secundária e passou com louvor, seu irmão, não podendo ficar indiferente, enviou o dinheiro para os gastos escolares em meio a bastante sofrimento. Desde aquela época, Pak pegou algumas aulas transcritas de Waseda e leu alguns textos escritos por literários japoneses. Então sua ideologia foi cada vez mais tendendo para a esquerda.
Foi nesse período que pensou em se filar ao movimento independentista. Mas ele logo percebeu a ficção daquele movimento. Ele acreditava que a mudança dos governantes não tinha nada a ver com o povo. Então, na primavera de seus dezessete anos, ele veio para Tóquio.
Sua vida desde que chegou em Tóquio tem sido uma verdadeira batalha. Aos poucos ele foi mergulhando cada vez mais em si mesmo. Ele perdeu todo o interesse em movimentos que se sustentavam pelo falatório ou pela escrita. Ele desejava seguir seu próprio caminho.
No entanto, nem tudo que relatei agora foi me dito por ele naquele momento. Pak era um homem que não gostava muito de falar de si. Ele só contava relatos fragmentários. A partir destes fragmentos e do que ouvi de outras pessoas posteriormente é que eu juntei os pontos.
Nós, a bem da verdade, falávamos muito mais do futuro do que do passado. Conversávamos, com uma ténue esperança, sobre o caminho que precisávamos desbravar para seguir em frente.
“Fumiko, eu realmente quero ir para uma casa de hospedagem barata para organizar um movimento sério, e quanto a você?”, Pak disse algo que repentinamente.
“Uma casa de hospedagem barata? Por mim está tudo certo”, eu respondi.
“Mas é bem sujo, sabe, tem percevejos na cama e tudo. Você aguentaria ficar em um lugar assim?”
“É claro que consigo, se eu não conseguisse suportar nem isso, melhor seria não começar o que fosse, não é?”
“Isso lá é verdade...”
Após dizer isto, Pak ficou um tempo em silêncio. Mas, pouco depois, ele continuou:
“Sabe, Fumiko. Quando os burgueses se casam eles fazem viagens de recém-casados, não é? Que tal se a gente começasse uma revista clandestina como comemoração de nossa vida de casal?”
“Parece interessante! Vamos sim”, eu concordei um tanto entusiasmada. “O que a gente vai fazer? Eu tenho comigo o A Conquista do pão, de Kropotkin, que tal se nós dois o traduzíssemos?”
Mas Pak se opôs.
“Já tem uma tradução deste livro. E, além disso, eu não quero publicar algo de outra pessoa né, acho que seria melhor se nós dois escrevêssemos algo nosso, mesmo que seja de baixa qualidade”
Eu fiquei muito entusiasmada com aquele plano. Quando dei por mim, nós já havíamos saído do parque e andávamos pelas ruas da cidade. As horas também já haviam avançado bastante.
“Será que já são quantas horas, eu preciso voltar às nove para casa...”
Eu disse um tanto relutante.
“Hmm, espere um pouco aqui, eu vou ali conferir rapidinho e já volto”
Ele disse enquanto ia até a guarita policia do cruzamento de trens para olhar as horas. – É claro que nenhum de nós dois possuía um relógio consigo...
Pak finalmente voltou.
“Faltam dezessete minutos para as nove”
“Ah, é? Então eu preciso voltar, né”, eu disse, no que ele respondeu:
“Ainda temos uns trinta minutos, não temos? Quer dizer, a escola termina às nove, e são uns dez minutos de trem, o que daria nove e dez. Então, ainda temos uns 25, 30 minutos, não é?”
“Muito obrigada. Você acabou de me ensinar algo valioso”
Nisto, nos demos as mãos mais uma vez e voltamos para dentro do parque. Nos sentamos em um banco debaixo de um caramanchão e ficamos ali com as nossas bochechas frias e congeladas grudadas uma na outra.
No entanto, nosso tempo estava acabando e eu me levantei relutante.
Quando chegamos próximos a saída do parque, eu o perguntei:
“Então, onde você vai passar a noite?”
“Vejamos”, ele pensou um pouco e respondeu com tristeza, “acho que vou tentar ir até a casa de um amigo em Kôjimachi”
“Ah, é? Você não fica solitário sem ter uma casa para ficar?”
“Fico sim”, ele respondeu com uma voz sombria enquanto olhava para os próprios pés. “Se eu estiver em boa saúde como agora, normalmente não tem grandes problemas, mas quando eu fico doente é bem desolador. Mesmo os que são rotineiramente gentis ficam meio estressados nestes momentos”
“Isso é verdade, as pessoas são frias, né, além disso você me parece um tanto frágil, você não teve nenhuma doença desde que chegou em Tóquio?...”
“Tive sim. Na primavera do ano passado. Eu peguei uma gripe forte e, como não tinha ninguém para cuidar de mim, fiquei gemendo sozinho por três dias sem conseguir comer nem beber em uma estalagem barata em Honjô. Eu fiquei bem desolado pensado se realmente não morreria ali naquele momento”
Um certo sentimento aflorou em meu peito. Apertei a mão de Pak com força enquanto piscava meus olhos lacrimejantes.
“Se ao menos eu te conhecesse...”
Após um breve momento, Pak disse com firmeza:
“Então até breve. Vamos nos encontrar de novo”, ele soltou minha mão e embarcou em um trem em direção a Kanda.
Enquanto o olhava partir eu disse para mim mesma, como se rezasse em meu íntimo:
“Me aguarde, por favor. Só mais um pouco. Assim que eu sair da escola, vamos imediatamente viver juntos. Nesse momento eu vou te acompanhar para qualquer lugar. Não deixarei que você sofra por doença alguma. Se for para morrer, que morramos juntos. Viveremos e pereceremos um ao lado do outro”
Pós-escrito
Eu termino, assim, minhas anotações. Não tenho autorização para registrar aqui os acontecimentos que se sucederam, exceto por meu relacionamento com Pak. De qualquer modo, para meus objetivos, este tanto que escrevi basta.
O que me fez ser assim? Eu mesma não tenho nada mais a dizer sobre isto. Basta que eu tenha deitado aqui a história de meia vida minha. Para os leitores que tiverem a sensibilidade este registro é o suficiente para entender. Eu acredito nisso.
Minha existência, em breve, será varrida deste mundo. No entanto, eu acredito que mesmo que um fenômeno se apague como tal, ele continuará a existir dentro da realidade eterna.
Eu descanso agora, calma e serenamente, este pincel que rabiscou estes rústicos registros. Que haja felicidade sobre todos aqueles que eu amo!