Enseada de águas turvas
Tradução: Rika Hagino
HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto
Primeira publicação da tradução: Hagino, Rika. "Enseada de águas turvas", In: Considerações sobre a obra Nigorie (Enseada de águas turvas) e sua autora Higuchi Ichiyô (1872-1896). Dissertação de mestrado, USP, p. 133-168, 2007. Disponível em: Banco de dados USP. Acesso em: 20/09/2024
Texto original: "Nigorie". In: Bungei kurabu, vol. 9, Tóquio, 1895. Disponível em: Aozorabunko. Acesso em: 20/09/2024.
Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).
Sumário
I
“Olá, Seu Kimura! Seu Shin! Não quer entrar? Se digo para entrar, por que não entra? Pretende ir novamente a FutabayaXY sem passar aqui, não é? Nem pense nisso, senão irei atrás e o arrastarei à força para cá. Se realmente vai à casa de banho, passe aqui sem falta na volta. Não dá para acreditar no que diz, pois é um mentiroso”. De pé em frente à loja, a mulher se queixa para o homem de tamancos de tiras, freqüentador da casa. O homem, sem mostrar irritação, passa dando explicações. “Mais tarde! Mais tarde!”. Ela o acompanha com os olhos dando estalos com a língua. “Mais tarde nada. Não tem nem intenção de vir. Se realmente se casou, não tem jeito”. Falando sozinha, ela se dirige para a loja e transpõe a soleira da porta. “Otaka, o que está resmungando? Não há razão para se preocupar tanto. Não existe aquela expressão: “Reacender-se o amor (entre os dois)XY”? Pode ser que volte a ser como antes. Não se preocupe. Fique esperando fazendo uma preceXY”. Diz uma colega como se a consolasse. “Eu, diferente de você, Oriki, não tenho talento. É lastimável deixar escapar um cliente que seja. Para uma pessoa sem sorte como eu, nem prece, nem nada funciona. Ah, esta noite terei que ficar novamente na porta até conseguir um clienteXY. Que desgosto!”. Num acesso de raiva, senta-se em frente à loja e chuta o chão de terra com a parte traseira dos tamancos. Ela tem entre 27 e 30 anos, sobrancelhas pintadasXY, as linhas frontais do cabelo contornadas de pretoXY e o rosto coberto de pó-de-arroz. O batom em seus lábios é tão forte que parece a boca de um cachorro que acabou de devorar uma pessoa. A que foi chamada de Oriki, é uma mulher esbelta e de peso mediano. Seus cabelos, que acabaram de ser lavados, atados em um penteadoXY, estavam adornados com um refrescante enfeite. Tem a pele tão branca que o pó-de-arroz passado apenas na área do pescoço não sobressai e até parece diluir-se na sua tez natural. No seu desleixo ao vestir, seu quimono deixa à vista sua cútis alva até a altura dos seios. Sentada com um dos joelhos erguido, tragava incessantemente a longa piteiraXY. Livre de não ter quem censurasse seus maus modos. Vestia um quimono com estampas enormes e a faixa preta feita com tecido preto imitativo do cetim, mostrava nas costas um chamativo escarlate e estava amarrada de forma desleixada. Desnecessário dizer, que ela era uma prostituta das redondezas. Otaka diz, como se lembrasse de algo, coçando a base do penteado com o enfeite para cabelo de prata alemã: “Oriki, você enviou aquela carta?”. “Aham!”, Oriki responde desinteressada. Ela diz rindo: “Ele não vem mesmo. Fiz apenas por cortesia...” “Deixe de disfarces! Escreveu extensamente, colou dois selos no envelope volumoso e diz que é apenas por cortesia? Além disso, você não o conhece desde a época de AkasakaXY? Não se pode cortar relações por causa de um pequeno desentendimento. Basta um movimento seu, que dá-se um jeito. Por que não se anima e tenta retê-lo? Não é bom fazer pouco caso das dádivas alcançadas”, diz Otaka. “Obrigada pela gentileza. Aceitarei seus conselhos, mas como ele não faz o meu tipo, peço que esqueça isso”, diz Oriki como se tratasse de algum assunto alheio. “Estou passada!”, diz Otaka rindo. “Você pode se dar ao luxo desses caprichos, mas no meu caso seria o meu fim”, e acrescenta abanando os pés com um leque. “Eu já tive meus momentos de glória”, fala rindo. Vendo os homens passando na rua, ela grita “Não querem entrar?”. Ao entardecer, assim começa o movimento em frente à loja.
A loja é de dois andares e possui cerca de 3,5 m (2 ken)XY de fachada e dois andares. No beiral do telhado, lanternas de papelXY estão penduradas. O salXY abundante sugere a prosperidade econômica. Não se sabe se são garrafas vazias, mas os saquês de marca estão alinhados sobre a prateleira onde aparenta ser o caixa de um bar. Da cozinha ouve-se às vezes o agitado som de uma pessoa abanando o fogareiro de carvão. O motivo de a própria dona preparar o cozidoXY e o chawan mushiXY é que o letreiro pendurado na frente da loja sugere que seja um restaurante. Se alguém, tomando isso ao pé da letra, viesse fazer um pedido? Recusariam dizendo que imprevisivelmente hoje o produto está em falta? E não se constrangeriam em pedir às mulheres que fossem as demais casas? No entanto, o mundo é muito bem feito, pois as pessoas sabem que tipo de negócio é, e nem mesmo um interiorano chega à loja para solicitar aperitivos ou peixe assado. Oriki é a atração da casa, é também a mais jovem, e tem muita habilidade para atrair clientes. Não é de falar gentilezas para contentá-los, ao contrário, agia de forma extremamente caprichosa e havia entre as colegas as que a considerassem presunçosa por se achar um pouco bonita. Mas, no relacionamento pessoal, descobria-se que ela era mais bondosa do que se imaginava e despertava simpatia até mesmo entre as mulheres. Não consegue esconder o seu verdadeiro caráter, e seu brilho vinha da sua bondade que se revelava em seu rosto. Não há uma pessoa que venha à zona recém-urbanizadaXY que não conheça a Oriki da casa KikunoiXY. Questionava-se se é a “Oriki do Kikunoi” ou “Kikunoi da Oriki”. Para a casa, fora um achado raro dos últimos tempos. Graças a ela, a zona recém-urbanizada ganhou um colorido especial. A vizinhança, com inveja, diz que a dona do estabelecimento deveria colocar Oriki em um altar.
Otaka, observando que não há movimento de pessoas, diz: “Oriki, pelo que a conheço, seja lá o que tenha acontecido, suponho que você não esteja se preocupando, mas me colocando em seu lugar, preocupo-me com o Genshichi. Sei que ele não é um bom cliente agora que caiu na miséria, mas se vocês se gostam não tem jeito. Mesmo com a diferença de idade e ainda que ele tenha um filho, não é mesmo? Não devem se separar só porque ele tem esposa. Não tem com o que se preocupar. Convide-o. No meu caso, não tem jeito. O patife mudou completamente em relação a mim e foge só de ver a minha cara. Vou desistir e procurar outro, mas o seu caso é diferente. Basta você querer que ele se divorcia da esposa, mas você não quer se casar com Genshichi porque é muito orgulhosa. Faça isso! Não há problema em chamá-lo. Escreva-lhe uma carta. O menino do MikawayaXY deve vir aqui pegar o pedido daqui a pouco, então peça a ele para que a entregue. Você não é nenhuma moça de família, então não há motivos para ficar acanhada. O seu problema é que você desiste muito facilmente. De qualquer modo, escreva uma carta para ele. Coitado do Genshichi”. Dizendo essas palavras, Otaka olha para Oriki. Ela está absorta na limpeza da piteira com os olhos voltados para baixo e nada diz.
Por fim, limpa o fornilho da piteira, dá uma tragada, bate, acende-o novamente e passa para Otaka. “Tome cuidado. Se falar em frente à loja alguém pode ouvi-la. As pessoas podem confundir e achar que a Oriki do Kikunoi é amante de um ajudante de pedreiro. Isso é um sonho do passado. Já esqueci completamente e não me lembro mais nem de seu nome. Vamos parar com essa conversa”. Quando Oriki se levantou dizendo essas palavras, passava em frente à loja um grupo de rapazes trajando quimonos presos com faixas simplesXY. “Ei, Seu Ishikawa, Seu Muraoka, esqueceram da loja da Oriki?”, chama Oriki. “Não, não. Fomos chamados pela ‘heroína’ como sempre. Não há como passar direto”. Os jovens vão entrando um após o outro na loja e logo ouve-se o som de passos apressados pelo corredor. “Uma garrafinha de saquê”, gritam. E a empregada responde: “O que querem para acompanhamento?”. Começa-se a ouvir o animado som do shamisenXY e da dança.
II
Num certo dia ocioso de chuva, um homem de cartolaXY aparentando uns 30 anos passa em frente à Kikunoi. “Com essa chuva, se eu deixar escapar esse homem, não terei nenhum cliente”, pensa Oriki e corre porta afora e agarra-se à manga do quimono dele. “Não vou deixá-lo ir de forma alguma”, diz Oriki como uma criança mimada. Aproveitando-se de sua beleza, convida o cliente ocasional raro, diferente dos demais para entrar. No cômodo do segundo andar, eles conversam silenciosamente e não se ouve o som do shamisen. O cliente pergunta a idade, o nome de Oriki e sobre seus pais. “É de família de samurai?” e Oriki responde “Isso não posso dizer”. “É plebéia?”, ele pergunta e Oriki responde “Talvez!”. “Então é da nobreza?”, ele pergunta rindo. “Bem, pense assim então. Pense que está sendo servido por uma filha de nobre”, diz Oriki enchendo o copo. “Que falta de modos, servir o saquê sem pegar o copo na mão! Estes são modos da escola OgasawaraXY? São de que escola?”, ele diz. “São da escola Oriki e seguidos no Kikunoi. Tem o modo de embeber o saquê no tatamiXY, o modo de servir saquê em uma enorme tampa da tigela e fazer o cliente beber em um gole. E não servir os clientes quando não gostamos deles é o maior segredo da nossa arte.” Como Oriki fala sem mostrar nenhum constrangimento, o cliente se interessa ainda mais. “Fale-me sobre você! Tenho certeza de que é uma história terrível. Não consigo imaginar que você seja uma mulher simples criada nos padrões das famílias comuns. E então, me diga?” Então, Oriki fala rindo: “Olhe! Ainda não nasceu chifres entre as têmporas e nem tenho tanta carapaça assimXY.” “Pare de brincadeiras! Conte-me a verdade. Se não pode me contar sobre o seu passado, fale-me sobre seus objetivos”, insiste ele. “É difícil! Se eu contar, você vai se assustar. Eu sou o Ôtomo no KuronushiXY, que desejava conquistar o mundo”. Por fim Oriki ri. “Assim não dá! Pare de brincadeiras e fale sério! Por mais que a mentira faça parte do dia-a-dia de vocês, deve haver um pouco de verdade nas suas vidas. Tinha marido? Ou é por causa dos seus pais?”, o cliente pergunta sério. Então Oriki fica triste. “Eu também sou um ser humano. Há coisas que tocam o meu coração. Meus pais morreram cedo e agora vivo sozinha. Mesmo eu sendo assim, não é que não haja homens que queiram me tornar sua esposa, mas ainda não tenho marido. Tive uma criação muito humilde. Por isso, devo terminar a minha vida desse modo”. Palavras, assim ditas, transbordavam sentimentos. Não estava flertando e agia com educação. “Não é porque teve uma criação humilde que não possa ter um marido. Especialmente sendo bonita como você. Você consegue se casar com um homem rico num pulo. Ou não gostaria de viver como esse tipo de esposa? Ou você prefere se casar com uma pessoa vivida?”, pergunta ele. “Deve ser isso mesmo. Mas quando eu gosto de alguém, ele não se interessa por mim. Entre os que querem se casar comigo, não encontro um que me agrade. Pode parecer um capricho, mas vivo cada dia dessa maneira”, diz Oriki. “Não diga uma coisa dessas! Não é possível que você não tenha ninguém. Agora mesmo uma das mulheres não disse que alguém em frente à loja lhe mandou recomendações? Tenho certeza de que há coisas interessantes em sua vida. E então?”, diz o cliente. Então, Oriki diz: “você é mesmo muito curioso. Clientes eu tenho tantos que nem dá para contar. As trocas de cartas de amor são para mim como trocas de papéis inutilizados. Se você me disser para escrever, eu escrevo promessas ou juramento, como você preferir. Mesmo que eu firme compromisso de casamento, não sou eu quem quebra a promessa. O rompimento parte dos homens. Se a pessoa tem um patrão, ela têm medo dele. Se têm pais, agem conforme eles dizem. Se eles não vêm mais me ver, não vou correr atrás deles e prendê-los à força. Se for assim, é melhor deixar para lá. Embora tenha muitos clientes, não há uma pessoa a quem eu possa entregar a minha vida”. Oriki mostra-se desamparada e diz: “vamos parar com essa conversa e vamos nos divertir. Eu detesto tristeza. Quero me divertir, divertir, divertir bastante”. Dizendo isso, bate palmas para chamar as suas colegas. Entra uma mulher de aproximadamente 30 anos com uma maquiagem pesada e diz: “Oriki, vocês estavam tão silenciosos!”. “Ei, qual o nome do namorado de Oriki?”, o cliente lhe pergunta, e ela responde. “Ainda não sei o seu nome.” Então, ele diz rindo: “O ObonXY está chegando, mas se mentir, não poderá reverenciar a EnmaXY”. “Acabamos de nos conhecer hoje, não é mesmo? Estava justamente pensando em vir perguntar”, diz ela. “Perguntar o quê?”. “O seu nome”, diz bajulando-o. Então, ele animadamente diz: “sua tola! A Oriki vai se zangar”. Entusiasmando-se com a conversa, Otaka diz: “quer que eu adivinhe sua ocupação?”. “Por favor”, diz estendendo a palma da mão. “Não, não é isso. Vou ver pelas suas feições”. Otaka olha fixamente para ele. Ele diz: “pare! Não suporto que me olhe dessa maneira como se procurasse os meus defeitos. Ainda que não pareça, sou um oficial do governoXY”. “Que mentira! Quando um oficial do governo estaria passeando no meio da semana? Oriki, o que você acha que ele faz?”, diz Otaka. “Não sou um fantasma”, brinca o cliente. “Dou um prêmio para quem acertar”, diz ele tirando a carteira do bolso. Oriki fala rindo: “Otaka, não vá dizer indelicadezas. Ele é um aristocrata. Ele está se divertindo às escondidas. Ele não tem nenhuma ocupação. Não precisa disso”. Dizendo isso, ela pega a carteira que estava em cima da almofada e diz: “Deixe isso por conta da TakaoXY. Vamos dar uma gorjeta para todos”. E sem ouvir a resposta do cliente, tira o dinheiro da carteira. Ele observa isso encostado na pilastra sem dizer uma palavra. Ele parece ser uma pessoa generosa. “Deixo tudo por sua conta”, diz ele. Otaka, pasma, diz: “Oriki, já chega de brincadeiras”. “Não, está tudo bem. Esse é para você. Esse para você. Essa, como é uma nota grande, fica para a conta e o restante ele disse que pode dividir entre vocês. Agradeçam e peguem!” Oriki distribui o dinheiro. Como este é o ponto forte de Oriki, suas colegas já acostumadas, apenas confirmam sem muita cerimônia: “podemos mesmo? Obrigada”. Catam o dinheiro espalhado e saem. O cliente vendo-as sair diz rindo: “ela parece velha para seus 19 anos”. “Não fale mal dos outros”, diz Oriki. Ela se levanta, abre a janela corrediça de papel, recosta-se no corrimão e bate na cabeça como se quisesse aliviar uma dor de cabeça. “E você, não quer dinheiro?”, pergunta o cliente. “Não, eu queria uma outra coisa. Basta ter isso.” Oriki tira um cartão de visitas do cliente por entre a faixa do quimono e faz gestos como se estivesse recebendo algo. “Quando você pegou isso? Em troca quero uma foto sua”, pede o cliente. “Venha no próximo sábado que tiramos uma foto juntos”. Sem deter o cliente que preparava-se para ir embora, ela vai atrás dele e ajuda-o a vestir o sobretudo do quimono. Oriki diz: “desculpe-me pelos maus modos de hoje. Venha novamente que estarei esperando”. “Não diga essas coisas só para me agradar. Não faça promessas que não pode cumprir”. Ele sorri, levanta-se e desce as escadas. Oriki segue-o com o seu chapéu na mão. “Se é verdade ou mentira, você saberá se continuar vindo por 99 noitesXY. A Oriki do Kikunoi não é uma mulher como as outras. Pode ser que ela mude”, diz ela. “O cliente está indo embora”. Ouvindo isso, as outras mulheres vêm se despedir dele, inclusive a dona da loja que está no caixa, “Muito obrigada!”, agradecem todas juntas. Alguém diz: “o riquixá que havia chamado chegou”. Todos da casa o acompanham até o carro. “Volte novamente!”. Essa hospitalidade é devido às gorjetas. Depois que ele se foi, todos agradeceram muito à deusa Oriki: “Obrigada!”.
III
O cliente se chama Yûki Tomonosuke e ele mesmo se diz um libertino, mas percebe-se nele um lado sério. Não tem trabalho e nem esposa e nem filho, e está exatamente na idade de aproveitar a vida. A partir da primeira visita, passou a freqüentar Kikunoi de duas a três vezes por semana. Se ele deixasse de vir por três dias seguidos, Oriki escrevia-lhe cartas como se sentisse saudades. Essa situação despertava ciúmes em suas colegas que a zombavam. “Como você deve ser feliz, Oriki. Ele é bonito, generoso e não há dúvida de que ele logo terá êxito na vida. Quando isso acontecer, ele certamente pedirá que se case com ele. Por isso, tenha um pouco de cuidado desde já. Pare ao menos de esticar as pernas para frente e de beber saquê em um gole na xícara para chá. É vulgar”, dizia uma delas. Outra caçoava dela dizendo: “O que será do Genshichi se ele souber disso? Talvez ele enlouqueça”. “Ah, é mesmo! Essa rua não é boa para quem vem de coche, então quero que comecem pela construção da estrada. Essa entrada da loja com uma tábua que trepida sobre a vala, isso sim que é vergonhoso. Não dá nem para ele parar o carro na entrada da casa. Vocês também melhorem um pouco seus modos e cuidem para que possam servir à mesa”, diz Oriki claramente. “Que pessoa detestável! Se não mudar seu modo de falar, nunca se parecerá com uma esposa. Quando Yûki vier, vou contar-lhe tudo e pedir para que a repreenda”, diz uma das mulheres. Olhando para Tomonosuke, ela faz queixas. “Ela não ouve de jeito nenhum o que a gente fala. Por favor, repreenda-a você. Para começar, beber saquê em um gole na xícara de chá é um veneno para ela”. Yûki fica sério e ordena: “Oriki, modere um pouco no saquê”. Então, Oriki diz: “Até você? Eu só consigo trabalhar assim animada graças à bebida. Se eu parar de beber, esta sala de banquetes ficará tão quieta quanto um templo. Compreenda isso, por favor”. Yûki concordou e ele nunca mais voltou a falar sobre isso.
Certa noite de lua cheia, um grupo de trabalhadores de uma fábrica dançava e cantarolava um poemaXY batendo nas tigelas animadamente na sala de baixo e a maioria das mulheres da casa se juntou a eles. Yûki e Oriki estavam sozinhos no pequeno quarto habitual do segundo andar. Tomonosuke estava deitado e conversava alegremente, mas Oriki respondia vagamente como se estivesse aborrecida com a conversa e parecia estar pensando em alguma coisa. Então Yûki pergunta: “aconteceu alguma coisa? Começou a dor de cabeça de novo?”. “Não, não estou com dor de cabeça, mas tive um ataque de uma doença crônica”, diz Oriki. “A sua doença crônica é a irascibilidade (ataque de nervos)?”. “Não”. “É doença ginecológica?”. “Não”. Yûki pergunta: “então o que é?” “Não posso falar”. “Não sou nenhuma outra pessoa, sou eu. Acho que você pode me dizer qualquer coisa. Qual é a sua doença?”, diz Yûki. Então Oriki diz: “não tenho nenhuma doença. Apenas fico desse jeito e penso coisas assim”. “Que pessoa complicada! Parece ter muitos segredos”. Yûki pergunta: “e o seu pai?”. “Não posso dizer”, responde Oriki. “E a sua mãe?” “Também não posso contar”. “E a sua história de vida?” “Não posso lhe contar”, “Pode ser até mesmo uma mentira. A maioria das mulheres precisa dizer que são infelizes ou algo assim, mesmo que seja invenção. Além disso, não é a primeira ou a segunda vez que nos encontramos. Não há nada que a impeça de me contar pelo menos isso. Mesmo que você não fale, até um cego vê que você está preocupada com alguma coisa. Não preciso ouvir para saber, mas quero fazê-lo. Seja como for, dá na mesma, então, primeiro quero que me conte o que é essa sua doença crônica.” Então, Oriki, sem dar atenção, responde: “Vamos parar com isso? Mesmo que eu lhe conte, você verá que não há nada de interessante”.
Nesse instante, uma mulher sobe carregando a bebida e a comida e cochicha algo no ouvido de Oriki e diz: “Seja como for, pelo menos desça” e ela: “deixe-me, pois não quero ir. Recuse dizendo a ele que esta noite mesmo que me encontre com ele, não poderei conversar, pois estou com um cliente que bebeu demais. Ah, ele não tem jeito mesmo”, diz Oriki franzindo a testa. A colega pergunta: “é isso mesmo que você quer?”. “É sim”, responde Oriki brincando com o plectoXY sobre o joelho. A mulher levanta e sai da sala com ar de estranheza. O cliente, que ouviu o diálogo das duas, diz rindo: “Não precisa fazer cerimônias. Vá se encontrar com ele. Não precisa disfarçar dessa maneira. É uma maldade deixar seu namorado ir embora sem encontrar-se com ele. Vá atrás dele e encontre-se com ele. Se quiser, traga-o para cá. Eu vou para um canto e não atrapalho a conversa de vocês”. “Pare de brincadeiras! Yûki, vou te contar, pois não adianta esconder de você. Por um bom tempo uma pessoa chamada Genshichi, dono de uma loja de acolchoados, de certa influência na cidade, foi meu cliente. Agora ele vive miserável como um caracol numa pequena casa nos fundos de uma quitanda. Ele tem uma esposa e um filho e não tem idade para vir se encontrar com uma pessoa como eu. Não sei se existe um destino que nos une, mas até hoje de vez em quando ele vem com alguma desculpa. Agora também ele está lá embaixo. Não quer dizer que eu vá expulsá-lo daqui, mas se nos encontrarmos, teremos muitos aborrecimentos, por isso é melhor deixá-lo ir embora sem dar muita atenção. Se ele ficar com raiva, estou preparada. Não me importo se ele vai pensar que sou um demônio ou uma cobra”. Oriki coloca o plecto no chão, estica-se um pouco e olha para fora. Yûki caçoa de Oriki: “dá para vê-lo?”. “Parece que já foi embora”. Ela está distraída. Então ele vai direto ao ponto: “então é essa a sua doença crônica?”. Oriki, sorrindo com ar de tristeza: “bem, deve ser por aí. Nem médico, nem banhos em KusatsuXY podem me curar”; “Gostaria de vê-lo. Com que ator ele se parece?”, pergunta Yûki. Então, Oriki responde: “se você o vir, ficará desapontado. Ele tem a pele escura e é alto. Parece uma encarnação do Fudôsama (uma divindade budista)”. “Então, ele é uma pessoa de personalidade?” “Ele é um tipo de pessoa que gasta todo o seu dinheiro em uma casa como esta. Ele é uma boa pessoa. É sua única qualidade. Não é uma pessoa nem interessante e nem divertida” “Então por que você se apaixonou por ele? Essa tenho que ouvir”. O cliente diz isso e se levanta. E ela: “talvez eu me apaixone com facilidade. Não há uma noite em que não sonhe com você ultimamente. Sonho que você se casou, sonho que parou de vir aqui. Às vezes tenho sonhos ainda mais tristes a ponto de encharcar o travesseiro de lágrimas. A Otaka antes mesmo de encostar a cabeça no travesseiro já está roncando. Como tenho inveja de vê-la dormindo tão bem. Eu, mesmo que esteja muito cansada, quando eu me deito, perco o sono. Isso porque fico pensando sobre várias coisas. Fico feliz que compreenda que tenho muitas preocupações, mas acho que você não compreenderá jamais o que se passa na minha cabeça. Como não adianta nada eu ficar pensando, mostro-me sempre alegre na frente das pessoas. Há clientes que dizem que a Oriki do Kikunoi é caprichosa e que não sabe o que é sofrimento. Não sei se é o meu destino, mas acho que não existe ninguém mais infeliz do que eu”, diz Oriki com amargura. Então Yûki diz: “nunca ouvi você falando dessa maneira tão triste. Quero te consolar, mas como não sei o motivo, não sei como posso fazê-lo. Se você pensa em mim a ponto de sonhar comigo, poderia pedir-me que a tome como esposa. Por que não mostra os seus sentimentos? É uma maneira de falar antiga, mas até os encontros fortuitos são resultado do destino. Se esse meio de vida te desagrada, diga a verdade sem cerimônias. Eu achava que, pelo seu temperamento, você preferia levar a vida dessa maneira, que pensasse que assim é mais fácil. Então, que razão você tem para continuar levando essa vida? Se não te fizer sofrer, conte-me”. “Eu pensei em te contar outro dia, mas hoje eu não posso”. “Por que não?”. “Não posso dizer a razão. Eu sou uma pessoa caprichosa, então quando penso que não quero dizer, não digo de maneira nenhuma”. Ela se levanta de repente e vai até a varandaXY. Na cidade onde se via nitidamente a sombra da luz que brilha num céu límpido, ouve-se o som dos tamancos das pessoas que passam. “Yûki”, chama Oriki. Yûki se aproxima: “o que é?”. Oriki pega na sua mão: “sente-se aqui. Está vendo aquele menino que está comprando pêssegos na barraca de frutas? Aquele bonitinho de mais ou menos quatro anos? É o filho da pessoa que veio aqui há pouco. Mesmo naquele coraçãozinho de criança, existe muito ódio por mim. Toda vez que ele me vê, ele me chama de demônio. Será que eu pareço uma pessoa tão ruim assim?” Oriki olha para o céu e suspira. Suspira como se não suportasse mais tanto sofrimento.
IV
Na periferia da mesma área recém-urbanizada há um beco tão estreito que os toldos da quitanda e da barbearia parecem se interligar. É tão estreito que não é possível abrir o guarda-chuva num dia de chuva. No chão, há tábuas esburacadas sobre a vala. Em cada lado da vala há casas de cômodos geminadosXY. No fundo, ao lado do depósito de lixo, há uma pequena casa (de 2,7 metros por 3,6 metros). A entrada da casa está corroída e as portas corrediças mal conservadas já não se fecham. No entanto, a casa tem também portas nos fundos, que por sorte, dá para uma área residencial. No lado de fora há um terreno desocupado inçado de mato. Há um pequeno cercado num dos cantos, onde há uma plantação de aojisoXY e begônias. Há vergônteas de vagem enroscadas na cerca de bambu. Esta é a casa onde vive Genshichi de Oriki. Sua esposa chama-se Ohatsu e tem 28 ou 29 anos, mas aparenta ser uns sete anos mais velha, devido aos maus tratos causados pela pobreza. Os dentes tingidos de pretoXY estão falhos e as sobrancelhas não estão aparadas. O seu quimono de algodão está puído de tanta lavagem. Teve sua parte da frente trocada com a parte de trás e havia remendos na altura do joelho para disfarçar. A faixa que o prende é estreita e bem apertada. Ela trabalha fazendo protetores de vime para chinelos. Como o período quente da época do Obon é a temporada propícia para esse trabalho, Ohatsu, suando muito, está absorta nessa atividade. Pendurou o feixe de junco necessário no teto para facilitar o manuseio e trabalha sem olhar para os lados para produzir o maior número possível. Ohatsu pensa: “O sol já se pôs. Por que Takichi ainda não voltou? Por onde andará Genshichi?”. Ela termina o trabalho e dá um trago na piteira. Piscando os olhos cansados repetidas vezes, começa a mexer na parte de baixo do bule de barro. Acende o fogo do braseiro que produz fumaça para afugentar pernilongos e leva-o para a varanda. Cobre com as folhas de cedro que catou e assopra. A fumaça sobe e os pernilongos fogem para o beiral do telhado com um zumbido espantoso. Nesse momento, ouve-se o barulho do tamanco na tábua sobre a vala e Takichi grita da entrada: “mãe, cheguei. Trouxe o papai comigo”. “Demorou tanto! Eu estava muito preocupada achando que tinha ido ao templo da colina. Vamos, entre logo”. Então, Genshichi coloca Takichi primeiro para dentro e entra em seguida com ar desanimado. “Ah, você voltou também? Estava tão quente hoje, não é? Imaginei que voltaria cedo e deixei aquecida a água do banho. Por que não joga uma água no corpo para se livrar do suor? Takichi, vá tomar banho também”, diz Ohatsu. “Sim, senhora”, responde Takichi desamarrando a faixa. “Espere, espere. Vou ver como está a água”. Ohatsu coloca a bacia na tina, pega a água quente da panela, mistura à água da tina e coloca a toalha para lavar o corpo dentro dela. “Querido, dê banho nele também. O que houve? Você parece exausto. Espero que não esteja doente por causa do calor. Tome um banho que se sentirá melhor e vamos jantar. O Takichi está esperando.”, diz Ohatsu. “É mesmo.” e como se lembrasse, ele desata a faixa e entra no banho. Subitamente, começa a se lembrar do passado. “Nem em sonho imaginava que um dia estaria tomando banho na cozinha de uma casa tão pequena. E muito menos que trabalharia como auxiliar de construção civil empurrando carros. Certamente, meus pais não poderiam imaginar também. Ah! Isso tudo aconteceu porque me entreguei a um sonho tolo”. Ele estava parado absorto em seus pensamentos sem entrar no banho. “Papai, lave as minhas costas, por favor.”, pede Takichi sem perceber nada. A esposa também chama-lhe a atenção: “termine logo o banho senão você vai ficar todo picado pelos pernilongos”. “Ah, sim!”, ele responde e começa a lavar o Takichi, banhando-se também. Ao sair do banho, Ohatsu entrega-lhe um quimono de algodão desbotado, mas recentemente engomado e diz: “vista-se!”. Genshichi amarra a faixa do quimono e vai para um lugar ventilado. Ohatsu traz uma mesinha individualXY de NoshiroXY velha, com o esmalte da borda descascando e as pernas bambas dizendo “fiz hiyayakkoXY de que você gosta” serve-lhe o tôfuXY numa pequena tigela fazendo exalar o aroma agradável de aojiso. Takichi despercebidamente havia pego o recipiente com o arroz e trazia dizendo: “yocchoi yocchoiXY”. “Rapazinho, venha cá, para perto de mim.” Genshichi afaga a cabeça de seu filho e pega o hashiXY. Não que estivesse pensando em algo especial, mas não conseguia sentir o paladar da comida e sentia como se sua garganta estivesse inchada. “Já estou satisfeito.”, diz ele colocando a tigela na mesinha. Então sua esposa diz: “O que está dizendo? Como um homem que faz trabalho braçal como você não consegue comer três tigelas de arroz? Não está se sentindo bem? Ou está muito cansado?” “Não, não há nada de errado comigo, apenas estou sem apetite.” diz ele. A esposa com um olhar triste diz: “Querido, é a mesma coisa de sempre, eu suponho. Por mais que a comida do Kikunoi seja gostosa, o que adianta lembrar disso agora na sua atual situação? Lá é um comércio. Se você ganhasse dinheiro, elas iriam adulá-lo como faziam antigamente. Dá para perceber isso só de passar em frente e olhar. Elas se maquilam todas de branco, vestem belos quimonos e seduzem todos aqueles que aparecem por lá. Esse é o trabalho delas. Se você entendesse que ela não te dá mais atenção porque está pobre, tudo se resolveria. Esse seu ressentimento é que o mantém apegado a ela. Você sabe o que aconteceu com o rapaz da loja de saquê da rua de trás, não é? Ele estava tão envolvido com Okaku da casa Futabaya que gastou toda sua economia, não restando dinheiro nem para pagar as suas contas. E para recuperar esse dinheiro, acabou apostando em jogos de azar, e a partir disso, as coisas foram de mal a pior e por fim ele acabou assaltando o armazém. Agora ele está preso, comendo comida de cadeia, enquanto Okaku está pouco se importando, continua levando a sua vida de sempre e não há uma pessoa que a censure por isso, pelo contrário, ela está prosperando ainda mais. Pense nisso! É o mérito das prostitutas. O errado é quem se deixou envolver. De nada adiantará você ficar pensando sobre isso agora. Em vez disso, recupere os ânimos, concentre-se no trabalho e procure ganhar dinheiro. Se você esmorecer, o que será de mim e desse menino? Aí sim ficaríamos perdidos sem ter como viver. Aja como um homem e desista quando assim tiver que ser. Se conseguir ganhar dinheiro, você pode construir uma casa, não só para Oriki, como para Agemaki, KomurasakiXY. Deixe esses pensamentos de lado e coma! Até o Takichi acabou ficando desanimado.” O menino havia colocado o hashi e a tigela na mesa e, sem entender nada, mas preocupado, olhava de um lado para o outro, observando os pais. “Por que não consigo esquecer aquela fingida quando tenho uma pessoa tão querida assim?”. Olhando o filho ele sente uma grande discripância em seu coração e se repreende por não conseguir esquecê-la. “Não, eu não posso continuar sendo um tolo para sempre. Não mencione mais nem o nome de Oriki. Se ouço, lembro-me do meu erro do passado e não consigo nem olhar para você. Acha que eu pensaria nela nas condições que estou agora? Se não consigo comer, é apenas por não estar me sentindo bem. Não precisa se preocupar. Dê bastante comida para o menino.” Dizendo isso, Genshichi deita-se no chão e se abana com vigor na altura do peito. Não que estivesse sufocado com a fumaça do incenso para afugentar os pernilongos. Queimava em seu peito o sentimento por Oriki.
V
Quem colocou o nome de shirooniXY? Certamente, a zona de prostituição é uma fugaz construção paisagística do mugenjigokuXY. Elas não possuem nenhum truque em especial, mas com maestria levam os homens a mergulhar de cabeça no mar de sangue e a escalar a montanha de agulhas da dívidaXY. As vozes melosas das shirooni convidando os clientes são assustadoras, pois são como belos faisões devorando cobras. Mesmo assim, essas mulheres, como qualquer ser humano, passaram dez mesesXY no ventre de suas mães e na época em que se agarravam aos seus seios, brincavam graciosamente. Quando lhes perguntavam se preferiam dinheiro ou doce, estendiam as mãos dizendo que preferiam o doce. Ainda que não exista sinceridade na atividade atual dessas mulheres, pelo menos uma entre cem pessoas derrama lágrimas sinceras. “Escute! É sobre Tatsu da tinturaria. Ontem mesmo, ele se divertia com a espevitada da Oroku da loja KawadayaXY. Uma visão abominável. Arrastando-se até a rua e juntos ficaram numa brincadeira de mau gosto. O que será dele se continuar sem rumo daquele jeito? Quantos anos você acha que ele tem? Já fez 30 há dois anos. Toda vez que o encontro, o aconselho a pensar em formar uma família. Nessas ocasiões, ele me responde vagamente que sim, mas não me leva muito a sério. Como o pai dele já é idoso e sua mãe tem problema de visão, ele deveria tomar jeito logo para não preocupá-los. Eu, mesmo assim, penso que quero lavar seus hantenXY e remendar seus momohikiXY, mas com aquele sentimento leviano, não sei quando ele irá me tomar aos seus cuidados. Quando penso nisso, mais esse trabalho me repugna e não sinto entusiasmo para atrair outros clientes. Ah, isso me deprime!”, diz a mulher. Através da boca que geralmente engana os homens, ela se lamenta sobre o ressentimento em relação ao amante. Uma das mulheres está absorta em seus pensamentos e preocupações. “Ah, hoje é dia 16, dia do Obon. As crianças passam bem vestidas para ir prestar respeito a Enma com rostos felizes por ter ganho dinheiro (para pequenos gastos). Com certeza devem ter pais sérios. Já o meu filho Yotarô, deve estar de folga hoje, mas para onde quer que ele vá, não importa o que esteja fazendo para se divertir, não há dúvida de que está invejando os outros. O seu pai é um bêbado e não tem nem mesmo uma residência fixa e sua mãe está nessa vida vergonhosa usando essa maquiagem branca. Mesmo que ele soubesse onde estou, não viria me ver. Quando fui no ano passado a Mukôjima para apreciar as cerejeiras em flor, passeava com uma colega e estava com um penteado típico das mulheres casadas e me encontrei com ele por acaso numa casa de chá que fica à margem do rio. Então, eu o chamei e ele me pareceu pasmo por eu estar vestida como uma jovem e me perguntou assustado: “Mãe, é você?”. Ele ficaria ainda mais surpreso se me visse segurando um cliente e fazendo gracejos com esse penteado (usado pelas meretrizes) e ocasionalmente com um enfeite da moda reluzindo no cabelo. Certamente ficaria muito triste. Quando nos encontramos no ano passado, ele me disse: “ estou trabalhando agora em uma loja de velas em Komagata. Por mais difícil que seja, serei paciente e me tornarei um homem de respeito, então, darei conforto para o papai e a mamãe. Até esse dia chegar, peço para que se vire sozinha levando, de alguma forma, uma vida honesta. Peço apenas que não se case.” Mas, infelizmente, é difícil uma mulher conseguir sobreviver colando papéis em caixas de fósforoXY. E também não tenho força física para fazer trabalhos domésticos na casa dos outros. Se é para passar pelos mesmos sofrimentos, achei melhor optar pelo trabalho que me poupasse fisicamente, um pouco que seja, e por isso estou vivendo disso. Eu não estou fazendo isso levianamente, mas se o meu filho souber ele irá dizer que eu sou uma mãe desprezível e certamente se afastará de mim. Normalmente não me importo de usar esse penteado, mas hoje, sinto-me envergonhada.”. A outra mulher está sentada em frente ao espelho com lágrimas nos olhos, ao entardecer. A Oriki do Kikunoi também estava longe de ser uma encarnação do demônio. Ela veio parar nesse lugar porque tinha alguma razão e passava seus dias contando mentiras e fazendo gracejos. Ela apenas mostrava seu sentimento frágil como uma folha de papel e por um lapso de tempo como o brilho de um vagalume. Já suportara o sofrimento de 100 anos de um ser humano comum. E mesmo que alguém morra por sua causa, apenas diria: “meus pêsames”. O sofrimento de fingir, que não se importa com nada e de fazer cara de desinteresse só foi superado com o peso do esforço. Mesmo assim, às vezes seu coração transborda de tristeza e medo. E mesmo querendo, ela tem vergonha de chorar na frente das colegas, então, sobe para o segundo andar e chora escondida no recanto de uma sala. E por ela esconder isso até mesmo de suas colegas, era considerada uma pessoa determinada, de espírito forte e não há quem conheça o seu lado frágil como uma teia de aranha que se desfaz com um toque. Todas as casas estavam lotadas na noite do dia 16 de julho e ouviam-se os animados dodoitsuXY e hautaXY por toda parte. No quarto do primeiro andar do Kikunoi, estavam reunidos cinco ou seis comerciantes que cantavam a canção Kiinokuni totalmente fora do ritmo. E um deles, convencido, cantava desafinado “a colina está coberta de névoa.” “O que houve, Oriki? Cante a canção de sempre para nós. Cante, cante!” Insistem eles. “Não citarei o nome, mas aqui entre nós…”, Oriki canta a canção que sempre os alegra e eles correspondem com entusiasmada salva de palmas. Então, ela continua: “O meu amor teme atravessar a pinguelaXY do riacho do vale.” Começou a cantar, mas como se lembrasse de algo ela diz: “me dêem licença um instante. Desculpem-me.” Coloca o shamisen de lado e se levanta. “Aonde você vai? Aonde você vai? Não pode fugir de nós!” Todos se agitam. “Teru, Otaka, me cubram, por favor. Eu volto logo.” Dizendo isso, ela saiu apressada pelo corredor e sem olhar para trás, calçou os tamancos na entrada da casa e sua figura se perdeu na escuridão da viela do outro lado do Kikunoi.
Oriki saiu da casa apresada. “Se eu pudesse iria agora mesmo para karatenjikuXY. Ah, não, não e não! Não agüento mais! Como eu poderia ir para um lugar onde não se ouçam vozes, não há som das coisas, um lugar tranqüilo, tranqüilo, onde o meu coração pudesse ficar tranqüilo, um lugar onde não haja preocupações? É fastidioso, tolo, desagradável, vergonhoso, triste e sinto-me desamparada. Até quando terei que viver nessa situação? É assim que passarei o resto da minha vida? O resto da minha vida será assim? Ah, não, não!” Oriki se recostou numa árvore à beira do caminho e ficou parada ali por um tempo. “Tenho medo de atravessar, mas se não atravessar…” Não se sabe de onde vinha, mas ela ouvia a sua própria voz cantando. “Não há outra saída. Eu também terei que atravessar a pinguela. Dizem que o meu pai também pisou em falso e acabou caindo, e o mesmo aconteceu com o meu avô. Como eu venho carregando esse ressentimento por gerações, se não fizer o que tem que ser feito, não posso morrer mesmo que queira. Acho vergonhoso, mas não há uma pessoa que sinta compaixão por mim. Se eu dissesse que sou uma pessoa triste, logo encerrariam o assunto com uma simples pergunta: ‘você não gosta do seu trabalho?’ Não importa, não importa! Por mais que eu pense, eu não sei o que fazer. Se não sei, não há outra saída a não ser seguir o meu caminho como a Oriki do Kikunoi. Às vezes me pergunto se perdi o senso de sentimento e de dever. Não deveria pensar em tais coisas. De que adianta ficar pensando? Estando nessa posição, nessa profissão e carregando esse carma, por mais que eu faça algo, não há dúvida de que não sou uma pessoa como as outras. E é um erro pensar como uma pessoa comum e sofrer. Ah, que tristeza! O que estou fazendo parada aqui? Para que eu vim até um lugar como esse? Tola! Louca! Eu não compreendo nem a mim mesma. Vou voltar.” Dizendo isso, sai de dentro da escuridão da viela e caminha pela rua cercada de lojas. As faces dos transeuntes pareciam pequenas, bem pequenas. E até os rostos das pessoas com quem ela cruzava pareciam bem distantes. “Sinto como se apenas o chão onde eu piso estivesse flutuando. Apesar de ouvir o ruído das vozes, estas ressoam em meus ouvidos como o som de algo caindo no fundo de um poço. Vozes são vozes, meus pensamentos são meus pensamentos. Eles se distinguem completamente. Além disso, nada me distrai. Passo em frente a uma casa onde um casal briga sob os olhares da multidão. É como se apenas eu caminhasse solitária num vasto campo seco do inverno. Nada chama a minha atenção, não há uma paisagem que me atraia. O meu coração se agita, não, sinto-me como se não estivesse viva”. No momento que ela parou imaginando que iria enlouquecer, alguém bateu em seus ombros perguntando: “Oriki, aonde vai?”.
VI
Oriki havia esquecido completamente que havia dito a ele para que viesse sem falta no dia 16, pois ela o estaria esperando. Deparou-se com Yûki Tomonosuke, de quem, até então, ela nem se lembrava. Yûki ri achando graça na expressão de espanto de Oriki, que não combina com o seu jeito de sempre. Sentindo-se envergonhada, ela diz: “fui pega de surpresa, pois andava absorta em meus pensamentos. Fico feliz que tenha vindo.” “Que frieza sua, não me esperar depois de ter me prometido tanto.” Ele a censura. “Diga o que quiser. As explicações lhe darei depois.” Ela pega na sua mão e começa a caminhar. Ele então chama a sua atenção. “As pessoas vão ficar falando.” “Deixem que falem o que quiserem. Por aqui, por aqui!”, diz ela, guiando Yûki entre a multidão.
Na sala de baixo continuava a algazarra e os clientes ainda se exaltavam irritados com a saída de Oriki. Ouvindo alguém dizer na entrada da casa: “ah, você voltou!”, um cliente diz: “isso é jeito de tratar seus clientes, largando-nos aqui? Se voltou, venha cá! Não a perdoaremos até você vir aqui!”. Ignorando essas palavras de soberba do cliente, ela leva Yûki à sala do segundo andar. “Esta noite não posso os acompanhar na bebida, pois estou com dor de cabeça. Posso até desmaiar só de sentir o cheiro de bebida alcoólica no meio de tantas pessoas. Talvez depois de um descanso eu venha a me sentir melhor, mas por ora, peço que me desculpem.” Oriki se desculpa. Então, Yûki chama-lhe a atenção: “Você pode fazer isso? Os clientes não vão ficar chateados? Não irá lhe causar problemas se eles se aborrecerem?” “O que os comerciantes como eles podem fazer? Deixem que se zanguem!”. Ela pede a uma das criadas da casa que prepare uma garrafinha de saquê, e enquanto espera ser servida, diz: “Yûki, hoje me aconteceu uma coisa desagradável e não me sinto bem. Espero que me entenda. Quero beber muito, por isso peço que não me impeça. Por favor, cuide de mim se eu ficar bêbada.” “ Eu nunca lhe vi bêbada. Não vejo problemas em beber até ficar animada, mas isso não vai deixá-la com dor de cabeça de novo? Afinal, o que houve? É algo que não pode me contar?, ele pergunta. “Não, eu quero lhe contar. Vou contar depois que eu estiver bêbada, por isso não se espante.” Oriki diz isso sorrindo. Pega uma taça grande para chá com saquê e vira-o em dois ou três goles. Esta noite, por alguma razão, a aparência de Yûki chamava-lhe a atenção. Ela percebe que ele é um homem alto e de ombros largos, que ele tem um jeito calmo e seguro de falar, e que seu olhar parecia penetrar nas pessoas. Seus cabelos negros eram curtos e bem delineados à altura da nuca. Ela o contemplava como se o visse pela primeira vez. Ele, então, pergunta: “O que está olhando tão fascinada?” “Estou olhando o seu rosto.”, “Sua atrevida!”, ele diz brincando e a encara. Ela ri. “Ai, que medo!” Então, Yûki diz: “Deixando de brincadeira, você está estranha esta noite. Pode ser que fique com raiva se eu perguntar, mas aconteceu alguma coisa?” “Não, não aconteceu nada. Ainda que tenha acontecido algo, isso não é nada incomum. Não me incomodo com isso e por que haveria de me importar? Às vezes tenho uns impulsos repentinos, mas isso não é culpa de ninguém. A culpa é toda desse meu coração leviano. Eu sou uma pessoa vil e você, um homem distinto. Ainda que eu conte a você o que estou pensando, não sei se irá me compreender. Mesmo que você ria de mim, eu não me importo. Quero que ria de mim. Esta noite lhe contarei tudo. Ah…Mas por onde começo? Estou tão transtornada que mal posso falar.”, diz Oriki tomando novamente goles de saquê. “Para começar, entenda que eu sou uma mulher degradada. Você sabe que eu não sou nenhuma donzela criada em uma redoma. Por mais que digam, usando belas palavras, que somos como flores de lótus no meio da lama, se nós não nos adequássemos ao nosso trabalho, ninguém viria aqui nos ver e não haveria prosperidade nos negócios. Você é diferente deles, mas a maioria dos clientes que vem aqui me ver é assim. Ainda assim, às vezes penso como as pessoas comuns e me sinto envergonhada, amargurada e deprimida por estar nessa vida. Penso em me casar, mesmo que seja para viver numa pequena e modesta casa. Mas isso, eu não consigo fazer. Também não é por isso que eu posso ser rude com os clientes que vêm aqui. Tenho que agradá-los dizendo que são belos, queridos, que me apaixonei à primeira vista por eles. Dentre eles, há os que acreditam nas minhas palavras de adulação e pedem para que um ser desprezível como eu, torne-me sua esposa. Nao sei se fico mais feliz quando alguém gosta de mim ou se me satisfaz mais gostar de alguém. Gostei de você desde o nosso primeiro encontro e se passo um dia que seja sem te ver, chego a sentir saudades. Mas, se você me pedisse para ser sua esposa, eu não sei…Não gosto que se apoiem em mim, mas por outro lado, se estiver fora do meu alcance, sinto uma grande atração. Em uma palavra, sou uma pessoal volúvel. Quem você acha que me transformou numa pessoa assim? São falhas transmitidas por três gerações. O meu pai também teve uma vida triste.”, disse Oriki com lágrimas nos olhos. “Conte-me sobre o seu pai.”, disse Yûki. “O meu pai era artesão e meu avô era um homem instruído, mas era um louco como eu. Escreveu uns livros inúteis que teve a publicação proibida pelo governoXY e parece que ele morreu fazendo jejum em protesto. Ele sabia o que queria fazer da vida já aos 16 anos de idade e apesar de ser de origem humilde, dedicou-se aos estudos com todo o empenho, mas até os 60 anos não conseguiu se realizar e, por fim, virou motivo de chacota. Eu ouvia desde criança o meu pai se lamentando dizendo que agora ninguém se lembrava mais de seu nome. Já o meu pai caiu da varanda quando tinha três anos de idade e isso o deixou deficiente de uma das pernas. Ele não gostava de se juntar às outras pessoas e trabalhava em casa produzindo utensílios de metais. Mas ele era uma pessoa muito orgulhosa e pouco amigável, por isso não tinha nenhum cliente fixo. Lembro-me do inverno aos meus sete anos. Em pleno inverno, nós três, pais e filha, usávamos quimono de verão, mas meu pai inventava artefatos, recostado a uma pilastra, como se não sentisse o frio. A minha mãe, levando uma panela rachada ao fogão a lenha lascado de uma bocaXY, pediu-me para que eu fosse comprar uma coisa. Eu corri animada até a entrada da loja de arroz carregando uma peneira de misoXY e segurando nas mãos uns trocados. Mas na volta, estava tão frio que as minhas mãos e meus pés pareciam hirtos e quando eu estava a uma distância de cinco ou seis casas da minha, acabei escorregando no gelo da tábua sobre a vala. Sem ter onde me apoiar, levei um tombo e com o impacto, deixei cair o arroz que carregava nas mãos. O arroz esvaiu-se por entre uma tábua solta e sob ela corria uma água imunda. Espiei por várias vezes, mas não havia como recuparar o arroz. Na ocasião eu tinha apenas sete anos, mas eu sabia bem como eram as condições na minha casa e como meus pais se sentiriam, e não consegui voltar para casa carregando a peneira de miso vazia, dizendo que havia deixado cair o arroz no caminho. Fiquei parada por um tempo chorando, mas ninguém me perguntou o que havia acontecido. Não havia ninguém que perguntasse o que havia acontecido e muito menos que comprasse o que eu havia perdido. Se naquela hora tivesse um rio ou lago na vizinhança, eu certamente teria me jogado. Isso era apenas um centésimo da realidade. Eu comecei a enlouquecer desde essa época. A minha mãe, preocupada com a minha demora, veio me procurar, então, finalmente consegui voltar para casa, mas minha mãe não disse uma palavra e meu pai também ficou em silêncio. Ninguém me repreendeu, mas dentro da casa ouvia-se por vezes suspiros e isso me feria mais do que uma facada. E até meu pai dizer que ‘hoje faremos jejum’ pareceu-me até que respirava contida.
Interrompendo a frase, Oriki, não conseguindo conter as lágrimas, aperta o lenço carmesim contra o rosto e morde uma de suas bordas. Ficaram calados por aproximadamente trinta minutos e o quarto caiu em um profundo silêncio. Ouvia-se apenas o zumbido dos pernilongos que se aproximavam atraídos pelo cheiro do saquê.
Quando ela levantou o rosto, via-se ainda sinais de lágrimas em sua face, mas ela sorria melancolicamente. “Eu sou de família assim, bastante pobre. Os acessos de loucura são herança paterna e eles acontecem de vez em quando. Esta noite também comecei a falar essas coisas e acredito que tenha sido um incômodo para você. Vou parar de falar. Desculpe-me se eu o aborreci. Vamos chamar alguém e alegrar o ambiente?”, pergunta Oriki. “Não, não se preocupe. Diga-me o que aconteceu com o seu pai? Ele morreu cedo?” “É. A minha mãe teve tuberculose e menos de um ano após sua morte, ele também se foi como se a seguisse. Ele estaria agora com cinqüenta anos se estivesse vivo. Não estou o elogiando por ele ser meu pai, mas quanto às suas obras, ele era um artesão que poderia realmente ser chamado de mestre. Porém, por mais que ele fosse um mestre e fosse habilidoso, quando se nasce numa família como a minha, não há nada que se possa fazer. O mesmo acontece comigo.” Ela parece absorta em seus pensamentos. “Você almeja ter êxito, não?!”, Yûki perguntou de repente. “O quê?!” Oriki mostra-se surpresa e diz: “mesmo que eu quisesse, eu poderia no máximo me tornar esposa de um homem pobre. Não consigo nem imaginar me casar com um homem rico.” “Não precisa mentir, pois sei desde a primeira vez que nos vimos. É deselegante tentar esconder isso agora. Se é isso que você quer, faça!”, diz Yûki. “Pare de me incitar, afinal o que posso esperar estando na minha posição?” Oriki fica deprimida e cala-se novamente.
A noite havia avançado. Os clientes da sala do primeiro andar pareciam ter ido embora. Ouvindo uma voz dizendo que iria fechar a porta corrediça da entrada, Tomonosuke se assusta e começa a se preparar para ir embora. Oriki diz a ele que passe a noite no Kikunoi e rapidamente ela esconde seus tamancos. Sem o seu calçado ele não tinha como ir-se, pois não era um fantasma. E também não poderia sair por entre as frestas da porta. Ele decide, então, passar a noite aí. Ouviu-se durante algum tempo o som agitado das portas sendo fechadas. Em seguida, as luzes que entravam pelas frestas da porta também se apagaram. Ouvia-se apenas os passos do guarda, rentes ao beiral, que fazia a ronda noturna.
VII
“O que adianta ficar agora se lembrando do passado?” Genshichi já estava determinado a esquecê-la e desistir dela, mas acabou se lembrando do Obon do ano passado, quando eles estiveram juntos trajando um conjunto do mesmo quimono no templo Kuramae. Agora que chegou o período do Obon, essas lembranças tiram-lhe o ânimo para sair para o trabalho. “Querido, você não pode ficar assim.” As palavras de advertência da esposa o incomodam. “Não diga nada! Fique calada!”. Dizendo isso, ele se deita no chão. Então, Ohatsu diz: “se eu ficar calada, não poderemos mais viver. Se não se sente bem, tome um remédio, trate-se com um médico, se não tiver outro jeito. Mas a sua doença não é desse tipo. Basta você recuperar os ânimos que não há nenhum problema com você. Reflita um pouco e trabalhe, por favor.” “se ficar repetindo sempre a mesma coisa só irá criar calos em meus ouvidosXY, não irá curar o meu sentimento. Vá comprar saquê para mim. Vou beber para espairecer.”, diz Genshichi. “Se tivéssemos dinheiro para comprar esse saquê, eu não pediria a você que trabalhasse contra a sua vontade. Mesmo que eu trabalhe de manhã à noite, ganho, quanto muito, quinze senXY que não dão nem para a papa de arrozXY de nós três. Pedir-me que compre saquê estando nessas condições? Você se tornou realmente um asno. Estamos no período do Obon, mas ontem não pudemos dar nem mesmo os bolinhos de farinha de arrozXY para o nosso filho. Você não providenciou nem os enfeites para o altar budistaXY. Expressamos as nossas desculpas aos antepassados apenas com uma única lanterna. De quem você acha que é a culpa disso tudo? Isso aconteceu porque você foi fisgado pela Oriki como um tolo. Sei que não devia dizer isso, mas você não é um bom filho e é um pai irresponsável. Pense um pouco no futuro daquele menino e torne-se uma pessoa séria. Beber só irá proporcionar uma solução momentânea. Se você não se recuperar de verdade, eu não poderei suportar tanta insegurança.” A esposa se lamenta, mas não há resposta. Genshichi está imóvel, deitado de costas e apenas deixa escapar profundos suspiros de vez em quando. “Mesmo estando nessas condições você não consegue esquecer Oriki? Você faz sofrer ao extremo, a mim, que estou casada contigo há dez anos e que lhe dei um filho. Veste o seu filho com trapos, e quanto a nossa casa, tem apenas um quarto de seis tatami, tão pequeno que parece um canil. Somos considerados tolos e excluídos por todos. E mesmo quando os vizinhos trocam bolinhos de arroz nos equinócios da primavera e do outono entre si, dizem que ‘é melhor não dar para a casa de Genshichi, porque eles não podem retribuir’. Sei que fazem por gentileza, mas das dez casas apenas a nossa é excluída. Os homens não sentem muito, pois ficam fora de casa o dia todo, mas para as mulheres que têm que ficar em casa, isso é tão triste que chega a ser humilhante. Sinto-me envergonhada perante às outras pessoas, e não só isso, ainda tenho que observar o humor das pessoas sempre ao cumprimentá-las. E você nem se importa com isso e continua pensando apenas na sua amada. Sente tanta saudade assim da mulher que lhe abandonou? É lamentável vê-lo sonhando com ela e balbuciando o seu nome até durante a sesta. Você pretende dar a sua vida a Oriki esquecendo-se até de sua esposa e de seu filho? Que pessoa perversa, vergonhosa e cruel.” Ohatsu pensa, mas não consegue falar. Seus olhos se enchem de lágrimas de raiva.
Os dois ficam em silêncio e a pequena casa parece ficar mais triste. Com o cair da noite, o céu começa a escurecer e o interior da casa fica ainda mais escura. Ohatsu acende a luz e faz a fumigação para espantar os pernilongos. Ela contempla desanimada o lado de fora da casa pela porta. Nesse momento, surge a figura de Takichi voltando com toda a disposição, carregando com as duas mãos uma grande sacola. “Mãe, mãe, olha o que eu ganhei.” Ele entra correndo todo sorridente. Era kasuteraXY da loja Hinodeya que fica na zona recém-urbanizada. “Nossa! Quem te deu uns doces tão caros? Agradeceu direitnho?”, Ohatsu perguntou. “Sim, agradeci fazendo mesuras e peguei os doces. Foi a ‘senhorita demônio’ da casa Kikunoi que me deu.”, diz Takichi. A expressão do rosto de sua mãe muda completamente. “Aquela atrevida! Ela nos jogou nessa miséria e ainda não está satisfeita de nos atormentar? Ela está usando o nosso filho para tocar o coração do pai. O que ela disse para você?” “Eu estava brincando num lugar movimentado da rua principal, aí ela veio junto com um homem e disse para eu ir junto com ela, que ela iria comprar um doce para mim. Eu disse que não queria, mas ela me levou no colo e comprou para mim. Não posso comer?” Ele tentando imaginar o que a sua mãe estava sentindo, olhava para ela e hesitava. “Por mais que você ainda seja muito pequeno, que menino insensato você é. Aquela mulher não é um demônio? Não é o demônio que tornou seu pai um vagabundo? Você ficou sem roupas, sem casa, tudo por culpa daquele demônio. Você ganha doces daquele demônio que nos devorou e que ainda não está satisfeito com isso, e ainda pergunta se pode comer? Isso é deprimente. Dá-me raiva só de deixar esses doces sujos, imundos aqui em casa. Jogue fora! Jogue fora! Você está com pena e não consegue jogar? Seu idiota!” E insultando o menimo, ela pega a sacola e lança-a no terreno vazio dos fundos. O papel se rasga e os doces se espalham, rolam por entre as fendas dos bambus e caem na vala. Genshichi levanta-se rapidamente e grita “Ohatsu!” “O que foi?”, diz Ohatsu com desdém e sem se voltar para ele. Então, ele fixa o olhar em Ohatsu que está de perfil. “Já basta! Chega de insolências! Você deveria ficar calada. O que significam essas injúrias? Não há nada de estranho em dar doces para filhos de conhecidos seus. Que erro há em aceitar? Você chamou Takichi de idiota, mas está usando-o para jogar indiretas para mim. Onde já se viu uma esposa que fala mal de seu marido para o próprio filho? Se Oriki e um demônio, você é a Rainha do Inferno. Que uma prostituta engana seus clientes, isso não é novidade, mas você acha que uma esposa pode se queixar do marido e ficar por isso mesmo? Que eu seja um ajudante de pedreiro ou puxador de riquixá, marido tem os seus direitos de marido. Não permitirei que fique na minha casa quem não estiver satisfeito. Vá embora para qualquer lugar! Vá embora! Mulher desagradável!” Ohatsu é repreendida por Genshichi. “Isso é impossível! Não tire conclusões precipitadas. Por que razão eu estaria jogando indiretas para você? Eu acabei dizendo essas coisas, porque esse menino não entende nada e também porque fiquei com raiva da atitude da Oriki. É cruel você me mandar embora por ter interpretado isso mal. Eu digo coisas que lhe desagrada justamente porque penso na nossa família. Se eu quisesse ir embora, eu não estaria aqui suportando o sofrimento dessa vida miserável.”, ela começa a chorar. “Se está aborrecida com essa vida miserável, vá para onde quiser. Eu não vou me tornar um mendigo só porque você não estará mais aqui e também posso criar o Takichi sozinho. Estou profundamente cansado de ouvir, dia e noite, você apontando os meus defeitos ou manifestando ciúmes de Oriki. Se você não quer sair, para mim não faz diferença. Não tenho pena nenhuma em deixar esta minúscula casa. Eu vou embora e levo Takichi comigo. Assim, você pode esbravejar à vontade. E então? Vai você ou saio eu?”, diz Genshichi furioso. “Então você pretende realmente se separar de mim?” “O que você acha?” Genshichi parece uma outra pessoa.
Ohatsu é tomada por um sentimento de raiva, de tristeza e de vergonha. Reprime as lágrimas que assomaram-lhe aos olhos e a impedem de falar. “Eu estava errada. Perdoe-me. Foi realmente um erro meu jogar fora os doces que Oriki havia dado tão gentilmente. De fato, se Oriki é um demônio, eu sou a Rainha do Inferno. Não vou mais falar nisso, não vou mais falar. Não vou falar mais nada sobre Oriki de agora em diante. Não vou falar mais dela nem por trás, por isso, reconsidere sobre a separação. Não preciso nem dizer que eu não tenho nem pais nem irmãos. Eu me casei com você por arranjo de meu tio que era administrador de imóveis. Se eu me separar de você, não tenho para onde ir. Por favor, perdoe-me e deixe-me ficar. Deixe-me ficar em consideração ao nosso filho, mesmo que você tenha raiva de mim. Peço-lhe desculpas.” Ela pede desculpas juntando as mãos e chora. “Não, não posso deixar que fique de jeito nenhum.” Genshichi diz isso e se calou. Voltou-se para a parede e parece não ouvir o que Ohatsu dizia. ‘Ele não era uma pessoa tão desumana assim.’, pensa a esposa atônita. ‘Um homem pode se tornar tão mesquinho quando tem a alma roubada por uma mulher? Uma pessoa que não só faz a esposa sofrer, como é capaz de deixar o querido filho morrer de fome. De nada adiantará me desculpar com ele agora.’ Ela se conscientiza disso e chama Takichi para perto dela. “Takichi, Takichi. Diga! Você prefere ficar perto do seu pai ou da sua mãe?” “Eu não gosto do meu pai, ele não compra nada para mim.”, ele responde francamente. “Então você pretende ir com a sua mãe para qualquer lugar que ela for?” “Sim eu vou.”, diz inocentemente. Ohatsu diz para Genshichi: “Está ouvindo? Takichi disse que vai comigo. Acredito que você também queira ficar com ele por ele ser menino, mas eu não posso deixá-lo com você. Vou levá-lo para onde quer que eu vá. Está bom assim? Vou levá-lo.” “Faça o que quiser! Não quero filho e nem nada. Se quiser levá-lo, leve-o para onde quiser. Não preciso de casa e nem de mobília. Faça o que quiser!”, Genshichi continua deitado e não olha para ela. “Que casa, que móveis? Não temos nada. Fazer o que quiser, que nada! A partir de agora você ficará sozinho e poderá viver como quiser. Por mais que diga que quer essa criança, não o devolverei. Não o devolverei.”, ela confirma. Ohatsu procura algo dentro do armário e pega um pequeno embrulho. “Vou levar apenas um quimono para dormir, um casaco e uma faixa do quimono para o Takichi. Como não foi uma decisão tomada sob o efeito da bebida, acredito que não irá mudar de idéia depois que voltar a si, mas pense bem. Dizem que uma criança cresce feliz se for criado pelos pais, mesmo em meio à extrema pobreza. Se nos separarmos agora, Takichi será criado apenas por um dos pais. Você não vê que quem irá sofrer é esse menino? Ah! Um homem de tripas putrefatas não consegue perceber a graciosidade de um filho. Vou me despedindo.” Ohatsu sai de casa levando a trouxa. “Vá logo! Vá logo!”, diz Genshichi e não a chama de volta.
VIII
Alguns dias após o festival de celebração aos finados, época em que ainda se viam a sombra das lanternas melancólicas, dois caixões deixavam o bairro recém-urbanizado (do Kikunoi). Um conduzido em um palanquim e outro carregado nos ombros por duas pessoas. O palanquim foi retirado silenciosamente do aposento do Kikunoi. As pessoas que se reuniram na avenida para ver cochichavam: “Que pessoa sem sorte é ela. Ser amada por um homem como aquele”, disse uma pessoa. “Não, dizem que foi suicídio em comum acordo (duplo suicídio). Dizem que os dois conversavam no templo na colina naquela tarde, há testemunhas. Deve ter se sentido na obrigação, já que ela o amava”, disse outra pessoa. “Aquela mulher tem senso de obrigação? Ela deve ter encontrado com ele na volta do banho e, por acaso, não conseguindo fugir, conversavam caminhando juntos. Mas ela estava com um corte transversal que partia do ombro, um leve corte no rosto e uma facada na nuca e outros cortes. Certamente ela foi morta quando tentava fugir. Ele, por outro lado, cometeu suicídio por estripação. Não o achava um homem audaz na época que ele dirigia a loja de acolchoados, mas aquilo sim foi uma morte gloriosa. Morreu como um homem”. “De qualquer forma, foi um grande prejuízo para o Kikunoi. Ela devia ter bons clientes. Deve ter sido uma pena perdê-la”. Outras se divertiam com a desgraça alheia. Houve vários rumores, mas não se sabe o que realmente teria acontecido. Conta-se que há pessoas que dizem ver de vez em quando uma luz (algo como o fogo fátuo, a alma do outro mundo) flutuando sobre o templo na colina.