Literatura Rebelde Japonesa
Texto por: Felipe Chaves Gonçalves Pinto
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Para identificar o que se denomina nesta antologia como “literatura rebelde japonesa” parte-se de três princípios. O primeiro é a existência de uma consciência possível (Goldmann, 1977) de um sujeito que é determinada pelo contexto sócio/político de dada época e/ou local (infraestrutura ideológica). O segundo é a permeabilidade desta consciência e seus limites em todas as expressões de pensamento desta mesma época e local (Santos, 2004, Hartman, 2020). Por fim, o terceiro princípio é a intrínseca vontade de, diante das irresolutas iniquidades sociais, tentar subverter essa consciência possível (Marcuse, 1975).
Expandindo um pouco o raciocínio, se há uma consciência possível determinada pela infraestrutura ideológica isso, contudo, não significa que o que se pode ou não fazer já esteja predeterminado. A possibilidade de ir além desta consciência possível não é nula, apesar de exigir do sujeito esforços consideráveis. Em nível estritamente material, para tentar superar essa consciência o sujeito que, no centro da esfera hegemônica de poder, usufrui diretamente dos resultados materiais da exploração dos oprimidos das margens da sociedade precisaria, talvez, primeiro estar disposto a perder todos os benefícios que o constituíram enquanto membro de uma dada elite intelectual e/ou econômica. Isto é, precisaria, talvez, estar disposto a se re-subjetivizar, o que não é, de maneira alguma, um processo que possa ser completado de maneira simples e plenamente consciente. Em uma perspectiva mais ampla, quanto mais próximo epistemicamente do centro hegemônico de poder de dada sociedade, mais complexa é a superação desta consciência possível por exigir do sujeito a relativização daquilo que ele considera natural. Estar epistemicamente localizado no centro hegemônico não significa, entretanto, pertencer a uma dada elite intelectual e/ou econômica (Grosfoguel, 2008). Significa, isto sim, compactuar, ainda que inconscientemente, com os parâmetros de pensamento que formam essa elite. Ôsugi Sakae, em “A realidade da subjugação” (1913), ensaia uma argumentação que tematiza justamente esse processo.
Neste cenário, essa construção de mundo, que beneficia uma dada elite intelectual e/ou econômica, rege as maneiras com que a construção geral de sentido/significado (Kristeva, 1984) acontece. Isto é, essa construção de mundo é o que oferece bases para que os mais diversos tipos de conhecimento e pensamento se estruturem. Filosofias, ciências, arquivos, história, literatura, música, pinturas, padrões de apreciação estética etc., tudo isto é construído em bases que são definidas pela construção de mundo epistêmica.
Partindo deste princípio, Joel Rufino dos Santos (2004), por exemplo, identifica, em princípio, a possibilidade de três tipos de intelectuais. O intelectual passivo, o compassivo e o intelectual dos pobres. O intelectual passivo é aquele que, criado e nutrido no seio de uma dada elite intelectual e/ou econômica, não pensa, seja por ignorância ou desinteresse, nos problemas inerentes ao sistema social de classe instaurado com o capitalismo. O compassivo, por sua vez, tendo a mesma origem do passivo, tenta pensar e agir ativamente para solucionar ou amenizar as iniquidades do sistema de classe capitalista. Já o intelectual dos pobres é aquele que, originário das camadas mais baixas da sociedade, educou-se longe do centro hegemônico epistémico e, então, desenvolveu sua própria forma com que se expressar e se posicionar em meio às violências deste sistema-mundo.
O intelectual passivo não interessa, enquanto proponente de uma literatura rebelde japonesa, para essa antologia. O interesse que se possa ter pela produção dos intelectuais passivos é somente para mapear as maneiras com que se segrega ativamente os oprimidos. Assim, não serão encontrados textos deste tipo aqui.
Já textos daqueles que podem ser identificados como intelectuais compassivos e dos pobres são o que estruturam a arroz e flores. Pontua-se, contudo, que tanto os intelectuais compassivos quanto os dos pobres estão sujeitos aos limites da consciência possível e, ainda que muitas vezes busquem subverter a lógica de opressão, podem replicar princípios que são racistas, preconceituosos, machistas, homofóbicos etc. que constituem a ordem do sistema-mundo atual. Podem replicar, portanto, as formas (às vezes as mais sutis destas) de opressão do opressor. Quando for o caso, os textos não serão editados e seguirão exatamente como no original para que preservem a sua historicidade e ofereçam vislumbres do que se entendia como natural em dada época e local.
De todo modo, são esses os textos que serão indentificados enquanto literatura rebelde japonesa. Isto é, textos de sujeitos que podem ser identificados como intelectuais compassivos ou dos pobres e que transparecem um posicionamento ativo contra o sistema hegemônico de dominação. Textos que buscam ir além da consciência possível mesmo com todas as suas limitações. Textos, portanto, rebeldes.
Enquanto complemento, destaca-se que Santos (2004) propõem como possibilidade de superação desta lógica o surgimento de um novo tipo de intelectual, o intelectual da ordem do povo. Este intelectual seria formado através do processo de simbiose completa entre o intelectual compassivo e o intelectual dos pobres. Se esse intelectual é realmente factível ou não, se surgirá em algum momento da história da humanidade, não cabe aqui definir. O que a arroz e flores busca fazer é somente tentar contribuir para que as ideias rebeldes do outro lado do mundo se espalhem também em língua portuguesa para que, assim, as chances deste intelectual da ordem do povo despontar sejam potencializadas. Hoje só é possível pensar em uma libertação se por “liberdade” se entende um espaço em que a liberdade de todos coexistam em harmonia.
Referências
Goldmann, Lucien. Las ciencias humanas y la filosofía. Buenos Aires: Nueva Visíon, 1977.
Grosfoguel, Ramón. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Tradução de Inês Martins Ferreira. Revista crítica de ciências sociais, n. 80, p. 115-147, 2008. DOI: https://doi.org/10.4000/rccs.697.
Hartman, Saidiya. Vênus em dois atos. Tradução de Fernanda Silva e Sousa e Marcelo R. S. Ribeiro. Revista Eco-Pós , v. 23, n. 3, p. 12-33, 2020. DOI: https://doi.org/10.29146/eco-pos.v23i3.27640.
Kristeva, Julia. Revolution in poetic language. Nova Iorque: Ed. Universidade de Columbia, 1984.
Marcuse, Herbert. Eros e a civilização: Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.
Santos, Joel Rufino dos. Épuras do social: como podem os intelectuais trabalhar para os pobres. São Paulo: Global, 2004.