Compêndio

A flor anárquica da terra do sol nascente:

um breve histórico do movimento anarquista japonês

Texto por: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

HTML: Felipe Chaves Gonçalves Pinto

Primeira publicação: Pinto, F.C.G. “A flor anárquica na terra do sol nascente: um breve histórico do movimento anarquista japonês. Cunha, A.S.; Nagae, N.H. (org.). Pensamento japonês, vol. 1, Porto Alegre, Bestiário, pp. 105-127, 2024. Disponível em: Bestiário. Acesso em: 13/07/2025.

Este texto está licenciado por: Licença Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-SA 4.0).

Sumário

Introdução

Este texto busca apresentar um desenvolvimento histórico e cronológico do anarquismo japonês. Para tanto, contextualizaremos brevemente o cenário econômico, cultural e político do Japão interligando esse cenário ao desenvolvimento do anarquismo no país. O texto justifica-se pelo intuito de sistematizar e congregar em um único espaço os principais acontecimentos que sustentaram a introdução e o desenvolvimento dessa ideologia no Japão.

Essa sistematização e congregação em um texto específico para esse objetivo em língua portuguesa é relevante ainda pela escassa produção sobre o tema em nosso país. As principais referências ao tema em língua portuguesa estão contidas, principalmente, na (1) autobiografia de Ôsugi Sakae, Memórias de um anarquista japonês (2002), traduzida a partir de uma tradução anglófona; em (2) “A expansão da vida: os anarquistas do Japão pós-II Guerra Mundial”, texto de Luíza Uehara de Araújo (2017a) publicado em anais de congresso; em (3) “Romper as fronteiras: conexões entre anarquistas na Rússia e no Japão”, também de Araújo (2017b), publicado na revista Ecopolítica; e, por fim, na (4) tese de doutorado, também de Araújo (2019), Práticas libertárias no Japão imperial.

O (1) não passa de uma aproximação pessoal de Ôsugi sobre os acontecimentos em que estava inserido e, portanto, não abrange uma contextualização mais sistemática. Já os textos de Araújo são uma contribuição valorosa para os estudos do anarquismo japonês. O (2) e (3) apresentam, sob recortes diversos, traços de uma cronologia do movimento. O (2), através do conceito de “expansão da vida” desenvolvido por Ôsugi, foca-se principalmente na apresentação dos anarquistas do pós Segunda Guerra. Apesar de referenciar pontualmente o desenvolvimento do movimento pré-guerra, não é este o foco e, em certos momentos, algumas informações incorretas relacionadas a esse período são veiculadas. Por exemplo, a autora afirma que Kanno Sugako teria tirado a própria vida em cárcere (Araújo, 2017a, p. 8) quando, na realidade, ela morreu devido a execução de sua pena capital. O erro provavelmente não passa de uma confusão entre as figuras de Kaneko Fumiko, outra importante anarquista do período, e Kanno Sugako. O (3) é principalmente um levantamento das intersecções anarquistas entre Rússia e Japão e de um primeiro tomar de consciência do “ocidente” pelos movimentos sociais no Japão. Apesar de conter, pela natureza do trabalho, questões semelhantes às que tratamos aqui, estas limitam-se a exemplificações das questões levantadas sem tratar o assunto em uma perspectiva mais sistematizada. Já o (4) é um extenso e relevante texto sobre o anarquismo no Japão, com foco, devido ao recorte teórico utilizado pela autora (“expansão da vida”), na vida de figuras proeminentes do movimento anarquista dos períodos analisados; uma análise que lida belamente com a subjetividade desses anarquistas e ao funcionamento interno dos grupos que integravam. O texto ainda apresenta uma pesquisa material de fontes primárias primorosa, em concordância com sua posição retórica.

Nesse cenário, nosso trabalho apresenta-se como oportunidade de sistematizar e congregar em um mesmo espaço uma cronologia histórica do movimento em intersecção com os principais acontecimentos sociais, econômicos e políticos do país até, principalmente, a segunda década do século XX.

Para tanto, antes de iniciarmos o apanhado geral sobre a implementação e disseminação do anarquismo em solo japonês, traçaremos uma correlação ideológica que possa indicar um contínuo de ideias entre o passado recluso do Japão, a Era Edo (1603–1868), e os períodos subsequentes. Para tanto, elencaremos uma linha autóctone do pensamento japonês que teve sua origem na Era Edo e que dialoga com o anarquismo. Proporemos, assim, que essa linha de pensamento funciona, retoricamente, como uma semente possível para a propagação do anarquismo no país.

Em seguida, elencaremos os acontecimentos que sustentaram o surgimento do anarquismo enquanto ideologia estrangeira. Focaremos principalmente em aspectos político, culturais e econômico do final do Período Meiji (1868–1912) e início do Período Taishô (1912–1926).

Para justificar e contextualizar o anarquismo nesse período, passaremos pelas formas que o movimento assumiu durante sua propagação e, paralelamente, apresentaremos alguns dos principais precursores dessa ideologia no país dando especial atenção às figuras e pensamentos de Kôtoku Shûsui (1871–1911) e seu “sucessor” Ôsugi Sakae (1885–1923). Discutiremos também as reações do Estado japonês diante do movimento anárquico e seus efeitos colaterais. Por fim, seguindo para um fechamento, passaremos rapidamente pelos acontecimentos referentes ao anarquismo pós Ôsugi Sakae.

Breve introdução ao anarquismo

Sendo o objetivo deste texto fazer um apanhado geral do movimento anárquico japonês, iniciamos apresentando uma breve introdução a essa ideologia.

Anarquia, etimologicamente, vem do grego “an-arquia” e quer dizer, simplesmente, para além de acepções positivas ou negativas: “sem-governo”. Mas com o tempo, o termo extrapolou a sua etimologia. Nildo Avelino e Loreley Garcia, por exemplo, lembram que:

Parece ter-se evadido da memória dos homens o fato de que um dia, por volta do século VI a.C., um certo Maiândrios, tendo recebido do tirano Polícrates a autoridade (arché) da Cidade de Samos, decidiu depô-la no centro (meson), erigir um altar ao deus da liberdade (zeus eleutêrios) e proclamar a igualdade (isonomía) entre os homens (cf. Heródoto, 1988). Com esse gesto, não apenas rejeitava o despotismo (tyrannía), mas também prenunciava a vocação democrática, exortada por Péricles em seu “discurso fúnebre” (cf. Tucídides, 2001), que se tornaria o exemplo invejado, e jamais imitado, pelas democracias modernas. Com seu gesto inaugural, primeiro registro em nossa cultura de reivindicação igualitária e libertária, Maiândrios logrou dar ao poder um tratamento inédito: a arché não deve mais ser a propriedade exclusiva de nenhum grupo ou indivíduo, não deve ser assunto privado ou particular, mas diz respeito a todos que, a esse respeito, tornam-se semelhantes (hómoioi).
Conhece-se o ódio que Platão nutriu por essa vocação democrática primeira. Dia veio em que, vingando a morte de seu mestre, o filósofo colocará um fim definitivo a esse culto à liberdade: desqualificando-a como anarquia, asseverou que “da mais extrema liberdade é que nasce a maior e mais rude escravidão”.
(Avelino; Garcia, 2012, p. 13)

É, então, a partir e através da filosofia de Platão que a anarquia passa a ser valorizada negativamente. O “sem-governo” passa a ser sinônimo de caos e daquilo que leva à “mais rude escravidão”. Acepção essa que, devido à imensa influência platônica na filosofia eurocêntrica, ainda hoje encontra-se presente no cerne dos Estados contemporâneos.

Contudo, no início do século XIX, a “anarquia”, escapando momentaneamente das correntes platônicas, é ressignificada. Pierre-Joseph Proudhon (1806–1865) foi o responsável pelo surgimento do movimento anarquista tal como hoje é conhecido. Nesse momento, a teoria anarquista começa a ser desenvolvida com foco na área econômica e, com o passar do tempo, graças aos incontáveis anarquistas que surgiram após Proudhon, o escopo anárquico torna-se cada vez mais amplo e, oscilando entre os desejos de destruição/negação e construção, acaba por dividir-se em dois grandes polos agregadores: os coletivistas (revolucionários) e os individualistas (insurrecionistas).

São com os coletivistas que encontramos modelos ideológicos que propõem sociedades horizontais e sem qualquer tipo de opressão. Estes, costumeiramente, autodenominam-se, por exemplo, como anarco-comunistas e anarco-sindicalistas. Já os individualistas acreditam que a liberdade está, invariavelmente, no desejo de cada pessoa e cada pessoa possui o direito de ter e fazer o que quiser. Os individualistas, ao contrário dos coletivistas, não creem necessariamente na necessidade da abolição do Estado, em uma revolução coletiva, como único meio para seu objetivo. Advogam que negar, individualmente, o Estado e viverem como bem desejarem é o suficiente para alcançar a liberdade, deixando, assim, a destruição do Estado para quando, de fato, sentirem-se obrigados a tal ação, para quando o Estado tentar suprimir sua recém-descoberta liberdade.

E é nas semelhanças compartilhadas por esses dois polos que encontramos o conjunto de princípios, valores e comportamentos anarquistas. O anarquismo, desde sua etimologia, caracteriza-se por ser negativo, ser anti-. É só através da destruição ou negação do que existe no momento que a (re)construção é possível. Destruir/negar e construir, para os anarquistas, são ações inseparáveis. O alvo da destruição/ negação anárquica, desde Maiândrios, é o poder, a autoridade, o domínio, em suma: tudo aquilo que oprime e impede o ser humano de ser completamente livre. O anarquismo, em linhas gerais, é uma ideologia libertária radical que, tendo a liberdade de todos os seres vivos como objetivo, desenvolveu diversas vertentes de ação ao longo do tempo.

Um libertário radical antes do anarquismo

O anarquismo, em linhas gerais, caracteriza-se por ser uma ideologia que, agindo de forma radical (através da negação e/ou da destruição que tem como horizonte de realização a construção de algo novo), busca a liberdade incondicional para todos e por todos. Nesta seção argumentaremos que, mesmo antes do anarquismo ser implementado sistematicamente no Japão, existiu, no mínimo, uma ideologia que, tida como autóctone do Japão, dialogava com os ideais libertários que configuram o anarquismo.

Considerado um dos mais enigmáticos filósofos da Era Edo (1603–1868), Andô Shôeki (1703–1762), permaneceu desconhecido até o início do século XX quando Kanô Kôkichi (1865–1942) adquiriu/descobriu um manuscrito do Shizen shin’eidô. Neste manuscrito, Andô Shôeki registrou sua profunda aversão aos “ismo” que permeavam o Japão de sua época (Confucionismo, Budismo, Daoismo/Taoismo, Xintoísmo e Militarismo), seu desprezo por governadores, imperadores, religiosos, professores, mercadores, artesãos ou qualquer outra pessoa que se alimentava sem ajudar efetivamente na produção dos alimentos; sua descrença na escrita, a qual acreditava ser uma ferramenta para a opressão; e seu desejo de ver instaurada uma espécie de radical e igualitário “comunismo” agrário, apesar do termo anacrônico. O autor e sua obra, no entanto, não foram logo estudados por Kanô graças ao crescente conservadorismo e à intolerância, conquanto bem diversa da Era Edo, despertada também no Período Meiji que, constitucionalmente, considerava o Imperador sagrado e inviolável.

Andô, apesar de já em sua “descoberta” ser tratado, principalmente entre os estudiosos do dito ocidente, com certa irrelevância, como uma espécie de anomalia filosófica, atualmente dispõe de muitos interessados e pesquisadores que trabalham com sua obra. Mais recentemente, e tendo como principal catalisador acontecimentos relativamente próximos (como o desastre nuclear de 2011 e as drásticas mudanças climáticas), seus textos têm servido de base para debates que alardeiam um “retorno à natureza” e que dialogam abertamente com as elaborações presente na filosofia utópica do autor.

Para este trabalho, a existência da figura de Andô Shôeki, uma espécie de “libertário radical” em plena Era Edo, é de suma importância. Primeiramente para destruir/negar o estereótipo que, ainda hoje, é largamente disseminado no imaginário popular, a saber: a suposta passividade e conformidade do povo “comum” japonês (Okano, 2018, p. 1353–1365). Secundariamente, para estabelecermos um núcleo comum, um contínuo visível de pensamentos entre um Japão que existia, segundo sua própria política de Estado, só para ele mesmo e um Japão que passou a, abruptamente, existir para além de suas fronteiras.

Se pouco, Andô Shôeki mostra-nos que, independentemente do tempo e do espaço, seres humanos inconformados com a situação em que vivem tendem à insurreição, não importa o quão oprimidos sejam, não importa com qual ideologia foram educados, não importa qual sistema de governo enfrentam, seres humanos são, no fim das contas, animais de uma mesma espécie que dividem traços ontológicos muito similares. A opressão, invariavelmente, gera nesses seres laivos insurrecionistas. Mesmo que tais laivos sejam reprimidos em alguns, eles ainda tendem a se manifestarem em outros. Esses outros se não caem logo no esquecimento, são efetivamente silenciados e tidos por anomalias ou excentricidades. Andô Shôeki, como tantos antes e depois dele, não foge à regra, ao contrário, a reforça: tido como uma excentricidade da Era Edo é constantemente lido em sua irreverência somente e, consequentemente, não serve como base para um estudo de um determinado povo.

Flor anárquica

Aqui, faremos um apanhado sobre a implementação do anarquismo do Japão, o seu desenvolvimento, as constantes tentativas de aniquilá-lo e sua resiliência.

Preparação do solo: cenário político e econômico

No início do Período Meiji, o governo japonês, composto por muitos jovens samurais que, na prática, eram quem realmente governava a nação (Sansom, 1977, p. 315–338), objetivava formar um forte estado militarista, centralizado, internacionalmente relevante e que possuísse uma economia baseada na produção industrial. Objetivos, por eles mesmos, um tanto ambiciosos principalmente se levada em conta a posição tanto territorial quanto econômica do Japão daquele momento. Para tentar concretizar esses objetivos o governo precisaria impelir o seu povo a um estado de aceitação e conformidade tão completo que mesmo as decisões e ações nocivas a esse mesmo povo fossem acatadas sem questionamentos. Uma das estratégias usadas para tanto foi a disseminação de uma ideologia forte que apregoava o orgulho nacional e a lealdade ao imperador, que era entendido como uma espécie de “pai” para toda a nação. Essa disseminação ideológica funcionou, principalmente, como uma espécie de arma persuasiva que levou o povo a colocar os desejos do Estado em níveis acima dos seus próprios desejos.

Mas, a despeito dos planos governamentais, os japoneses ainda, em sua maioria, eram camponeses e, consequentemente, a agricultura ainda era a base da economia do país. Tendo em vista que um dos objetivos do governo era transformar o Japão em uma economia industrial, o Estado necessitava da força dos camponeses dentro das fábricas, dos estaleiros navais e das minas que foram criados a partir do encorajamento e financiamento estatal. Para responder a esse problema, o Estado impôs altos impostos aos camponeses. O efeito foi o esperado: com a impossibilidade de muitos campesinos se manterem no campo por conta dos aumentos nas taxas de impostos, a população agrícola começou a minguar e as indústrias passaram a ganhar a mão de obra que necessitavam.

Próximo ao final do século XIX, as primeiras organizações trabalhistas surgiram com essa emergente classe de agricultores socioeconomicamente oprimidos e coagidos a vender sua força de trabalho nas novas fábricas. Para contornar esse novo contratempo, o Estado promulgou no ano de 1900 a Lei Policial de Paz Pública que funcionava principalmente como recurso fiscalizador das atividades dos trabalhadores e dos ativistas sociais (Duus; Scheiner, 1988, p. 666).

Os objetivos do Estado, contudo, iam muito além da transformação do Japão em um estado sustentado pela economia industrial, pois visava também transformá-lo em uma potência militarista. Seguindo por esta linha, o Estado começa a agir intensivamente no âmbito educacional, moldando, disciplinando e sintonizando o povo à ideologia estatal desde a escola elementar até, para os homens, o serviço militar. Nessas instituições militares os cidadãos eram obrigados a memorizar e repetir um édito imperial que dizia que a primeira e mais importante obrigação dos soldados era ser leal ao imperador, ser fisicamente fortes, moralmente puros e desejosos de sacrificar suas próprias vidas pelo bem dos anseios da nação (Waswo, 1988. p. 559–566). Já na área da educação elementar, temos como exemplo dessa estratégia o édito imperial da educação, pronunciado pelo imperador em 30 de outubro de 1890, que, à semelhança do édito apresentado aos cidadãos em serviço militar, dizia que deveriam observar as leis, oferecer seu auxílio corajosamente ao Estado caso alguma emergência surgisse e terminava com uma apelação para que agissem de acordo com a honra de seus antepassados e que, assim, seriam mais do que súditos, mas também dignos dessa mesma honra (Borton, 1970, p. 205).

Esse édito era mantido nas escolas e proclamado aos alunos uma vez por ano durante uma cerimônia oficial e, naturalmente, teve um forte impacto na formação das crianças de então (Waswo, 1988, p. 563).

Alguns camponeses e tantos outros garotos e garotas da classe trabalhadora escaparam dessa lavagem cerebral estatal por não poderem frequentar compulsoriamente esses espaços já que a escola elementar no Período Meiji não era gratuita (Taira, 1971, p. 371–394). Mas, ainda assim, muitos homens, obrigados a servir o exército e que não tinha outra escolha senão obedecer e tantas outras mulheres obrigadas, pelo peso da tradição, a tornarem-se, como queria o bordão da época, “boas esposas e mães sábias” (Kurazumi, 2008, p. 49–57), acabaram, esses também, encaixando-se no sistema de engrenagens elaborado pelo Estado.

Desse modo, os objetivos do governo foram, em grande parte, alcançados e muitos japoneses conformaram-se com a situação vigente. Mas existiriam também aqueles que, diante de uma ulterior revolta e insubmissão, lutariam contra o poder estatal. Esses embates entre os inconformados e o Estado, enquanto propagador ideológico, foram ainda mais intensos, violentos e marcantes, já que o poder estatal não deixava margem para (re)ação e exigia obediência e lealdade absoluta. Some-se a isso a guerra Russo-Japonesa (1904-1905) que afervorou a indignação nesses mesmos inconformados e temos a composição perfeita do solo, já fértil pelos acontecimentos passados, no qual a flor anárquica pôde brotar.

Primavera e verão: a implementação e o desenvolvimento do anarquismo

Kôtoku Shûsui (1871–1911) foi uma personagem importante na introdução do anarquismo, enquanto ideologia sistematizada, no Japão. Politicamente engajado, foi, em 1898, colaborador em um jornal comunista, Yorozu Chôhô. Em maio de 1901, integrou um pequeno grupo que almejava criar um Partido Social- Democrata só para vê-lo rapidamente banido pelo governo. Com a aproximação da guerra Russo-Japonesas, o Yorozu Chôhô começou a mudar suas diretrizes ideológicas e Kôtoku, por isso, recusou-se a continuar escrevendo para o referido jornal. Sem uma ocupação formal, fundou junto a um colega de trabalho e simpatizante ideológico, Sakai Toshihiko (1871–1933), um jornal mais radical do que o Yorozu Chôhô em seus tempos de oposição, que batizaram como “O jornal do povo” (Heimin Shinbun). O jornal publicou seu primeiro volume, que se destacava por sua forte oposição à guerra e ao governo, em novembro de 1903 e seguiu funcionando até janeiro de 1905 quando foi forçado a encerrar suas atividades sob a acusação de infração das leis de imprensa e de efetivamente ter seus editores e jornalistas presos. Em fevereiro do mesmo ano, Kôtoku, um dos detidos, começava o cumprimento de sua pena de cinco meses de encarceramento.

Cabe ressaltar que o Heimin Shinbun não era um jornal propriamente anarquista. Era, no máximo, um jornal comunista/socialista com vieses mais radicais do que o Yorozu Chôhô e que, de certa maneira, dialogava com os ideais por trás da falha tentativa empregada por Kôtoku e um pequeno grupo de pessoas na organização do Partido Social-Democrata. Em novembro de 1904, por exemplo, imprimiu-se nas páginas do Heimin Shinbun a primeira tradução para o japonês, feita por Kôtoku e Sakai, do Manifesto Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels e, coincidência ou não, três meses depois o governo baniria o jornal.

Em julho de 1905, Kôtoku, logo após o término de sua pena, deixaria registrado em carta que havia passado por uma transformação política. Alegava ter sido encarcerado como um socialista marxista e que, após sua libertação, voltava como um anarquista radical preocupado com a propagação dessa causa (cf.: Shiota, 1965, p. 433). Kôtoku, durante a prisão, teria lido Campos, fábricas e oficinas, de Piotr Kropotkin, e dedicado um tempo considerável na reflexão sobre a posição do Imperador na sociedade japonesa. A conclusão alcançada foi a de que o capitalismo só encontraria seu fim quando a instituição imperial fosse abolida. Abolição que, se dependesse dos democratas sociais, não aconteceria tão cedo. Kôtoku, movido por essas inquietações revolucionárias, decidiu deixar o Japão e ir para os Estados Unidos em novembro do mesmo ano para criticar com mais liberdade (e segurança) o Estado japonês e sua ideologia estruturante (cf.: Shiota, 1965, p. 434).

Até junho de 1906, Kôtoku permaneceu em solo americano acumulando experiências e absorvendo influências dos operários estadunidenses. Esse período foi de suma importância para que Kôtoku maturasse as ideias que começou a desenvolver em cárcere enquanto lia Kropotkin. Nos Estados Unidos entrou em contato com membros da Industrial Workers of the World, dentre os quais muitos eram anarquistas e outros tantos comunistas que buscavam uma forma direta e mais efetiva de ação. Esse contato, somado às antigas experiências vividas por Kôtoku, foi a base para a formulação e introdução, como manifestação de uma ideologia vinda de fora — mas que sempre esteve em germe dentro de todos — do movimento anárquico no Japão. O anarquismo de Kôtoku distinguia-se do socialismo japonês por, principalmente, pregar a necessidade de ações diretas e pelo receio de que uma vez estabelecida a ditadura proletária ela se transformasse, ao contrário do que se espera, em nova classe burguesa. Diferenças, a bem da verdade, em sintonia com as preocupações anarquistas difundidas pelo mundo naquela época.

Kôtoku e o seu anarquismo pregavam como forma de ação direta atos de greves e sabotagens nas fábricas e minas que, em uma nação que começava a se desenvolver industrialmente, eram de grande impacto. Mas graças à Lei Policial de Paz Pública, já mencionada anteriormente, movimentos desse gênero estavam sendo duramente combatidos pelas forças estatais. Diante desse cenário, muitos anarquistas se voltaram para a vertente de ação ainda mais direta do movimento: o dito terrorismo. Era, de certa forma, essa a oportunidade que o governo tanto ansiava para justificar uma ação muito mais enérgica e tentar suprimir de uma vez o movimento anarquista e socialista do país.

Deste modo, em 1910, o governo, após prender um punhado de anarquistas por supostos atos terroristas, criou um caso em que 26 anarquistas e simpatizantes, entre esses Kôtoku Shûsui e sua então companheira Kanno Sugako, foram acusados de conspirar contra a vida do imperador, configurando, assim, um crime de alta traição que, em um Estado em que a figura do imperador concentrava todo o poder estatal, naturalmente deveria ser punido com a morte. Em dezembro do mesmo ano, dos 26 acusados, 24 foram sentenciados à pena de morte e dois à prisão perpétua, Enquanto aguardavam a execução da pena capital, outros doze acusados tiveram as penas revogadas à prisão perpétua. Entre os doze restantes, Kôtoku e outros dez acusados foram executados no dia 24 de janeiro de 1911. Kanno Sugako foi executado no dia seguinte.

Com a morte de Kôtoku e tantos outros influentes anarquistas, o Japão entrou no que ficou conhecido como fuyu no jidai, período de inverno, dos movimentos radicais de esquerda. Durante esse período, o Estado estava determinado a fechar todos os jornais e suprimir todas as formas de encontros que os anarquistas, os socialistas e simpatizantes tinham até então. Nessas duras condições, muitos ativistas desses movimentos decidiram ir para o interior do país e outros tantos por saírem do Japão com perspectivas de retorno para quando a situação melhorasse.

Assim, a flor anárquica, considerada morta pelo Estado, entrou em estado de letargia e durante todo esse período de inverno acumulou forças para voltar, mais forte do que nunca, na primavera seguinte nas mãos de, principalmente, Ôsugi Sakae e seus não menos importantes companheiros.

Outono e inverno: letargia anárquica

Durante os anos de 1912–1936, duas correntes anarquistas predominantes dividiram espaço no Japão, o anarco- sindicalismo e o anarco-comunismo. O primeiro teve seu auge durante a primeira metade do período, enquanto Ôsugi ainda estava vivo, e o segundo durante a segunda metade, após a morte de Ôsugi.

Crump, em seu The anarchist movement in Japan, nos dá uma série de razões pelas quais o anarco-sindicalismo predominou neste primeiro momento (Crump, 1996, Capítulo 2, n.p.). A primeira e mais imediata se dá a partir da observação de que durante o período de inverno, que durou até o ano de 1918, os anarquistas e simpatizantes viam-se indefesos diante da força estatal que, se fosse o caso, legitimava mesmo o assassinato com o intento de suprimir o movimento. Acrescenta-se a isso o fato de as organizações trabalhistas ainda estarem proibidas pela Lei Policial da Paz Pública. Como resultado, obtemos um meio propício onde surgiram vários inconformados nos seios das fábricas prontos para se organizarem em sindicatos radicais. Secundariamente, não se pode ignorar que após a execução de Kôtoku, Ôsugi passou a ser percebido como o mais desenvolto articulador anarquista daquele período. Ôsugi, por sua vez, era fortemente influenciado pelo sindicalismo francês e, portanto, foi principalmente nessa linha que o anarquismo voltou a tomar forma no Japão.

Ainda no período de inverno, em que os movimentos radicais estavam sendo brutalmente contidos, os grandes trunfos anarquistas foram a publicação mensal do Kindai Shisô (Pensamento moderno). Teve sobrevida de dois anos, 1912–1914, num período em que a maioria dos jornais com teor radical eram fechados e seus editores eram presos em poucos meses. Outro trunfo foi a criação de um grupo de estudo sindicalistas que promoveu encontros de 1913 a 1916. A iniciativa para a formatação de ambos passou por Ôsugi Sakae e Arahata Kanson (1887–1981), então seu companheiro ideológico.

Em 1918, o período de inverno teve seu inevitável fim graças à crescente indignação do povo diante do que ficou conhecido como Komesôdô (Revolta do Arroz). Em decorrência das limitações comerciais impostas durantes os anos da Primeira Guerra Mundial e do vertiginoso crescimento capitalista por qual o Japão estava passando, a inflação no país cresceu repentina e aceleradamente. Esse fato jogou o preço do arroz, alimento básico da nutrição do povo japonês (principalmente dos que ainda viviam nos campos), nas alturas. Indignados com a situação, um pequeno grupo de pessoas em uma vila pesqueira em Toyama iniciou em 23 de julho de 1918 uma corrente de ira e insurreição que se espalhou pelo Japão nos meses subsequentes. Uma escala inapreensível e fora de controle gerou contramedidas estatais que mobilizou sua força policial e militar (Nakayama, 2001, p. 35–34; Hase, 2021, p. 196–197).

Essa era a exata oportunidade pela qual a flor anárquica esperava para sair de sua hibernação e fazer-se presente mais uma vez. O Estado, com tantas insurreições acontecendo ao mesmo tempo, já não possuía controle algum e o máximo que podia fazer era suavizar os protestos, não os impedir de fato. E mesmo que a Lei Policial de Paz Pública ainda continuasse em vigor, o movimento anarquista agora podia se articular com mais liberdade junto ao povo japonês na luta por seus direitos.

O período que sucedeu a passagem do fuyu no jidai foi marcado pela criação de diversas organizações trabalhistas que, apesar de ainda proibidas por lei, existiam como uma assustadora realidade para o Estado e chegou a contar, já em 1918, com mais de 66 mil trabalhadores engajados e organizados (Crump, 1996, Capítulo 2, n.p.). É claro que grande parte dessas organizações não possuíam teor anarquista e estavam imediatamente preocupadas em conquistar uma posição melhor para os trabalhadores dentro do próprio sistema capitalista. Contudo, apesar de não serem maioria, surgiram também organizações anárquicas como a Shinyûkai e a Seishinkai.

Outra organização que surgiu como consequência dos acontecimentos que encerraram o período de inverno foi o Rôdô Undô (Movimento Proletário). Tanto uma organização trabalhista como um jornal, a Rôdô Undô caracterizava-se não por pregar o sindicalismo anárquico como forma de ação, mas sim por reportar e analisar os enfrentamentos que, por vezes, assumiram um caráter anarquista, não distinguindo sindicalistas de não-sindicalistas. É desta maneira que essa vertente finalmente deixou o campo teórico para adentrar na realidade palpável.

A renovação do anarquismo: a nova primavera

A Revolução Russa de 1917 teve forte impacto também no Japão. Para os radicalistas de todo o mundo, entre eles também os anarquistas, os bolcheviques foram alvos de admiração. Muitos anarquistas japoneses, como Arahata Kanson e Sakai Toshihiko, após exercerem um papel importante na disseminação do movimento anárquico japonês (apesar de o último nunca ter se autodenominado “anarquista”), acabaram migrando, movidos pelo sucesso da Revolução Russa, ao socialismo bolchevique. Contudo, apesar da grande popularidade que o comunismo passou a ter naquela época ainda existiam muitos anarquistas que não se dobraram ao peso daquela ideologia. Ôsugi Sakae é um exemplo desse tipo de anarquista.

Independentemente das diferenças ideológicas, tanto o comunismo quanto o anarquismo, inicialmente, lutaram juntos na linha de frente pelos ideais proletários. Mas essa cooperação durou somente até a chegada no Japão das notícias sobre as barbáries do regime de Lênin. Após isso, a tensão entre as duas correntes ideológicas começou a crescer notavelmente.

A Rôdô Undô, que chegou a publicar artigos comunistas durante o ápice da cooperação entre os dois movimentos, passou, após as notícias desanimadoras vindas da Rússia, a caracterizar-se como um jornal totalmente anarquista que se opunha veementemente ao bolchevismo. Desse período em diante, em consequência da crescente hostilidade que surgiu entre os movimentos, qualquer associação entre o partido comunista e o anarquismo tornou-se insustentável.

Mas um impacto muito mais desestabilizador do que as rixas entre bolcheviques e anarquistas foi o assassinato, em setembro de 1923, de Ôsugi e sua família após o Grande Sismo da Região de Kantô que ocorreu no dia primeiro de setembro daquele ano. Milhares de vidas foram perdidas no terremoto e os incêndios subsequentes inflamaram ainda mais o pânico e a confusão das pessoas que experienciaram de alguma forma a tragédia. Reflexo desse caos foi a perseguição que os coreanos então residentes no Japão sofreram. Centenas de coreanos, tidos enquanto amotinados, foram assassinados por forças civis e militares durante os dias que sucederam o terremoto em uma verdadeira demonstração de barbárie.

O Estado não deixou de agir diante de tamanha calamidade. Ao notar a oportunidade única de eliminar discretamente seus inimigos ideológicos, as autoridades competentes, aproveitando todo o caos instaurado, assassinaram brutalmente Ôsugi, sua companheira Itô Noe (1895–1923) — outra importante figura do anarquismo da época —, e seu sobrinho de seis anos de idade, Tachibana Munekazu, no que ficou conhecido como Amakasu jiken (Caso Amakasu) (Takata, 1932, p. 289–296). Os assassinatos foram julgados pelo Estado e o capitão da unidade de polícia militar, Amakasu Masahiko (1891–1945), foi responsabilizado pelos crimes e sentenciado a dez anos de prisão. Entretanto, após somente três anos de pena foi colocado novamente em liberdade.

Não é de se surpreender que, pouco tempo após o assassinato do mais renomado anarquista japonês daquela época, surgissem aqueles que buscariam vingança a todo o custo. A corrente de ódio foi renovada e a vertente anárquica terrorista só foi parcialmente detida quando vários anarquistas foram sentenciados ou à morte ou à prisão perpétua. Mas essa vertente nunca cessou de fato, mesmo diante das constantes falhas. E talvez seja graças a esses anarquistas que a flor anárquica não apodreceu de vez em um solo que, graças às intervenções estatais, já não lhe oferecia os nutrientes necessários para sua existência.

Anarquismo pós Ôsugi Sakae: a preservação da flor anárquica

O anarquismo pós Ôsugi foi marcado principalmente pela mudança ideológica ocorrida dentro da esfera teórica anárquica japonesa, pelos acontecimentos que antecederam a Segunda Guerra Mundial e que acarretaram a quase aniquilação da flor anárquica e pela sua vacilante e fraca recuperação após a guerra.

Em 1926 surgiram duas grandes organizações anárquicas: Kokuren (Kokushoku Seinen Renmei, Liga da Juventude Negra) e Zenkoku Jiren (Zenkoku Rôdô Kumiai Jiyû Rengôkai, Federação Nacional das Associações Sindicais Libertárias), que, inicialmente, carregavam viés tanto anarco-sindicalista como anarco- comunistas. Mas, graças às influências de dois grandes anarco-comunistas, Hatta Shûzô (1886–1934) e Iwasa Sakutarô (1879–1967), que professavam uma profunda descrença no anarco-sindicalismo, a inclinação dessas duas organizações foi acentuando-se cada vez mais para o lado do anarco-comunismo até o ponto de os próprios anarco-sindicalista e os sindicalistas propriamente ditos desvencilharem-se, entre 1927 e 1928, por completo dessas organizações.

Após a grande depressão econômica em 1929 e a crise capitalista decorrente desse evento, o sistema capitalista precisava reinventar-se para sustentar seu poderio. Diante desse cenário, as organizações radicais de então passaram, como nunca, a ser combatidas ferozmente. Em 1931 a Kokuren foi descontinuada por forças estatais. Presenciando esse cenário, a Zenkoku Jiren e os antigos anarco-sindicalistas e sindicalistas resolveram relevar suas diferenças para, mais uma vez, juntarem forças e tentarem sobreviver ao avassalador avanço estatal. Mas resistir ao Estado era tarefa deveras complicada e em 1934 o número de associados, que já tinha alcançado as cifras de vinte mil, mingou para somente duas mil pessoas.

Ainda em 1931 a flor anárquica, em novo arroubo de forças e mudança de ares, encontrou novas formas de sobrevivência com a fundação, em fevereiro de 1931, da Nôseisha (Nôson Seinen Sha, Associação da Juventude Rural). A Associação era uma rede de comunidades anarquistas que se caracterizava por levar a ideia de descentralização ao limite, fato que dificultava um ataque direto e efetivo do Estado. Em 1932 essa organização também foi dissolvida. Em parte, devido à pressão estatal que havia capturado diversos anarquistas dessa associação que viviam em Tóquio e, em parte, para preservar aquilo que eles haviam alcançado nesse pouco espaço de tempo. Mas mesmo essa dissolução não salvaria diversos anarquistas de serem, eles também, detidos e encarcerados. Após 1932 a repressão estatal só aumentou e nos meses finais de 1935 a polícia chegou a prender cerca de quatrocentos anarquistas. Tal acontecimento levou à inevitável dissolução da última organização anárquica restante, Zenkoku Jiren, no início de 1936. Após essa data, organizações radicais tornaram-se inviáveis e naquele momento os anarquistas restantes não tinham, se quisessem sobreviver, chances de espalhar a ideologia que professavam. Nos anos seguintes, muitos acontecimentos com os quais estamos familiarizados amontoaram-se e culminaram na rendição completa do Estado japonês na Segunda Guerra Mundial após o fatídico e cruel bombardeamento das cidades de Hiroshima e Nagasaki.

Após a Segunda Guerra, o anarquismo voltou a se estruturar como uma organização em 1946 com a Nihon Anakisuto Renmei (Federação Anarquista do Japão), com um especial cuidado para evitar as já conhecidas desavenças entre o anarco-sindicalismo e o anarco-comunismo. Mas o tempo e a falta de sucesso mostraram-se mais fortes e em 1950 o antagonismo entre as duas linhas ideológicas culminou, finalmente, em nova separação. Dessa separação surgiram o Anaruku Sanjikaristu Gurûpu (Grupo Anarco-sindicalistas), e o Nihon Anakisuto Kurabu (Clube Anarquista do Japão). A Nihon Anakisuto Renmei seguiu “funcionando” até 1968 quando, após reencenar os anos de 1928–1934 com os mesmos atores principais — Iwasa Sakutarô, do lado anarco-comunista e Ishikawa Sanshirô (1876–1956), do lado anarco-sindicalista — resolveu, enfim, encerrar seu funcionamento. Após a dissolução da Federação, diversos outros grupos de anarquistas surgiram e desapareceram, alguns duraram meses, outros anos. Contudo, o que importa ressaltar é que o anarquismo em si, durante todo esse tempo, nunca chegou a conhecer seu fim derradeiro.

Por fim, em 1988 uma nova Nihon Anakisuto Renmei foi criada e continuou publicando seus jornais e artigos até, se pouco, por volta do fim do século passado (Crump, 1996, Capítulo 3, n.p.), prova flagrante que a flor anárquica continua viva, embora debilitada.

Fragmentos conclusivos

O foco deste trabalho foi realizar um levantamento histórico e cronológico do movimento anarquista japonês em diálogo com os aspectos sociais, políticos e econômicos da época. Interligamos a inserção do anarquismo enquanto ideologia estrangeira a uma forma de pensamento autóctone japonês na figura de Andô Shôeki a fim de propor que alguns dos preceitos que definem a ideologia anarquista já estavam presentes no país, ainda que em germe e não sistematizados enquanto tal. Nesse sentido, o anarquismo japonês não é uma concepção completamente estranha ao pensamento desenvolvido no país, mas sim uma reconfiguração daquilo que já se havia aventado enquanto horizonte.

O levantamento cronológico e mais geral da inserção do anarquismo e de seu desenvolvimento foi realizado até, principalmente, o momento imediatamente seguinte ao assassinato de Ôsugi Sakae e sua família pelas forças estatais. Devido ao objetivo deste texto, concentramos a atenção principalmente na figura de Kôtoku e de Ôsugi e o papel que desempenharam no movimento.

A forte opressão exercida pelo Estado ao movimento é notória. As principais figuras representativas do movimento no Japão ou foram assassinadas legalmente, através da pena de morte em julgamentos que assumiam escalas desproporcionais (e.g.: Kanno Sugako, 1881–1911, Kôtoku Shûsui, 1871–1911, Furuta Daijirô, 1900–1925), ou ilegalmente, em bárbaros atos postos em prática por forças policiais que agiam, segundo o próprio Estado, sem que nenhuma ordem do tipo tenha sido dada (e.g.: Ôsugi Sakae, 1885–1923, Itô Noe, 1895–1923). Muitos daqueles que não chegaram a perecer diretamente pelas mãos do Estado, escolheram tirar a própria vida já em cárcere (e.g.: Kaneko Fumiko, 1903–1926, Wada Kyûtarô, 1893–1928) ou morreram vítimas de doenças também já encarcerados (e.g. Muraki Genjirô, 1890–1925). Da breve apresentação de um obituário que é muito mais extenso e sangrento, é fácil perceber que o Estado não estava disposto a suportar a ideologia que o movimento anarquista e seus simpatizantes defendiam. E se a flor anárquica japonesa, mesmo que debilitada, ainda sobrevive, é, sobretudo, a despeito dos desejos do Estado e graças ao incansável senso de ação desses ativistas em difundir suas convicções no seio da sociedade.

Contudo, essa sobrevida do anarquismo japonês não representa também a irrelevância social do movimento atualmente? Se ainda há aqueles que se autodenominam anarquistas, o fazem principalmente enquanto posicionamento ético e não mais de ação social direta (pelo menos não no nível do que se viu 100 anos atrás). Então, que legado é este que o anarquismo deixou no Japão? É, propomos, principalmente o legado do exemplo oferecido pelos mais famosos anarquistas e suas teorias de vida. A biografia de dezenas de anarquistas ainda hoje é campo de fascínio social e são material para inúmeras obras de mídia, além de pesquisas acadêmicas. Seja no âmbito privado (entre romances, traições, práticas de amor livre, manifestações pouco ortodoxas de afeto etc.), seja no âmbito público (organização, formas de ação direta, confrontos inimagináveis etc.), essas figuras ainda ocupam um espaço considerável no imaginário popular Obras deixadas por esses ativistas também seguem circulando, ainda que em baixa quantidade, pelo país. Falar de anarquismo hoje, então, é sobretudo falar de um movimento que age no campo da formatação de pensamentos. Nesse sentido, o papel de embate que o movimento vem empregando é o de (re)construir uma memória acerca do passado anarquista japonês. É aí também que as principais linhas de pesquisas sobre o movimento ou seus integrantes surgem.

Temos, recentemente, por exemplo, o Kazarazu, itsuwarazu, azamukazu, de Tanaka (2016) que debate assuntos referentes à vida de Kanno Sugako e Itô Noe, ou ainda o Kanno Sugako to Taigyaku jiken, organizado pela Kanno Sugako Kenkyûkai (2016), que reúne uma série de artigos atuais que tematizam principalmente a vida e obra de Kanno Sugako. Em inglês, temos o já clássico Treacherous women of imperial Japan, de Hélène Bowen Raddeker (1997), que faz uma leitura discursiva da produção e vida de Kanno Sugako e Kaneko Fumiko. Um traço comum entre todos estes livros é a preocupação com a figura e história que foi e é difundida sobre essas personagens. Já que se trata de figuras marginalizadas e que sofreram muita difamação no correr dos anos. Portanto, uma das tendências mais notórias dos estudos anarquistas sobre o Japão é justamente essa.

Um outro aspecto que, julgamos, pode ser muito proveitoso para manutenção e sistematização de uma história anarquista japonesa é o que busca investigar o movimento através das produções literárias anarquistas que nos chegaram. Nesse sentido, temos a indispensável Anakizumu bungakushi, de Akiyama Kiyoshi (2006). Em inglês poderíamos citar a tese de doutoramento de Stephen M.A. Filler, Chaos From Order: An Anarchism in Modern Japanese Fiction, 19001930 (2004). Ambos os textos, principalmente o de Akiyama, passam pormenorizadamente por diversos momentos e gêneros da produção literária anarquista e levantam pontos interessantes sobre como essas obras se relacionavam com as demais produções e ao contexto sociocultural da contemporaneidade de qual que faziam parte.

Uma possível continuação para este trabalho histórico introdutório que apresentamos, portanto, passa pelo aprofundamento das questões apresentadas.

Referências

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Notas