A flauta do tsuru

Hayashi Fumiko

Tradução: Gustavo Perez Katague

Primeira publicação da tradução: Brasil Nikkei Bungaku, no. 75, p. 67-70, mar. 2024. Disponível em: Brasil Nikkei Bungaku.

HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

Texto original: "Tsuru no fue", primeira publicação em 1974. Disponível em: Aozorabunko. Acesso em: 02/10/2025.

Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).

Há muito tempo, houve um ano de prolongada fome. Os tsurus, que aos montes habitavam uma vila, andejavam dia após dia procurando por comida. Mas como não havia o que comer em lugar algum, os tsurus, impacientes, prepararam-se para uma longa viagem e saíram voando para longe.

Assim, na vila sobraram apenas um tsuru com uma perna ruim e sua esposa. Ele permanecia em pé à beira do pântano, onde os caniços cresciam fortes, um lugar agora solitário pela ausência de todos, e olhava o céu por onde os outros voavam distantes.

Certo dia, a tsuru esposa procurava por comida obstinadamente com o seu bico à beira d’água. Visivelmente trôpega naquela manhã, sem saber se encontraria ao menos um único peixinho, ela procurava empenhada por toda parte, mesmo que um botia. O sol matutino brilhava cintilante. No vasto céu, uma nuvem errante flutuava solta em direção ao oeste. No interior do bosque de jovens árvores, a paisagem era encantadora, com pontos de luz do sol salpicados aqui e ali.

Depois de um tempo, ouviu um som indescritivelmente belo de uma flauta. “Mas o que seria isso?”, pensou. A tsuru esposa, antes faminta, de repente teve a impressão de estar saciada escutando aquele belo timbre. Ao caminhar sorrateira em sua direção, deparou-se com seu marido tocando uma flauta transversal.

— Ué, é você que está tocando a flauta? — perguntou a esposa.

O tsuru da perna ruim olhou para trás parecendo envergonhado.

— Então... é que agora há pouco eu estava vasculhando o pântano, pensando que talvez pudesse ter algo lá, sabe? E aí, quando eu senti o tinido de algo duro no meu bico, me apressei para ver o que era e abocanhei esta flauta! Sem saber como funcionava, fui segurando no bico de vários jeitos, até que, com um sopro repentino, saiu um som lindo dos buraquinhos do bambu. Já tinha me esquecido da fome enquanto tocava!

— Olha só! Foi assim, é? Fiquei surpresa com um timbre tão bonito. Ah, foi tão agradável! Me fez lembrar um pouco dos bons e velhos tempos.

O som da flauta era tão bonito que, para os dois tsurus famintos, passou a parecer tolice estarem sempre preocupados, até então pensando apenas em comer.

Dia após dia, os dois só reclamavam, ressentidos por terem sido deixados pelos outros tsurus que saíram voando sem olhar para trás. Mas depois de terem encontrado a flauta de tão belo tom, passaram a se satisfazer com pouca comida, a relembrar os bons e velhos tempos e a desejar felicidades aos demais que partiram para longe.

— Sabe, qualquer pequeno desânimo desaparece por completo sempre que eu fico escutando o som da flauta. Consigo imaginar anos muito bons e fartos, e não apenas pensar em tempos difíceis como este. Hoje eu vou um pouco mais longe para procurar peixes, então toque a flauta de vez em quando, por favor — disse a esposa.

— Mas é claro! Vá com cuidado, viu?

Ela foi logo alçando voo e, não muito tempo depois, chegou a um pequeno pântano onde respingos de água brotavam de vez em quando na superfície. Instigada, fixou o alvo e baixou voo, deparando-se com um local onde se formava um cardume com tantos peixinhos como jamais havia visto. Com o coração acelerado, ela apanhou os peixes. Preparou a marmita e, pronta para partir em direção ao som da flauta, encontrou um casal de tsurus e seus três filhotes vindos do oeste.

— Oh! Há quanto tempo, não é mesmo? Como estão? — perguntou a tsuru esposa.

— Pois é, estamos passando momentos difíceis. Só encontramos dificuldades aonde fomos, e, por fim, dois filhotes nossos acabaram morrendo adoecidos. Vagamos por todos os cantos tentando encontrar um lugar próspero, até ouvirmos o som indescritivelmente belo de uma flauta. Viemos para cá porque, sem dúvida, deveria haver algo de bom na direção de onde ela ecoa.

— Nossa, mas é possível ouvir a flauta tão longe assim? Aquele som é o meu marido tocando.

Ao acompanhar a tsuru esposa, eles ficaram espantados ao ver que o lugar era a vila que antes abandonaram. Para ela, de coração aberto por escutar o som da flauta há tempos, ajudar o próximo passou a ser uma alegria, não importando o quão difícil fosse sua própria situação.

Prontamente serviu como janta os peixes apanhados antes e deixou que os famintos tsurus companheiros de viagem comessem.

— Sirvam-se à vontade! Por favor, comam bastante para recuperar as energias! — disseram o tsuru da perna ruim e a sua esposa após terem comido apenas um pouco.

Com esse acolhimento sincero, os pais e os filhotes acabaram emocionados e com lágrimas nos olhos. Até então, escondendo a comida e pensando somente em si mesmos, os tsurus faziam coisas perversas sempre que se deparavam em disputa por alimento, trapaceando e atacando uns aos outros. Por conta da preocupação coletiva com a comida, não tiveram um único dia agradável do qual pudessem se lembrar.

Formando bandos barulhentos, os fortes se gabavam, tomando a pouca comida dos fracos e ameaçando-os constantemente. Inclusive os filhotes, crescendo às soltas e sem limites, passaram a imitar somente os aspectos negativos dos adultos, com seus linguajares sujos e só arranjando brigas.

A fome foi tão prolongada e extrema, que todos acabaram deixando a vila para trás. Mas agora, pelo contrário, ela havia se tornado um lugar mais pacífico do que antes, e os sete tsurus conversaram sobre como pretendiam trabalhar e viver ali alegremente, sem abandonar suas esperanças haja o que houver.

Sob orientação da tsuru esposa, eles encontraram o lugar onde havia muitos peixes, e então, os sete tsurus sempre conseguiam desfrutar de boas refeições levando uma vida simples.

Certa noite, sob um magnífico luar que iluminava as redondezas com seu brilho dourado, o tsuru da perna ruim mais uma vez tocou a flauta.

Os três tsurus filhotes, voltando-se em direção à Lua, sentiram vontade de cantar.

— Bonita, bonita a dona Lua! — cantarolou o caçula.

— Lugar melhor do que a vila onde nasci não há! — continuou o irmão do meio.

— Uma noite agradável, só nos resta apreciar! — cantarolou o irmão mais velho.

— De fato, não é que encontramos a felicidade? Só de vocês três não passarem mais fome, já sou grata por termos voltado para cá. Mas que bom seria se uns ou outros tsurus viessem também. Ficaria mais animado, não é? — disse a mãe, descontraída.

Enquanto tragava seu cigarro, o tsuru pai era levado pelas notas da flauta que gorjeava em tom suave.

— Oh, mas o quê? Som de asas batendo agitadas! Será que tem alguém vindo?

Atraídos pelo timbre da flauta, um após o outro os tsurus que haviam abandonado a vila logo voltavam pelo céu dourado.

— Se for para dividirmos a comida entre todos sem brigar e sem vaidade, sejam bem-vindos! — disse o tsuru da perna ruim.

Enfim, os tsurus regressos choraram de felicidade.

E então, todos passaram a trabalhar e a partilhar as refeições como bons companheiros. Será que em algum lugar existe ainda essa bela e animada terra dos tsurus?

nunca é demais uma pura intenção
mesmo carente é farto o coração
com os outros a compartilhar
e em conjunto a trabalhar
sempre com boa vontade 
vamos todos nos amar

Assim sempre soava, com gentis gorjeios, a flauta do tsuru.